A seletividade no direito penal e a Lei de Drogas (lei 11.343/06) no Brasil

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13/06/2018 às 19:00
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LEI DE DROGAS (LEI 11.343/06) E O TRATAMENTO DADO AO USUÁRIO E AO TRAFICANTE

A vigente Lei n° 11.343/06 proclama a criação do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas – SISNAD. Em seu artigo 3º evidencia-se a finalidade de sua criação, demonstrando que na lei estão presentes duas vertentes, a vertente que se dirige ao produtor e traficante, e a que se destina ao usuário (GOMES et al, 2006, p. 02).

A lei, portanto, distingue essas duas questões e também especifica como o indivíduo será processado. A distinção subjetiva presente na Lei 11.343/06 influencia na criação de estereótipos sobre a figura do usuário, que acaba, muitas vezes, sendo confundido com o traficante.

Essa confusão se mostra extremamente prejudicial ao modo de lidar com o usuário, já que este não possui controle algum sobre o comportamento do traficante, não sendo possível ser atribuído a ele esse controle ou condução do comportamento doloso de quem pratica o tráfico (BOTTINI, 2015, p. 29). Portanto, essa confusão se comprova inaceitável, e confirma a ideia errônea de que a população consumidora é a grande culpada pelo tráfico.

A partir de seu artigo 27 estão previstos os crimes da Lei de Drogas. O uso ou consumo é considerado um dos crimes da Lei, estando expresso no caput do artigo 28, tendo as possíveis penas previstas nos incisos I, II e III (BRASIL, 2006), da seguinte forma:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Nota-se que, nos casos de uso ou consumo não é aplicada a pena privativa de liberdade.

Como explicam Mendonça e Carvalho (2007, p. 20-21):

O que prevê a nova Lei é a alteração substancial do enfoque social sobre as drogas, com a adoção de regime diferenciado para a prevenção do uso e a repressão ao tráfico. (...) resguardando as medidas repressivas para o traficante, enquanto para o usuário as medidas são de proteção

O artigo 28 trata das condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas sem autorização (BRASIL, 2006), sendo que essas condutas descritas devem ser praticadas para uso pessoal (Gomes et al, 2006, p. 10). O modo utilizado para definir se essa conduta é ou não praticada para uso pessoal é o que possibilita a existência da seletividade penal na Lei de Drogas.

Como meio de definir quem é usuário e quem é traficante, a Lei de Drogas peca por não determinar, de maneira clara o bastante, essa diferenciação. Como afirma Assis Brasil e Weigert (2006):

A lei 11.343/06, enaltecida por muitos pela descaracterização do uso de drogas, não resolveu um dos maiores problemas existentes na criminalização do tráfico e consumo de drogas no Brasil, qual seja, o da diferenciação, na prática, entre tais condutas criminosas. O que se pretende analisar é o fato de que a distinção entre usuário e traficante, na justiça penal brasileira, é realizada de forma seletiva. (WEIGERT, 2006, p. 97)

A redação do parágrafo 2º do artigo 28, da lei 11.343/06, está formulada da seguinte forma:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

É possível perceber, portanto, que o parágrafo, em nenhum momento nomeia objetivamente formas de determinar se era para consumo pessoal que a droga destinava-se. Não existe uma quantidade determinada, não existe nenhum motivo que explique o porquê de ser relevante saber o local da abordagem, e muito menos que demonstre ser relevante conhecer das circunstâncias sociais e pessoais do agente.

A falta de critérios objetivos faz com que a determinação de ser a droga apreendida para uso pessoal ou não, seja realizada de acordo com critérios pessoais, desde critérios da polícia, até dos magistrados. A criminalidade acaba sendo distribuída desigualmente, de acordo com as características pessoais dos indivíduos.

A partir dessa subjetividade e falta de critérios com relação à diferenciação entre usuário e traficante volta-se à questão da visão dos indivíduos excluídos historicamente serem vistos como criminosos, ocasionando em uma seletividade penal, dessa vez, com relação ao crime de tráfico.


