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Pena de perdimento de veículo locado utilizado no cometimento de infração aduaneira:

Legislação, jurisprudência e proposta de solução

01/07/2022 às 15:15
Leia nesta página:

Examinamos a penalidade de perdimento de veículos de propriedade de empresas locadoras, quando utilizados por locatários no cometimento de infração aduaneira. Propomos alteração na legislação.

Resumo: Este artigo trata da legislação aduaneira e jurisprudência quanto à aplicação da penalidade de perdimento de veículos de propriedade de empresas locadoras, quando utilizados por locatários no cometimento de infração aduaneira, e propõe alteração na legislação para tratamento da questão.


INTRODUÇÃO

É recorrente a utilização de veículos locados para introduzir irregularmente mercadorias estrangeiras em território nacional, em especial, por infratores contumazes ou por aqueles que já sofreram o perdimento do próprio veículo.

O presente trata da legislação e jurisprudência relativa à aplicação da penalidade de perdimento de veículos quando pertencentes a empresas locadoras, estando fora de seu escopo a pena de perdimento de mercadorias, bem como de veículos que não sejam objeto de locação.

Ao final são apresentadas propostas de alteração legislativa visando combater a prática de ilícitos aduaneiros mediante utilização de veículos locados.

PERDIMENTO DE VEÍCULO NA LEGISLAÇÃO ADUANEIRA

A pena de perdimento do veículo utilizado no transporte de mercadorias estrangeiras, introduzidas irregularmente em território nacional, encontra-se prevista nos artigos 94, 95 e 104, inciso V, do Decreto-Lei nº 37/1966, reproduzidos pelos artigos 673, 674 e 688 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009). Transcreve-se os dispositivos citados:

Art. 673. Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte de pessoa física ou jurídica, de norma estabelecida ou disciplinada neste Decreto ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-lo (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 94, caput).

Parágrafo único. Salvo disposição expressa em contrário, a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, da natureza e da extensão dos efeitos do ato (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 94, § 2º).

Art. 674. Respondem pela infração (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 95):

I - conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática ou dela se beneficie;

II - conjunta ou isoladamente, o proprietário e o consignatário do veículo, quanto à que decorra do exercício de atividade própria do veículo, ou de ação ou omissão de seus tripulantes;

(...)

Art. 688. Aplica-se a pena de perdimento do veículo nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 104; Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 24; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 75, § 4º):

()

V - quando o veículo conduzir mercadoria sujeita a perdimento, se pertencente ao responsável por infração punível com essa penalidade;

(...)

§ 2o  Para efeitos de aplicação do perdimento do veículo, na hipótese do inciso V, deverá ser demonstrada, em procedimento regular, a responsabilidade do proprietário do veículo na prática do ilícito. 

Assim, diante dos dispositivos citados, tem-se que a penalidade de perdimento é aplicável ao veículo transportador de mercadoria sujeita a perdimento, quando o veículo pertencer ao responsável por tal infração.

Além disso, nota-se pelo acima que o proprietário pode responder isolada ou conjuntamente com o motorista infrator, ainda que não estivesse presente no local da infração, bastando que haja demonstração, em procedimento regular, de sua responsabilidade na prática do ilícito.

JURISPRUDÊNCIA ACERCA DO PERDIMENTO DE VEÍCULO LOCADO

O atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é no sentido de que o perdimento do veículo locado somente é cabível se a empresa locadora agir com dolo.

Nesse sentido, transcreve-se abaixo as ementas das decisões no âmbito do REsp 1.817.179/RS[1], de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, e do REsp 1811138/PR[2], de relatoria do Ministro Herman Benjamin, ambos julgados em 2019:

ADMINISTRATIVO. MERCADORIAS ESTRANGEIRAS. INTERNAÇÃO IRREGULAR. DESCAMINHO OU CONTRABANDO. VEÍCULO TRANSPORTADOR. LOCADORA DE VEÍCULOS. PROPRIEDADE. PARTICIPAÇÃO NO ILÍCITO. INEXISTÊNCIA. PENA DE PERDIMENTO. ILEGALIDADE.

