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A seletividade no direito penal e a Lei de Drogas (lei 11.343/06) no Brasil

A seletividade no direito penal e a Lei de Drogas (lei 11.343/06) no Brasil

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SUMÁRIO: Introdução; 2. Exclusão social e Discriminação; 3. Seletividade Penal no Brasil; 3.1. Criminalização Primária; 3.2. Criminalização Secundária; 4. Lei de Drogas (Lei 11.343/06) e o tratamento dado ao usuário e ao traficante; 5. Seletividade Penal e a Lei 11.343/06; 5.1. Criminalização Secundária na Lei de Drogas com relação ao crime de tráfico; Conclusão; Notas; Referências Bibliográficas.

RESUMO:Este trabalho trata da seletividade penal na Lei 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, a partir da análise da redação do artigo 28, §2º da lei. O parágrafo citado é caracterizado pela falta de critérios objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante. O objetivo específico consiste em analisar se essa falta de objetividade acaba por colaborar com a seletividade penal na Lei de Drogas. A metodologia é o Método Dedutivo, tendo a revisão bibliográfica, fundamentação teórica realizada através de levantamento e análise da literatura e fatos sobre o tema como técnica de pesquisa. Será realizada uma análise a respeito da exclusão social no Brasil, para posteriormente, ser abordada a seletividade no direito penal e a criminalização primária e secundária. Em seguida, examina-se a Lei 11.343/06, para em seguida ser abordada a seletividade na Lei de Drogas, e da verificação dos perfis dos presos por tráfico no Brasil. Ao final do presente estudo chega-se a conclusão de que o artigo 28, §2º da Lei 11.343/06 possui um caráter discriminador, colaborando, dessa maneira, com a seletividade no direito penal brasileiro.

Palavras chave: Seletividade. Lei de Drogas. Subjetividade. Criminalização.

ABSTRACT:This work deals with the criminal selectivity in Law 11.343/06, known as Drug Law starting from the article analysis 28, paragraph 2 of the law. The quoted paragraph is characterized by the lack of objective criteria to differentiate user and dealer. The specific objective is to analyze whether this lack of objectivity ends up collaborating with criminal selectivity in Drug Law. The methodology is the Deductive Method, and the literature review, theoretical foundation conducted through survey and analysis of literature and facts about the topic as a research technique. An analysis about social exclusion in Brazil will be held, later will be addressed selectivity in criminal law and primary and secondary criminalization. Then examines the Law 11.343 / 06, to then be addressed in the selectivity of Drug Law, and check the profiles of those arrested for trafficking in Brazil. At the end of this study comes to the conclusion that Article 28, paragraph 2 of Law 11.343 / 06 has a discriminating character, collaborating in this way with the selectivity in the Brazilian criminal law.

Key words: Selectivity. Drug Law. Subjectivity. Criminalization.


INTRODUÇÃO

Este estudo aborda a seletividade penal no Brasil, destacando-a, a partir da análise da atual Lei de Drogas (Lei 11.343/06) e, mais especificamente pelo exame contextualizado do disposto no artigo 28, § 2º dessa lei.

Nesse sentido pretende-se compreender a redação do parágrafo segundo do artigo 28, e a sua influência na ocorrência da seletividade quanto aos meios de determinação de quem é considerado traficante e quem é usuário. Essa diferenciação se mostra vaga na lei, e a apreciação do § 2º, do artigo 28, responsável por demonstrar quais são os meios de diferenciar usuário e traficante, é essencial para buscar identificar se a seletividade acaba sendo estimulada pelo disposto nesse parágrafo.

Justifica-se a escolha do tema pela relevância teórica perante a comunidade científica e acadêmica no aperfeiçoamento dos estudos sobre o assunto, o que é demonstrado nesse texto por meio de estudos bibliográficos de diversas áreas do conhecimento, como sociologia, história, criminologia e direito.

O trabalho desenvolvido possui a revisão bibliográfica como técnica de pesquisa e, como metodologia o Método Dedutivo, partindo de princípios e análise do comportamento social (geral) para análise do específico. Tendo como base a fundamentação teórica por meio do levantamento e análise da bibliografia acerca do tema. Para um exame mais completo e detalhado do assunto, é imprescindível recorrer ao método analítico transdisciplinar.

O estudo inicia identificando a questão da exclusão social e a discriminação na sociedade brasileira. Demonstrando que o processo excludente faz parte da história do país, onde indivíduos não são tratados de forma igual, e sim seletiva. O texto irá expor que muitas pessoas acabam sendo vistas como inferiores, fazendo com que estes indivíduos deixem de ter acesso a direitos básicos e fundamentais, tornando-se alvos de todo tipo de discriminação. Esses cidadãos são "colocados de lado" pela sociedade, e muitos daqueles historicamente excluídos, como os indivíduos não-brancos, pobres e índios, acabam morando em pontos afastados e precários das cidades.

Após parte-se para a análise da seletividade penal no Brasil, demonstrando o poder seletivo como característica do sistema penal e também a influência da criminalização primária, realizada pelo legislador no momento da criação da lei, e da criminalização secundária, realizada pelo poder policial e judiciário como forma de confirmação da criminalização primária, para a ocorrência dessa seletividade penal.