SELETIVIDADE PENAL E A LEI 11.343/06

A lei 11.343/06 surgiu com a novidade de não mais punir com a pena privativa de liberdade o usuário. Porém, criou uma confusão ao não determinar objetivamente e de maneira clara quem é considerado traficante e quem é usuário. A discriminação no direito penal se mostra nos inúmeros dados e estudos que demonstram o perfil dos presos. E infelizmente, no Brasil, uma vez preso, essa estigmatização demora a sumir, e na maioria das vezes não desaparece. Muitas vezes ocorre uma posterior perseguição de quem foi preso, sendo considerados suspeitos constantes pelas autoridades, e incrementando a estigmatização social (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, P. 74).

Ocorre uma falta de critérios claros para a diferenciação entre usuário e traficante, dando brecha para a discriminação, seletividade e discricionariedade, tornando evidente que a lei penal não é igualitária à todos, sendo o status de criminoso difundido desigualmente entre os indivíduos, de acordo com a classe social a que são pertencentes (BARATTA, 2002, p. 162).

As classes menos favorecidas acabam, indiscutivelmente, sendo as mais afetadas pela subjetividade presente no parágrafo 2° do artigo 28 da Lei 11.343/06. No sentido da seletividade e discriminação dos menos favorecidos, Maria Lucia Karam expõe

(...) os escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vítima dos grupos de extermínio. (...) essa desigualdade, tão facilmente constatável, é, no entanto, encoberta por uma propaganda tão enganosa e eficaz, que, apesar disso, consegue “vender” a idéia da solução penal como alguma coisa desejável, até mesmo para os setores mais conscientes e progressistas. (BIANCHINI, 2000, p. 62)

A questão do preconceito vale a pena ser comentada, pois é determinante para o entendimento do que está sendo discutido no presente trabalho. Entra, nessa parte, a influência da associação entre pobreza e crime, que possui como um dos efeitos, uma concentração maior da polícia sobre essas populações estigmatizadas, com a criação de roteiros estereotipados (MISSE, 2006, p. 129).

No mesmo sentido, Assis Brasil e Weigert (2006):

Quanto a isso, pensasse que a nova Lei de Drogas, ao descarcerizar o delito de uso, potencializou a discricionariedade dos agentes policiais. Atualmente, a diferença de punição entre tráfico e consumo é ainda maior e a discricionariedade do policial elevou-se ainda mais. Está em grande medida nas mãos deles a escolha entre imputar alguém à pena mais gravosa, comparada a um delito hediondo, ou menos severa (delito de menos potencial ofensivo). (WEIGERT, 2006, p. 103)

A política de drogas no Brasil se mostra ultrapassada, pois usa já há muito tempo o usuário como alvo para a tentativa de inibir o tráfico. O que não gera resultados positivos e também não se mostra justo, pois é difícil considerar justo impor um mal a alguém com o objetivo de que outros omitam o cometimento de um outro mal (ROXIN, 1993, p. 24).

Foi criada, no Brasil, uma “guerra contra as drogas“, uma idéia importada dos Estados unidos de uma política implementada pelo ex-presidente Nixon na década de 70. Em entrevista dada ao site Brasil de Fato em 2010, a Juíza aposentada Maria Lucia Karam, uma das principais críticas ao uso do direito penal para reprimir o usuário, defendeu a idéia de que a “guerra contra as drogas” não tem como alvo às drogas, portanto não se dirige contra coisas, mas sim contra pessoas, tendo como alvo quem produz, quem comercializa e quem compra.

O que se evidencia mais, a cada dia que passa, é o fato de que a falta de objetividade para a diferenciação entre traficante e usuário ocasiona uma discricionariedade das autoridades, decidindo quem irá ser considerado traficante e quem irá ser identificado como usuário através dos meios subjetivos presentes no parágrafo 2º da Lei 11.343/06.

Nesse ponto se encontra a criminalização primária na Lei de Drogas, onde o legislador criminaliza a conduta de portar drogas e estabelece os meios de distinção entre usuário e traficante. Porém, a subjetividade de como essa distinção é realizada, acaba escancarando uma arbitrariedade demasiada no momento em que ocorre a criminalização secundária.


Criminalização Secundária na Lei da Drogas com relação ao crime de tráfico

Como já esclarecido anteriormente, a criminalização secundária é a legitimação da criminalização primária. Após a criação da lei pelo legislador, e é demonstrada através da atuação dos poderes punitivos do Estado com relação aquilo que fora determinado pela lei.