1. Só a lei pode prever a responsabilidade pela prática de atos ilícitos e estipular a competente penalidade para as hipóteses que determinar, ao mesmo tempo em que ninguém pode ser privado de seus bens sem a observância do devido processo legal.

2. À luz dos arts. 95 e 104 do DL n. 37/1966 e do art. 668 do Decreto n. 6.759/2009, a pena de perdimento do veículo só pode ser aplicada ao proprietário do bem quando, com dolo, proceder à internalização irregular de sua própria mercadoria.

3. A pessoa jurídica, proprietária do veículo, que exerce a regular atividade de locação, com fim lucrativo, não pode sofrer a pena de perdimento em razão de ilícito praticado pelo condutor-locatário, salvo se tiver participação no ato ilícito para internalização de mercadoria própria, exceção que, à míngua de previsão legal, não pode ser equiparada à não investigação dos "antecedentes" do cliente.

4. Hipótese em que o delineamento fático-probatório contido no acórdão recorrido não induz à conclusão de exercício irregular da atividade de locação, de participação da pessoa jurídica no ato ilícito, nem de algum potencial proveito econômico da locadora com as mercadorias internalizadas.

5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

(REsp n. 1.817.179/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 17/9/2019, DJe de 2/10/2019. Negritei.)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC. RAZÕES GENÉRICAS. SÚMULA 284/STF. ADUANEIRO. EMPRESA LOCADORA. PERDIMENTO. APREENSÃO DE VEÍCULO QUE TRANSPORTAVA MERCADORIAS INTERNADAS IRREGULARMENTE. RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO DEMONSTRADA NOS AUTOS. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ. REVISÃO DAS CONCLUSÕES ADOTADAS NA ORIGEM. SÚMULA 7/STJ.

1. A parte recorrente sustenta que o art. 1.022 do CPC foi violado, mas deixa de apontar, de forma clara, o vício em que teria incorrido o acórdão impugnado. Assim, é inviável o conhecimento do Recurso Especial nesse ponto, ante o óbice da Súmula 284/STF.

2. Consoante o entendimento do STJ, "somente é cabível a aplicação de pena de perdimento de veículo quando houver clara demonstração da responsabilidade do proprietário na prática do ilícito" (AgRg no REsp 1.313.331/PR, Rel. Ministro Catro Meira, Segunda Turma, DJe 18.6.2013).

3. Verifica-se que o acórdão recorrido fundamentou-se em matéria fático-probatória, ao concluir pela responsabilidade do proprietário do veículo na prática do ilícito, a ensejar a incidência da referida penalidade, "especialmente em razão da sua culpa in vigilando, pois deixou de adotar as cautelas típicas do negócio" (fl. 328, e-STJ).

Com efeito, a modificação da conclusão a que chegou a Corte de origem demanda o reexame de provas, o que é inadmissível na via estreita do Recurso Especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ.

4. Recurso Especial não conhecido.

(REsp n. 1.811.138/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2019, DJe de 1/8/2019. Negritei)

Convém destacar que a ementa da decisão do REsp 1.817.179/RS, em seu item 3, já transcrito acima, menciona que a participação da locadora no ilícito não pode ser equiparada à não investigação dos "antecedentes" do cliente.

A leitura do Voto do Relator mostra que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região não proveu o recurso de apelação da empresa locadora, mantendo o perdimento do veículo, por considerar que o locatário possuía um extenso histórico de infrações aduaneiras e que a locadora não havia consultado tal histórico no sistema público COMPROT (https://comprot.fazenda.gov.br), de modo que teria agido com negligência. Para melhor esclarecimento do item, transcreve-se alguns trechos do Voto do Relator:

Irresignada, a impetrante interpôs recurso de apelação, não provido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Vejamos, no que interessa, o que está consignado no voto condutor do acórdão recorrido (e-STJ fls. 414/421):

Consultando o endereço eletrônico (https://comprot.fazenda.gov.br) e o CPF do locatário e condutor do veículo, confirmo as informações trazidas pela Receita Federal. Com vasto histórico de ocorrências de apreensão de seus veículos por contrabando (vide recorte do Comprot), a experiente impetrante deveria estar mais motivada a perquirir estas informações e se resguardar de melhor forma:
[...]