Posteriormente é realizada uma análise a respeito da Lei 11.343/06, Lei de Drogas, ressaltando seu contexto histórico, vertentes dirigidas ao traficante e ao usuário e como é feita a diferenciação dessas duas figuras. Esse é o ponto principal do trabalho, o fato da diferenciação ser realizada a partir de critérios pouco objetivos. Passando então, para uma abordagem da seletividade penal na Lei de Drogas, a partir da análise da criminalização primária e secundária presentes nessa lei, resultando no processo seletivo e criminalizante.

Por fim, destaca-se a seletividade penal na Lei 11.343/06 através de resultados de pesquisas, onde fica evidenciado que a Política de "guerra contra as drogas" se mostra ultrapassada, visto o grande números de presos por tráfico, sendo a maioria desses presos pertencentes às classes historicamente perseguidas, excluídas e criminalizadas. Demonstrando que um dos objetivos da criação da Lei 11.343/06 que fora a diminuição da população carcerária, deixando de punir com a pena privativa de liberdade o usuário, não resultou em êxito, visto que o que ocorre após a criação da lei é o aumento do número de prisões por tráfico de drogas, mantendo, inclusive, a estigmatização referente ao perfil da maioria da população carcerária, por ter, a redação do parágrafo em debate, meios subjetivos de diferenciar traficante e usuário, deixando assim, lacunas para a ocorrência da seletividade penal.


EXCLUSÃO SOCIAL E DISCRIMINAÇÃO

“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem, lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.”

Boaventura de Sousa Santos

A exclusão social faz parte do histórico brasileiro. Mostra-se como uma clara consequência da desigualdade social, pois é em decorrência do aumento dessa desigualdade que a exclusão surge, e suas consequências são devastadoras. Da exclusão social resultam fenômenos sociais como desemprego, pobreza e discriminação.

A exclusão causa um distanciamento do indivíduo. Sem recursos ele é “empurrado” para fora ou para a periferia da sociedade, pelo fato de não fazer parte das representações sociais dominantes (FERNANDES, 1998, p. 16).

Para Bader Sawaia (2002) a exclusão pode ser definida como

... processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas (...) não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros (...) é produto do funcionamento do sistema. (SAWAIA, 2002, p. 09) 

Nesse trecho fica evidenciado que a exclusão social não é algo passageiro, não é um estado temporário, mas sim uma consequência da desigualdade social e do modo como as relações humanas funcionam. A exclusão começou a ser notada de forma mais abrangente a partir da passagem do termo pobreza para exclusão, que acabou com a ilusão de que as desigualdades sociais eram temporárias, como afirma Elimar Nascimento (1995), demonstrando desta forma que

A exclusão emerge, assim (...) como um sinal de que as tendências do desenvolvimento econômico se converteram. Agora – e significativamente – no momento em que o neoliberalismo se torna vitorioso por toda parte, as desigualdades aumentam e parecem permanecer. (NASCIMENTO, 1995, p. 24)

Uma das consequências mais visíveis e cruéis da exclusão social é a discriminação que ocorre com aqueles que são excluídos. Aldaíza Sposatti (1996) fala sobre a chamada “apartação social”, onde a desigualdade social, política e econômica na sociedade brasileira alcançou um nível tão significativo que, segundo a autora, se torna incompatível com a democratização da sociedade. Sobre discriminação e exclusão a autora discorre que

No Brasil a discriminação é econômica, cultural e política, além de étnica. Este processo deve ser entendido como exclusão, isto é, uma impossibilidade de poder partilhar o que leva à vivência da privação, da recusa, do abandono e da expulsão inclusive, com violência, de um conjunto significativo da população, por isso, uma exclusão social e não pessoal. Não se trata de um processo individual, embora atinja pessoas, mas de uma lógica que está presente nas várias formas de relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade brasileira. Esta situação de privação coletiva é que se está entendendo por exclusão social. Ela inclui pobreza, discriminação, subalternidade, não equidade, não acessibilidade, não representação pública. (SPOSATTI, 1996, apud SAWAIA, 2002, p. 20)

Evidencia-se que a exclusão social ocasiona, portanto, uma série de lamentáveis situações, como a imagem de que o indivíduo excluído não é igual aos outros, e que por isso deve ser “evitado”, ou até mesmo temido, já que muitos desses indivíduos são vistos como marginais e criminosos. Essa ideia não é nova no Brasil. A história do país está cheia desses processos sociais excludentes, excluindo desde sempre índios e camponeses no campo, e na cidade excluindo migrantes, favelados, encortiçados, sem tetos (MARTINS, 1993, Apud SAWAIA, 2002, p. 27).

O Brasil é um país, notadamente, possuidor de uma diversidade cultural e racial considerável. Acontece que considerável também é o preconceito e a discriminação contra classes sociais mais baixas e também indivíduos historicamente excluídos e até mesmo perseguidos.

 A autora Regina Célia Pedroso (2000) afirma que no passado brasileiro

... a finalidade última estava em proteger-se, através da perseguição aos indivíduos indesejáveis, que ameaçavam a sua segurança. Assim, os hereges foram identificados e punidos como inimigos e criminosos. Depois, os negros, os índios e os pobres em geral foram culpabilizados como “inferiores”, sofrendo penas severas. Criou-se, a partir dessa mentalidade excludente, estigmas de 'cor', 'religião', 'raça' e 'diferenciação social', que, absorvidos pela população, moldaram um contexto de autoritarismo, que faz parte da personalidade de todo brasileiro até os dias atuais. (PEDROSO, 2000, p. 05)

Muitos indivíduos são “colocados de lado” no Brasil, como se não fossem iguais aos outros, como se fossem considerados seres sem importância. Isso faz com que essas pessoas não tenham acesso a direitos básicos e fundamentais, e se tornam alvo de todo tipo de discriminação. São vistos como marginais, considerados sujeitos a serem evitados, e a desigualdade social faz com que esse tipo de pensamento e atitude só aumentem.