A redação do artigo 28, §2º da Lei de Drogas se mostra excessivamente subjetiva, não possuindo critérios claros e objetivos de determinação de quem é considerado usuário e quem é considerado traficante. Isso acaba contribuindo para que essa distinção seja realizada através de estereótipos historicamente criados e já pertencentes ao pensamento da sociedade.

Uma melhor redação da legislação poderia evitar essa discricionariedade e discriminação, colaboraria proporcionando a todos o maior bem estar possível (BECCARIA, 1997, p. 27), e evitando que as questões pessoais como locais de apreensão, por exemplo, continuem sendo utilizadas como forma de seletividade de indivíduos.

Essa discricionariedade começa, muitas vezes, na própria redação da legislação, como afirma Lola Aniyar de Castro (1983)

Quando falarmos nos mecanismos de criação das normas penais, veremos que não há uma natureza própria do delitivo, mas que o delitivo é imposto de cima pela pessoa ou grupo que tem mais poder; que isso depende da posição de poder, e que esta posição de poder determinará que os interesses, as crenças e a cultura dos que usufruem essa posição de predomínio definam o que é delitivo em uma sociedade.  (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 15)

A discricionariedade que vem do legislador, através da criminalização primária e que acaba estimulando, mesmo que indiretamente, a seletividade penal, por meio da criminalização secundária, demonstra certa característica tendenciosa de punição mais rigorosa aos delitos que são mais típicos das classes menos favorecidas.

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 Percebe-se uma desigualdade na forma de tratar os indivíduos, algo extremamente condenável, principalmente no direito penal que deve proporcionar um tratamento igualitário, utilizando-se do princípio da igualdade, não levando em conta a classe social do agente, como o comentado por Ferrajoli “um princípio complexo, o qual inclui as diferenças pessoais e exclui as diferenças sociais” (2006, p. 834).

Como forma de definição para saber se o preso é usuário ou traficante, o magistrado acaba por levar em conta a quantidade de droga apreendida, o local da abordagem, as condições em que a ação se desenvolveu, circunstâncias sociais e pessoais, apreciando ainda a os antecedentes. Acontece que essa interpretação não é somente desempenhada pelo juiz, mas também pela polícia, no momento em que prende, e pelo promotor, ao denunciar.

O jurista Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça, em entrevista realizada em 2015 para o site G1¹, define que a respeito da redação do artigo 28, §2º da Lei de Drogas "o resultado prático é que pessoas pobres são presas como traficantes e os ricos acabam sendo classificados como usuários. Um sistema assim não é bom para ninguém." Abramovay ainda complementou que "as prisões por drogas hoje são uma fonte perversa de criminalização da pobreza". Corroborando, portanto, com o entendimento de que ocorre a seletividade na Lei de Drogas a partir da redação do artigo estudado e que acaba, desse modo, punindo os indivíduos não pertencentes às classes dominantes.

A mesma reportagem também entrevistou a ex-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária, Maria Tereza Uile Gomes, que argumentou o fato da Lei 11.343/06, em relação ao modo de diferenciação entre usuário e traficante deixou uma 'lacuna' a ser preenchida, afirmando que ocorre a falta de critérios e requisitos objetivos de regulamentação, e insitiu que a polícia não possui um critério de quem é usuário ou quem é traficante. Por fim a reportagem, por meio de dados de pesquisa do Infopen, que o tráfico é crime que mais encarcera, havendo um aumento de 339% desde a criação da lei no ano de 2006.

A criminalização secundária, na Lei 11.343/06, demonstra uma violação ao princípio da isonomia, sendo evidenciado que “o princípio constitucional da isonomia é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela” (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46).

A seletividade penal, na Lei de Drogas, pode ser ainda melhor visualizada a partir da análise de pesquisas a respeito da forma de abordagem dos policiais e também a respeito do perfil dos presos no Brasil.