(...)

Além do histórico de apreensões do locatário, o da autora também está maculado junto a várias repartições fiscais (vide Comprot):
[...]

Assim, a autora tinha conhecimento da consulta pelo sistema COMPROT para identificar pessoas com histórico de ilícito aduaneiro, uma vez que o locador do condutor habilitado no contrato de locação possuía registros anteriores no sistema, o que demonstra a aparente negligência da empresa locadora.

Como se observa, ante a premissa de que a locadora de veículos, no exercício de sua atividade, não toma as cautelas necessárias para impedir a possível utilização do veículo locado na internalização irregular de mercadoria estrangeira, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entende ser legal a imposição de pena de perdimento à sociedade empresária.

(...)

Nesse contexto, a pessoa jurídica proprietária do veículo, que exerce a regular atividade de locação, com fim lucrativo, não pode sofrer a pena de perdimento em razão de ilícito praticado pelo condutor-locatário, salvo se tiver participação no ato ilícito para internalização de mercadoria própria, exceção que, à míngua de previsão legal, não pode ser equiparada à não investigação dos "antecedentes" do cliente, os quais, em tese, poderiam indicar eventual intenção de prática de descaminho/contrabando.

Na hipótese dos autos, o delineamento fático-probatório contido no acórdão recorrido não induz à conclusão de exercício irregular da atividade de locação, de participação da pessoa jurídica no ato ilícito, nem de algum potencial proveito econômico da locadora com as mercadorias internalizadas, de modo que não pode ser a ela aplicada a pena de perdimento do veículo locado.

Segundo o STJ não pode haver perdimento do veículo pertencente à locadora pelo motivo de ausência de consulta ao histórico de seu cliente no sistema COMPROT, pois não existe previsão legal para equiparar a não investigação dos antecedentes do cliente à participação no ato ilícito praticado pelo condutor-locatário.

De fato, não há lei que obrigue a consulta do histórico de um potencial cliente antes da celebração do contrato de locação, muito menos equiparando a ausência de tal consulta à participação no ato ilícito praticado pelo locatário.

Assim, no próximo tópico serão propostas algumas medidas visando combater a utilização de veículos locados no cometimento de ilícitos aduaneiros.

PROPOSTA DE MEDIDAS DE COMBATE À UTILIZAÇÃO DE VEÍCULOS LOCADOS EM INFRAÇÕES ADUANEIRAS

Diante da atual legislação e jurisprudência, tem-se a perpetuação da prática comum por parte de infratores aduaneiros em deixar o veículo de sua propriedade seguro em sua residência e locar um veículo para praticar a infração, pois se for flagrado transportando as mercadorias irregulares, não apenas terá evitado à perda de seu veículo, como também não precisará ressarcir a empresa locadora, uma vez que esta não sofrerá o perdimento do bem.

Assim, propõe-se as seguintes alterações legislativas nos tópicos seguintes, visando combater a utilização de veículos locados na prática de infrações aduaneiras.

Criação de um cadastro público de infratores aduaneiros

A primeira medida seria a criação de um cadastro público de infratores aduaneiros, no qual seriam registrados o CPF de responsáveis por prática de infração aduaneira que tenha resultado em pena de perdimento de mercadorias e/ou de veículos, após a conclusão de regular processo administrativo.

Evidentemente, a lei também deverá estabelecer a obrigatoriedade de consulta prévia pela locadora e a previsão de que esta recuse a locação ao cliente inscrito no cadastro, sob pena de responder conjuntamente com o locatário por eventual infração cometida com o uso do veículo. Dessa forma, apenas a locadora que agisse com negligência ou com má-fé seria penalizada.

Convém esclarecer que não se mostra adequado que a lei obrigue a utilização do já citado COMPROT, pois este não é próprio para a finalidade em tela: primeiro, porque apresenta todos os processos no âmbito do Ministério da Fazenda, aduaneiros ou não, e segundo, ainda que o sistema mostre o assunto, permitindo verificar que se trata de processo de perdimento aduaneiro, não é possível saber se o interessado no processo foi responsabilizado ao final ou não, pois não é apresentado o conteúdo da decisão.