Favelas e loteamentos clandestinos são exemplos do descaso com pessoas de baixa renda, onde moram muitos daqueles que são historicamente excluídos, como os indivíduos não-brancos, índios, etc. Com relação à habitação a exclusão também ganha visibilidade como falta de acesso aos benefícios da urbanização (JACOBI, 1982, p. 53).  No mesmo sentido Sawaia (2002) argumenta que

Os pobres são obrigados a viver numa situação de isolamento, procurando dissimular a inferioridade de seu status no meio em que vivem e mantendo relações distantes com todos os que se encontram na mesma situação. A humilhação os impede de aprofundar, desse modo, qualquer sentimento de pertinência a uma classe social. (SAWAIA, 2002, p. 69)   

A sociedade, portanto, não trata todos igualmente, ela faz isso de maneira seletiva. Alguns são considerados indivíduos de direito, e outros considerados indivíduos sem direito algum.

Porém a discriminação não ocorre somente entre particulares, ela demonstra seu lado mais sombrio no momento em que os excluídos são vistos como uma ameaça, para o bem estar e a segurança da sociedade, pelas autoridades.


SELETIVIDADE PENAL NO BRASIL   

Os sistemas penais não são perfeitos. Possuem falhas e vícios, e a seletividade penal é um exemplo. Segundo Zaffaroni (1991)

...a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. (ZAFFARONI, 1991, p. 15)

Existe, portanto, uma característica perturbadora nos sistemas penais, incluindo o sistema brasileiro, que é o poder seletivo. A principal influência desse poder é a eleição de alguns candidatos à criminalização, submetendo-os à decisão judicial que pode, então, permitir a continuação da ação criminalizante já iniciada (ZAFFARONI, 1996, p. 245).

Portanto, ocorre, primeiramente, a escolha de quem será criminalizado, e essa escolha possui como ponto de partida um estereótipo criado pela sociedade com relação a determinados grupos de indivíduos.  Após essa “escolha”, ocorre a confirmação da criminalização seletiva, quando o poder judiciário decide permitir ou não o prosseguimento dessa prática.

Entende-se por seletividade o ato de selecionar algo, a partir de uma escolha fundamentada e criteriosa. No direito penal essa seleção não deveria ocorrer, visto que o direito penal deve seguir o principio da isonomia, sem haver discriminação e criação de estereótipos, porém, como afirmado por Bianchini (2000)

O atual sistema penal faz exatamente o contrário, visto que seleciona, marginaliza e exclui, cada vez mais, os menos favorecidos financeiramente, pois não se encaixam no ‘modelo ideal’ preconizado pela classe dominante. Com efeito, temos ainda hoje, guardadas as devidas proporções, o que acontecia antigamente com a diferenciação entre nobres e plebeus, isto é, o direito como instrumento para manter e perpetuar a estratificação de classes sociais. (BIANCHINI, 2000, p. 63)

A seletividade existente no direito penal é fonte de uma conduta discriminatória histórica, e ainda hoje muito forte no Brasil, demonstrando que a consciência da gravidade das consequências causadas pelas várias formas de discriminação não foi rápida, e que muitos indivíduos ainda não aceitam que condutas discriminatórias não são exceções, como afirma Silva (2001, p. 48).

O artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal dispõe que um dos objetivos fundamentais do Brasil é, sem preconceitos, promover o bem de todos. Portanto, a discriminação é expressamente proibida (SILVA, 2003, p. 222).

No entanto, e a despeito da diretriz constitucional, os preconceitos e discriminação existem e, no sistema penal, acabam influenciando na criminalização de certos indivíduos estigmatizados pela estrutura social, sobretudo por serem pretos, pobres, índios, etc., ou por fugir do “padrão” de normalidade estabelecido.

O processo de criminalizar um indivíduo pode ser dividido em duas partes, a criminalização primária e a criminalização secundária, ambas possuindo efeitos diretos na sociedade. Esses dois tipos de criminalização podem ser considerados etapas de seleção e serão explicados a seguir para melhor compreensão de sua contribuição para a seletividade no sistema penal brasileiro.

Criminalização Primária   

Não é novidade o entendimento de que ao Estado cabe o poder-dever exclusivo de punir o cidadão que comete um crime. E esse entendimento ganha status de legítimo ao ser decidido que cabe aos representantes do povo a criação das leis que norteiam o direito penal. Portanto, a partir da vontade do legislador, certas condutas são consideradas criminosas, condutas escolhidas para compor a legislação penal. Nesse momento de eleger a conduta como sendo criminosa que ocorra a criminalização primária.