Uma pesquisa² realizada pelo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional – trazendo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, de 2014, demonstrou que a população no brasil nesse ano já alcançava o número total de 607.731 presos. Uma população privada de liberdade que coloca o Brasil na 4º posição entre os 20 países com maior número de presos no mundo. Pela primeira vez, o número de presos no país ultrapassou a marca de 600 mil.

Dados dessa pesquisa demonstram que 31% dos presidiários estão dentro da faixa etária de 18 a 24 anos; 67% dos presos são da cor negra, ou seja, em cada 03 pessoas presas, 02 são negros. E também, ficou demonstrado por meio da pesquisa que 53% dos presos não completaram nem mesmo o ensino fundamental.

O tráfico foi considerado, através desse relatório da DEPEN, o crime que mais condena no Brasil, totalizando 55.920 presos por tráfico, 7.655 por associação ao tráfico, e 2.738 por tráfico internacional de drogas. O detalhe que confirma a seletividade penal na Lei 11.343/06 é que negros e pardos correspondem a 60% dos presos por tráfico.

A iniciativa conjunta da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), que recebeu o nome de Banco de Injustiças³, criado com o intuito de promover o debate jurídico acerca da falta de princípios constitucionais básicos na Lei de Drogas, divulgou um estudo realizado pelo Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), que recebeu o nome de Prisão Provisória e Lei de Drogas – Um estudo sobre o flagrante de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (2011). Nessa pesquisa foram entrevistados juízes, policiais, delegados, promotores e cidadãos que foram abordados pelos policiais.

Nesse estudo fica clara a questão da seletividade penal na lei 11.343/06 a partir da subjetividade presente no parágrafo 2º do artigo 28 da lei, um promotor entrevistado deu seu depoimento a respeito dessa questão na página 111 dessa pesquisa, dizendo que

 Não temos uma diferenciação muito clara entre traficante e usuário e não sei se o legislador vai conseguir fazer isto porque hoje em dia as pessoas são apreendidas com 15g de maconha, etc. É para uso próprio, é para uso dos amigos ou é para vender? Então esta diferenciação nós não temos na legislação. E eu não sei se a lei é capaz de nos dar esta nitidez. (JESUS et al, 2011, p. 111)

Com relação ao fato das pessoas não pertencentes às classes dominantes serem os principais alvos da repressão a respeito da Lei de Drogas, um defensor público argumentou

Porque não há pessoas pegas em locais nobres da cidade? Fica claro que o foco repressivo é dado aos pobres. A pesquisa deveria ter contato com os presos para coletar outras informações sobre a ocorrência que não aparecem nos autos de prisão em flagrante. (JESUS et al, 2011, p. 102)

Vários são os pontos dessa pesquisa que poderiam ser repassados no presente trabalho, porém o depoimento de um policial militar se mostra suficiente para demonstrar a questão da seletividade penal. Um Policial Militar quando questionado a respeito do que significava para ele uma atitude suspeita, disse:

Atitude suspeita é um gesto de anormalidade, dependendo do local, é atitude suspeita. Um cara de terno numa favela é normal?! Ou ele foi buscar [droga] pra consumo ou ele tá envolvido com o tráfico. O mais engraçado é que a população tem essa noção. Dei aula na escola de soldados. Os soldados me questionavam: é atitude suspeita um negro num AUDI? Depende do local, das circunstâncias. É uma reunião de fatores. Às vezes o cara olha e trava [indicando atitude suspeita]. (JESUS et al, 2011, p. 36)

Fica evidenciado, nas pesquisas citadas que o tratamento é desigual, a seletividade existe, e quem sofre são os mais pobres, os negros, e os indivíduos de pouca instrução escolar.

Portanto, após análise da bibliografia acerca do tema, com opiniões de renomados juristas, profissionais de diversas áreas, e também de pesquisas sobre direito penal e sistema prisional, demonstra-se que o disposto no artigo 28, § 2° da Lei 11.343/06 possui um caráter discriminador, colaborando, dessa maneira, com a seletividade no direito penal brasileiro.   

Sobre o autor
Marcelo Matte Rodrigues

Pós graduando em Gestão Financeira - Faculdade Metodista de Santa Maria - FAMES; Bacharel em Direito - Universidade Franciscana - UFN; Membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal Econômico - CEEDPE - Canal Ciências Criminais. Santa Maria/RS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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