Registro eletrônico de contratos de locação de veículos

Outra medida seria a criação de um sistema que registrasse os dados básicos dos contratos de locação de veículos. De forma similar às empresas em geral, que emitem notas fiscais eletrônicas, antes das mercadorias deixarem seus estabelecimentos, as locadoras emitiriam um registro eletrônico do contrato de locação com as informações básicas do mesmo, tais como CPF do locatário, CPF de motoristas autorizados, placa do veículo, período de vigência e área de circulação do veículo (apenas em território nacional ou Mercosul).

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Dessa forma, a Aduana poderia, por exemplo, atuar na prevenção do cometimento da infração, ao impedir a saída de um veículo do território nacional, caso constatasse que o registro eletrônico da locação restringisse a circulação do veículo ao território nacional, inclusive fazendo uso de processos automatizados, tais como câmeras integradas a sistema de reconhecimento ótico de placas. Adicionalmente, os postos das polícias rodoviárias também poderiam consultar tais registros, coibindo o uso irregular de veículos locados.

A consulta de tais registros eletrônicos também seria útil nos casos em que o motorista do veículo abordado não correspondesse aos autorizados, pois os inscritos no cadastro de infratores, poderiam usar terceiros para efetuar a locação, omitindo da locadora quem seria o real condutor.

Interessante destacar que a Resolução do Mercosul nº 35/02, que estabelece Norma para a Circulação de Veículos de Turistas Particulares e de Aluguel nos Estados Partes do Mercosul, internalizada pelo Decreto nº 5.637/2005, traz em seu artigo 11[1], o requisito de emissão do formulário denominado Autorização para Circulação no Mercosul (ACM), porém as empresas locadoras não costumam emiti-lo, afinal locatários com a intenção de cometer uma infração, costumam omitir a informação de que usarão o veículo fora do território nacional.

A utilização do registro eletrônico para todos os contratos de locação, com a informação de autorização para o veículo circular somente dentro do país ou fora dele, tornaria desnecessária a emissão do citado formulário e resolveria o problema da omissão da informação de saída do país por parte do locatário de má-fé.

Se um condutor fosse flagrado transportando mercadorias irregulares, e a empresa locadora não tivesse transmitido o registro eletrônico da locação, esta responderia conjuntamente pela infração, e dessa forma, somente locadoras agindo com má-fé ou negligência seriam responsabilizadas.

Imposição de multa ao infrator que utilizar veículo de propriedade de terceiros

Como última medida, propõe-se a previsão legal de multa ao infrator aduaneiro que utilizar veículo pertencente a terceiros, em especial, veículo locado.

Dessa forma, ainda que, a depender do valor da multa, possa compensar ao infrator utilizar um veículo locado em substituição ao seu próprio, ao menos não ficará sem punição, desencorajando-se a reincidência.

CONCLUSÃO

A legislação aduaneira prevê a pena de perdimento do veículo que transportar mercadorias estrangeiras em situação irregular, no entanto, é comum a utilização de veículos locados por infratores, como forma de evadir-se da pena.

Visando combater tal prática, foram propostas medidas razoáveis, com aspectos preventivos e punitivos, que protegem as empresas locadoras que atuam regularmente e com boa-fé, fornecem meios à Aduana para atuar na prevenção e repressão dos ilícitos aduaneiros, bem como mitigam a impunidade atualmente usufruída por infratores que utilizam veículos locados.


REFERÊNCIAS

  1. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial nº 1.817.179/RS. Relator: Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 17/9/2019, DJe de 2/10/2019.
  2. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial nº 1.811.138/PR. Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2019, DJe de 1/8/2019.)

NOTAS

  1. Constituirá requisito indispensável para a circulação de veículos de aluguel nos Estados Partes a Autorização para Circulação no MERCOSUL (ACM), que, com caráter de declaração juramentada, será emitida pela Empresa Locadora de Veículos (ELV), conforme modelo anexo.
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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALVI, Rogério. Pena de perdimento de veículo locado utilizado no cometimento de infração aduaneira:: Legislação, jurisprudência e proposta de solução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6939, 1 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98353. Acesso em: 28 abr. 2024.

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