Essa legitimação mascara a existência do pensamento de perseguição às minorias também existente entre os representantes do povo. E isso se evidencia na criminalização primária, que segundo Zaffaroni (2011)

Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se de um ato formal fundamentalmente programático: o deve ser apenado é um programa que deve ser cumprido por agencias diferentes daquelas que o formulam. Em geral, são as agências políticas (parlamentos, executivos) que exercem a criminalização primária, ao passo que o programa por elas estabelecido deve ser realizado pelas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). (ZAFFARONI, 2011, p.43)

Ou seja, a criminalização primária se evidencia na produção legislativa, que acaba influenciando em uma maior repressão a determinados grupos. Mesmo que essa repressão específica não seja expressa, algumas questões de natureza subjetiva acabam por permitir ou autorizar a arbitrariedade dos agentes da criminalização secundária, que será tratada posteriormente. Como afirma Baratta (2013)

No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, a criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados. (BARATTA, 2013, p. 176)

Essa eleição do comportamento que será considerado como criminoso tem por base o entendimento da sociedade ao momento da criação da lei. Assim, muitas vezes, algo que anteriormente não era considerado crime, passa a ter caráter criminoso, assim como, no futuro, essa mesma conduta pode vir a deixar de ser crime. Isso acaba confirmando que crime é aquilo que é “rotulado” como tal, a partir do entendimento do legislador.

Evidencia-se que esse entendimento do legislador acaba por, muitas vezes, imunizar as condutas que são características das classes dominantes, e por criminalizar os comportamentos normalmente atribuídos às classes sociais mais baixas (BARATTA, 2013, p. 165). Estas acabam sendo punidas de forma mais rigorosa.

Criminalização primária é deste modo, o “ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas” (ZAFFARONI et al, 2003, p. 43).

Portanto, os indivíduos historicamente perseguidos são as maiores vítimas das consequências da criminalização primária. Que acaba sendo confirmada com o segundo tipo de criminalização, a criminalização secundária.

Criminalização Secundária

A criminalização primária existe, como referido, no momento da atividade legislativa designa ou escolhe o ato, pessoa ou grupo como sendo “criminoso”. Ela está presente no sistema penal brasileiro e também em outros sistemas diversos, porém, ela só é efetivada a partir da existência de outra etapa de seleção, a criminalização secundária.

A criminalização secundária ocorre após o estabelecimento da legislação penal, é no momento em que o Estado materializa a vontade do legislador. Seus operadores não são mais os legisladores, mas sim a polícia (militar, civil e federal), assim como promotores de justiça e judiciário. Aqui ocorre a prática da estigmatização realizada na criminalização primária, ou seja, os indivíduos escolhidos para serem levados ao judiciário para assim serem ou não considerados réus ou culpados são conhecidos na criminalização secundária.

Com relação à questão de o indivíduo historicamente marginalizado ser visto como criminoso nessa fase da seleção, Soares (2005) argumenta que

A sujeição criminal é exatamente esse processo através do qual um cidadão incriminado é transformado num não-homem, em que o criminoso é transformado em “bandido”, isto é, num tipo social cuja afinidade com outros tipos e camadas sociais está estabelecida no tempo de longa duração de nossa história. Em nome de uma atitude racionalmente preventiva, construímos todas as condições através das quais iremos punir preferencialmente – de diversas maneiras – pessoas que, mesmo não estando a cometer nenhum crime, são suspeitas de serem potencialmente propensas a cometê-lo. Bandidos metafóricos, bandidos metonímicos, bandidos que são os presos de sempre.  (SOARES, 2005, p. 11)

Ocorre, na criminalização secundária, uma repressão seletiva, seguida por uma possível punição do judiciário, que também se torna seletiva, pois acaba por corroborar com a atitude anterior. 

Uma característica do poder seletivo é a maior repressão em determinados locais das cidades, pontos considerados de alta periculosidade, onde os residentes são vistos como criminosos, muitas vezes, somente por habitarem tal local.

Muitos são os bairros das cidades brasileiras considerados perigosos, possuindo alto índice de crimes. Isso pode ser explicado não pelo fato de nesses lugares residirem pessoas propensas ao crime, mas sim por existir uma maior repressão e atenção policial a esses locais. Como explica D'elia Filho (2006)

Em se tratando de segurança pública, não são os índices que determinam a política, mas a política que determina os índices. Assim, os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia judiciária do que a realidade criminal, conforme observação do coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira ao destacar o comentário de Lola Anyiar de Castro de que a cifra oculta da criminalidade enfraqueceu o papel das estatísticas como fonte precisa de uma interpretação do fenômeno criminal: “uma multiplicação dos delitos nas estatísticas pode significar somente uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência dos tribunais e não que a delinquência tenha aumentado”. (D’ELIA FILHO, 2006, p. 184)   

Portanto a criminalização secundária pode ser entendida como

A ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agencia judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo (ou seja, o avanço de uma série de atos em principio públicos para assegurar se, na realidade, o acusado praticou aquela ação. (ANYIAR DE CASTRO, 1983, p. 68)

Fica evidenciado que a política criminal possui vícios muitas vezes consequentes de estigmatizações históricas, contra não-brancos, pobres e outros indivíduos marginalizados historicamente. A prática da criminalização secundária acaba por desvendar aqueles que são efetivamente punidos pelo sistema repressivo do Estado, predominantemente, os membros das camadas sociais inferiores. A violência pode ser considerada uma consequência desse comportamento, como demonstra Misse (2005)

Já se disse com propriedade que a violência urbana é uma representação social de praticas, conflitos, relações e eventos muito diversos, aglutinados numa mesma constelação simbólica. Sabemos também o quanto essa aglutinação coloca entre parênteses constrangimentos e opressões estruturais – econômicas, politicas, culturais – para direcionar o foco para seus efeitos violentos individualizados nas relações interpessoais ou em conflitos e acertos de conta inerentes aos mercados desregulados, ilegais ou ilícitos, ou ainda aos confrontos legais e ilegais entre polícia e criminosos. (MISSE, 2005, p. 11)

Deste modo, entende-se que a criminalização primária ocorre no momento da criação da lei, pelo legislador, que criminaliza uma conduta, muitas vezes através de uma redação subjetiva que deixa brechas para interpretações diversas e que podem servir como forma de reprimir uma parte específica da sociedade, e a criminalização secundária é a legitimação da criminalização primária, quando agências policiais e poder judiciário atuam na repressão daquilo que foi criminalizado anteriormente.

A Lei 11.343/06, Lei de Drogas, possui esses dois tipos de criminalização, seu artigo 28, § 2º é tema de diversos debates por possuir uma redação demasiadamente subjetiva, mas antes de destacar essa questão, é necessário entender um pouco mais sobre a lei que criou o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas.


LEI DE DROGAS (LEI 11.343/06) E O TRATAMENTO DADO AO USUÁRIO E AO TRAFICANTE

A vigente Lei n° 11.343/06 proclama a criação do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas – SISNAD. Em seu artigo 3º evidencia-se a finalidade de sua criação, demonstrando que na lei estão presentes duas vertentes, a vertente que se dirige ao produtor e traficante, e a que se destina ao usuário (GOMES et al, 2006, p. 02).

A lei, portanto, distingue essas duas questões e também especifica como o indivíduo será processado. A distinção subjetiva presente na Lei 11.343/06 influencia na criação de estereótipos sobre a figura do usuário, que acaba, muitas vezes, sendo confundido com o traficante.

Essa confusão se mostra extremamente prejudicial ao modo de lidar com o usuário, já que este não possui controle algum sobre o comportamento do traficante, não sendo possível ser atribuído a ele esse controle ou condução do comportamento doloso de quem pratica o tráfico (BOTTINI, 2015, p. 29). Portanto, essa confusão se comprova inaceitável, e confirma a ideia errônea de que a população consumidora é a grande culpada pelo tráfico.

A partir de seu artigo 27 estão previstos os crimes da Lei de Drogas. O uso ou consumo é considerado um dos crimes da Lei, estando expresso no caput do artigo 28, tendo as possíveis penas previstas nos incisos I, II e III (BRASIL, 2006), da seguinte forma:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Nota-se que, nos casos de uso ou consumo não é aplicada a pena privativa de liberdade.

Como explicam Mendonça e Carvalho (2007, p. 20-21):

O que prevê a nova Lei é a alteração substancial do enfoque social sobre as drogas, com a adoção de regime diferenciado para a prevenção do uso e a repressão ao tráfico. (...) resguardando as medidas repressivas para o traficante, enquanto para o usuário as medidas são de proteção

O artigo 28 trata das condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas sem autorização (BRASIL, 2006), sendo que essas condutas descritas devem ser praticadas para uso pessoal (Gomes et al, 2006, p. 10). O modo utilizado para definir se essa conduta é ou não praticada para uso pessoal é o que possibilita a existência da seletividade penal na Lei de Drogas.

Como meio de definir quem é usuário e quem é traficante, a Lei de Drogas peca por não determinar, de maneira clara o bastante, essa diferenciação. Como afirma Assis Brasil e Weigert (2006):

A lei 11.343/06, enaltecida por muitos pela descaracterização do uso de drogas, não resolveu um dos maiores problemas existentes na criminalização do tráfico e consumo de drogas no Brasil, qual seja, o da diferenciação, na prática, entre tais condutas criminosas. O que se pretende analisar é o fato de que a distinção entre usuário e traficante, na justiça penal brasileira, é realizada de forma seletiva. (WEIGERT, 2006, p. 97)

A redação do parágrafo 2º do artigo 28, da lei 11.343/06, está formulada da seguinte forma:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

É possível perceber, portanto, que o parágrafo, em nenhum momento nomeia objetivamente formas de determinar se era para consumo pessoal que a droga destinava-se. Não existe uma quantidade determinada, não existe nenhum motivo que explique o porquê de ser relevante saber o local da abordagem, e muito menos que demonstre ser relevante conhecer das circunstâncias sociais e pessoais do agente.

A falta de critérios objetivos faz com que a determinação de ser a droga apreendida para uso pessoal ou não, seja realizada de acordo com critérios pessoais, desde critérios da polícia, até dos magistrados. A criminalidade acaba sendo distribuída desigualmente, de acordo com as características pessoais dos indivíduos.

A partir dessa subjetividade e falta de critérios com relação à diferenciação entre usuário e traficante volta-se à questão da visão dos indivíduos excluídos historicamente serem vistos como criminosos, ocasionando em uma seletividade penal, dessa vez, com relação ao crime de tráfico.


SELETIVIDADE PENAL E A LEI 11.343/06

A lei 11.343/06 surgiu com a novidade de não mais punir com a pena privativa de liberdade o usuário. Porém, criou uma confusão ao não determinar objetivamente e de maneira clara quem é considerado traficante e quem é usuário. A discriminação no direito penal se mostra nos inúmeros dados e estudos que demonstram o perfil dos presos. E infelizmente, no Brasil, uma vez preso, essa estigmatização demora a sumir, e na maioria das vezes não desaparece. Muitas vezes ocorre uma posterior perseguição de quem foi preso, sendo considerados suspeitos constantes pelas autoridades, e incrementando a estigmatização social (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, P. 74).

Ocorre uma falta de critérios claros para a diferenciação entre usuário e traficante, dando brecha para a discriminação, seletividade e discricionariedade, tornando evidente que a lei penal não é igualitária à todos, sendo o status de criminoso difundido desigualmente entre os indivíduos, de acordo com a classe social a que são pertencentes (BARATTA, 2002, p. 162).

As classes menos favorecidas acabam, indiscutivelmente, sendo as mais afetadas pela subjetividade presente no parágrafo 2° do artigo 28 da Lei 11.343/06. No sentido da seletividade e discriminação dos menos favorecidos, Maria Lucia Karam expõe

(...) os escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vítima dos grupos de extermínio. (...) essa desigualdade, tão facilmente constatável, é, no entanto, encoberta por uma propaganda tão enganosa e eficaz, que, apesar disso, consegue “vender” a idéia da solução penal como alguma coisa desejável, até mesmo para os setores mais conscientes e progressistas. (BIANCHINI, 2000, p. 62)

A questão do preconceito vale a pena ser comentada, pois é determinante para o entendimento do que está sendo discutido no presente trabalho. Entra, nessa parte, a influência da associação entre pobreza e crime, que possui como um dos efeitos, uma concentração maior da polícia sobre essas populações estigmatizadas, com a criação de roteiros estereotipados (MISSE, 2006, p. 129).

No mesmo sentido, Assis Brasil e Weigert (2006):

Quanto a isso, pensasse que a nova Lei de Drogas, ao descarcerizar o delito de uso, potencializou a discricionariedade dos agentes policiais. Atualmente, a diferença de punição entre tráfico e consumo é ainda maior e a discricionariedade do policial elevou-se ainda mais. Está em grande medida nas mãos deles a escolha entre imputar alguém à pena mais gravosa, comparada a um delito hediondo, ou menos severa (delito de menos potencial ofensivo). (WEIGERT, 2006, p. 103)

A política de drogas no Brasil se mostra ultrapassada, pois usa já há muito tempo o usuário como alvo para a tentativa de inibir o tráfico. O que não gera resultados positivos e também não se mostra justo, pois é difícil considerar justo impor um mal a alguém com o objetivo de que outros omitam o cometimento de um outro mal (ROXIN, 1993, p. 24).

Foi criada, no Brasil, uma “guerra contra as drogas“, uma idéia importada dos Estados unidos de uma política implementada pelo ex-presidente Nixon na década de 70. Em entrevista dada ao site Brasil de Fato em 2010, a Juíza aposentada Maria Lucia Karam, uma das principais críticas ao uso do direito penal para reprimir o usuário, defendeu a idéia de que a “guerra contra as drogas” não tem como alvo às drogas, portanto não se dirige contra coisas, mas sim contra pessoas, tendo como alvo quem produz, quem comercializa e quem compra.

O que se evidencia mais, a cada dia que passa, é o fato de que a falta de objetividade para a diferenciação entre traficante e usuário ocasiona uma discricionariedade das autoridades, decidindo quem irá ser considerado traficante e quem irá ser identificado como usuário através dos meios subjetivos presentes no parágrafo 2º da Lei 11.343/06.

Nesse ponto se encontra a criminalização primária na Lei de Drogas, onde o legislador criminaliza a conduta de portar drogas e estabelece os meios de distinção entre usuário e traficante. Porém, a subjetividade de como essa distinção é realizada, acaba escancarando uma arbitrariedade demasiada no momento em que ocorre a criminalização secundária.


Criminalização Secundária na Lei da Drogas com relação ao crime de tráfico

Como já esclarecido anteriormente, a criminalização secundária é a legitimação da criminalização primária. Após a criação da lei pelo legislador, e é demonstrada através da atuação dos poderes punitivos do Estado com relação aquilo que fora determinado pela lei.

A redação do artigo 28, §2º da Lei de Drogas se mostra excessivamente subjetiva, não possuindo critérios claros e objetivos de determinação de quem é considerado usuário e quem é considerado traficante. Isso acaba contribuindo para que essa distinção seja realizada através de estereótipos historicamente criados e já pertencentes ao pensamento da sociedade.

Uma melhor redação da legislação poderia evitar essa discricionariedade e discriminação, colaboraria proporcionando a todos o maior bem estar possível (BECCARIA, 1997, p. 27), e evitando que as questões pessoais como locais de apreensão, por exemplo, continuem sendo utilizadas como forma de seletividade de indivíduos.

Essa discricionariedade começa, muitas vezes, na própria redação da legislação, como afirma Lola Aniyar de Castro (1983)

Quando falarmos nos mecanismos de criação das normas penais, veremos que não há uma natureza própria do delitivo, mas que o delitivo é imposto de cima pela pessoa ou grupo que tem mais poder; que isso depende da posição de poder, e que esta posição de poder determinará que os interesses, as crenças e a cultura dos que usufruem essa posição de predomínio definam o que é delitivo em uma sociedade.  (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 15)

A discricionariedade que vem do legislador, através da criminalização primária e que acaba estimulando, mesmo que indiretamente, a seletividade penal, por meio da criminalização secundária, demonstra certa característica tendenciosa de punição mais rigorosa aos delitos que são mais típicos das classes menos favorecidas.

 Percebe-se uma desigualdade na forma de tratar os indivíduos, algo extremamente condenável, principalmente no direito penal que deve proporcionar um tratamento igualitário, utilizando-se do princípio da igualdade, não levando em conta a classe social do agente, como o comentado por Ferrajoli “um princípio complexo, o qual inclui as diferenças pessoais e exclui as diferenças sociais” (2006, p. 834).

Como forma de definição para saber se o preso é usuário ou traficante, o magistrado acaba por levar em conta a quantidade de droga apreendida, o local da abordagem, as condições em que a ação se desenvolveu, circunstâncias sociais e pessoais, apreciando ainda a os antecedentes. Acontece que essa interpretação não é somente desempenhada pelo juiz, mas também pela polícia, no momento em que prende, e pelo promotor, ao denunciar.

O jurista Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça, em entrevista realizada em 2015 para o site G1¹, define que a respeito da redação do artigo 28, §2º da Lei de Drogas "o resultado prático é que pessoas pobres são presas como traficantes e os ricos acabam sendo classificados como usuários. Um sistema assim não é bom para ninguém." Abramovay ainda complementou que "as prisões por drogas hoje são uma fonte perversa de criminalização da pobreza". Corroborando, portanto, com o entendimento de que ocorre a seletividade na Lei de Drogas a partir da redação do artigo estudado e que acaba, desse modo, punindo os indivíduos não pertencentes às classes dominantes.

A mesma reportagem também entrevistou a ex-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária, Maria Tereza Uile Gomes, que argumentou o fato da Lei 11.343/06, em relação ao modo de diferenciação entre usuário e traficante deixou uma 'lacuna' a ser preenchida, afirmando que ocorre a falta de critérios e requisitos objetivos de regulamentação, e insitiu que a polícia não possui um critério de quem é usuário ou quem é traficante. Por fim a reportagem, por meio de dados de pesquisa do Infopen, que o tráfico é crime que mais encarcera, havendo um aumento de 339% desde a criação da lei no ano de 2006.

A criminalização secundária, na Lei 11.343/06, demonstra uma violação ao princípio da isonomia, sendo evidenciado que “o princípio constitucional da isonomia é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela” (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46).

A seletividade penal, na Lei de Drogas, pode ser ainda melhor visualizada a partir da análise de pesquisas a respeito da forma de abordagem dos policiais e também a respeito do perfil dos presos no Brasil.

Uma pesquisa² realizada pelo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional – trazendo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, de 2014, demonstrou que a população no brasil nesse ano já alcançava o número total de 607.731 presos. Uma população privada de liberdade que coloca o Brasil na 4º posição entre os 20 países com maior número de presos no mundo. Pela primeira vez, o número de presos no país ultrapassou a marca de 600 mil.

Dados dessa pesquisa demonstram que 31% dos presidiários estão dentro da faixa etária de 18 a 24 anos; 67% dos presos são da cor negra, ou seja, em cada 03 pessoas presas, 02 são negros. E também, ficou demonstrado por meio da pesquisa que 53% dos presos não completaram nem mesmo o ensino fundamental.

O tráfico foi considerado, através desse relatório da DEPEN, o crime que mais condena no Brasil, totalizando 55.920 presos por tráfico, 7.655 por associação ao tráfico, e 2.738 por tráfico internacional de drogas. O detalhe que confirma a seletividade penal na Lei 11.343/06 é que negros e pardos correspondem a 60% dos presos por tráfico.

A iniciativa conjunta da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), que recebeu o nome de Banco de Injustiças³, criado com o intuito de promover o debate jurídico acerca da falta de princípios constitucionais básicos na Lei de Drogas, divulgou um estudo realizado pelo Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), que recebeu o nome de Prisão Provisória e Lei de Drogas – Um estudo sobre o flagrante de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (2011). Nessa pesquisa foram entrevistados juízes, policiais, delegados, promotores e cidadãos que foram abordados pelos policiais.

Nesse estudo fica clara a questão da seletividade penal na lei 11.343/06 a partir da subjetividade presente no parágrafo 2º do artigo 28 da lei, um promotor entrevistado deu seu depoimento a respeito dessa questão na página 111 dessa pesquisa, dizendo que

 Não temos uma diferenciação muito clara entre traficante e usuário e não sei se o legislador vai conseguir fazer isto porque hoje em dia as pessoas são apreendidas com 15g de maconha, etc. É para uso próprio, é para uso dos amigos ou é para vender? Então esta diferenciação nós não temos na legislação. E eu não sei se a lei é capaz de nos dar esta nitidez. (JESUS et al, 2011, p. 111)

Com relação ao fato das pessoas não pertencentes às classes dominantes serem os principais alvos da repressão a respeito da Lei de Drogas, um defensor público argumentou

Porque não há pessoas pegas em locais nobres da cidade? Fica claro que o foco repressivo é dado aos pobres. A pesquisa deveria ter contato com os presos para coletar outras informações sobre a ocorrência que não aparecem nos autos de prisão em flagrante. (JESUS et al, 2011, p. 102)

Vários são os pontos dessa pesquisa que poderiam ser repassados no presente trabalho, porém o depoimento de um policial militar se mostra suficiente para demonstrar a questão da seletividade penal. Um Policial Militar quando questionado a respeito do que significava para ele uma atitude suspeita, disse:

Atitude suspeita é um gesto de anormalidade, dependendo do local, é atitude suspeita. Um cara de terno numa favela é normal?! Ou ele foi buscar [droga] pra consumo ou ele tá envolvido com o tráfico. O mais engraçado é que a população tem essa noção. Dei aula na escola de soldados. Os soldados me questionavam: é atitude suspeita um negro num AUDI? Depende do local, das circunstâncias. É uma reunião de fatores. Às vezes o cara olha e trava [indicando atitude suspeita]. (JESUS et al, 2011, p. 36)

Fica evidenciado, nas pesquisas citadas que o tratamento é desigual, a seletividade existe, e quem sofre são os mais pobres, os negros, e os indivíduos de pouca instrução escolar.

Portanto, após análise da bibliografia acerca do tema, com opiniões de renomados juristas, profissionais de diversas áreas, e também de pesquisas sobre direito penal e sistema prisional, demonstra-se que o disposto no artigo 28, § 2° da Lei 11.343/06 possui um caráter discriminador, colaborando, dessa maneira, com a seletividade no direito penal brasileiro.   


CONCLUSÃO

As ações ou omissões características da exclusão social e discriminação não ficam adstritas aos cidadãos comuns, elas acabam influenciando também às autoridades, sejam elas políticas, policiais ou judiciárias.

O fracasso da política de guerra contra as drogas é tão evidente que o Brasil está diante de uma discussão cada vez mais aprofundada de descriminalização das drogas. Tema que gera debates que envolvem especialistas de áreas diversas.

O que se conseguiu até hoje com a “Guerra às Drogas” no Brasil foi o aumento do consumo, da violência, da estigmatização e da população carcerária.

Modificar o modo como o sistema repressivo funciona passa por modificar a forma de pensar de seus integrantes, daí a dificuldade da mudança ser efetiva. O direito não deve ser preconceituoso e muito menos ser usado para reforçar a imagem, equivocada, de que a população de classe baixa é composta por indivíduos perigosos e propensos à prática de crimes.

O presente trabalho procurou demonstrar a exclusão social e discriminação na sociedade brasileira. Evidenciando que o processo excludente faz parte da história do país, onde indivíduos são tratados de forma seletiva, e não de forma igual.

Essa desigualdade de tratamento é visualizada também no direito penal, ocasionando na seletividade penal. Onde ocorre a eleição de alguns candidatos à criminalização, indo contra o principio da isonomia, que deve estar presente em todo sistema penal, sem haver discriminação e criação de estereótipos.

Na Lei de Drogas essa seletividade também está presente a partir da discricionariedade resultante da lei, e o perfil dos presos por tráfico demonstrados no trabalho por meio de pesquisas evidencia essa questão. As características dos presos demonstra a seletividade no momento da abordagem policial, assim como, no momento da denúncia do promotor e da sentença do magistrado. Demonstrando que, muito provavelmente, quando alguém pertencente às classes historicamente criminalizadas é abordado com alguma substância ilegal, será preso como traficante, enquanto quem não pertence a classe desses indivíduos, será muito mais facilmente considerado usuário.

O processo seletivo no sistema penal é evidenciado no momento em que as características dos presos se mostram tendenciosas. As ações características das classes dominantes acabam sendo abrandadas, enquanto condutas atribuídas às classes mais frágeis da sociedade são criminalizadas de maneira mais severa. Ocorre então, uma punibilidade seletiva, uma repressão desigual.

A criminalização primária, realizada pelo legislador, é legitimada pela efetivação da criminalização secundária, exercida pela polícia e pelo poder judiciário.

A falta de objetividade na redação do parágrafo 2º do artigo 28 da Lei 11.343/06 acaba colaborando, sim, com a seletividade penal. Visto que a subjetividade presente no artigo deixa espaço para a discricionariedade no momento da abordagem policial, e também no momento da denúncia e julgamento.

Essa discricionariedade e seletividade são evidenciadas por meio dos números demonstrados em pesquisas penitenciárias demonstrando que o perfil da maioria dos presos é o das classes sociais mais baixas, não-brancos e com pouca instrução escolar. Indivíduos, portanto, que são historicamente perseguidos e excluídos em nossa sociedade.   


NOTAS:

¹ Entrevista concedida ao site G1, na reportagem nomeada como “COM A LEI DE DROGAS, PRESOS POR TRÁFICO PASSAM DE 31 MIL PARA 138 MIL NO PAÍS”. Nessa reportagem se encontram as falas do jurista Pedro Abramovay, assim como de Maria Tereza Uile Gomes. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.html> Acesso em: 06 de Maio de 2016.

² Os dados trazidos com relação a população carcerária no Brasil estão presentes no relatório da INFOPEN. No relatório encontram-se gráficos, tabelas e outros meios de divulgação dos dados apurados na pesquisa sobre os presos e seus perfis. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf> Acesso em: 15 de Maio de 2016.

³ O Banco de injustiças é uma iniciativa para debater a carência de princípios básicos constitucionais na Lei 11.343/06. Disponível em: < http://www.bancodeinjusticas.org.br/> Acesso em: 12 de Maio de 2016.


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