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Da (in)constitucionalidade da "lei seca" em dias de eleição

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05/10/2008 às 00:00
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Resumo: Esta dissertação realizou estudo acerca da (in)constitucionalidade de resoluções e portarias editadas por agentes da Administração Pública e do Poder Judiciário no intuito de coibir a comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições. Analisou-se a validade de tais atos no contexto do Estado Democrático de Direito, frente aos princípios da Legalidade e da Segurança Jurídica. Discutiu-se a competência de Juizes Eleitorais, Secretários de Estado, Chefes de Polícia e Delegados de Polícia para instituir proibições gerais, criar, restringir, modificar e extinguir direitos e obrigações, bem como para tipificar condutas como crimes. Concluiu-se que, nas presentes circunstâncias, resoluções e portarias proibitórias do comércio e consumo, em logradouros públicos, de bebidas alcoólicas nos dias de pleito eleitoral não encontram respaldo jurídico legal no Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, inconstitucionais, uma vez que resoluções e portarias são atos normativos de natureza derivada, competentes tão somente para complementar e especificar lei preexistente, esta sim, o pressuposto de legitimidade e validade de resoluções e portarias. Constatou-se que as resoluções e portarias em questão encontram-se atuando como se leis fossem, pois não existe no ordenamento jurídico da Federação lei que proíba o comércio e consumo de bebidas alcoólicas em dias de eleições. Resoluções e portarias estão, portanto, criando obrigações, restringindo direitos e criminalizando condutas. Concluiu-se também que os agentes impositores de tais proibições não são legalmente competentes para tanto.

Palavras-Chave: resoluções; portarias; legalidade; Estado Democrático de Direito; Constituição.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DAS ESPÉCIES NORMATIVAS. 3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS RESOLUÇÕES E PORTARIAS PROIBITIVAS PRODUZIDAS POR JUÍZES DE DIREITO, SECRETARIAS DE ESTADO, CHEFES E DELEGADOS DE POLÍCIA E DA INCOMPETÊNCIA DE TAIS AGENTES. 4 A PROIBIÇÃO DA COMECIALIZAÇÃO E CONSUMO, EM LOCAIS PÚBLICOS, DE BEBIDAS ALCOÓLICAS EM DIAS DE ELEIÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. 5 PONTOS DE VISTAS AUTORITATIVOS E TEÓRICOS SOBRE O ASSUNTO. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


1.INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, em seu art. 1º caput dispõe que a República Brasileira constitui-se em Estado Democrático de Direito e em seu art.5º, II, preceitua que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (BRASIL, 2006), assertiva esta que deixa bem claro que somente a lei cria direitos e impõe obrigações positivas e negativas.

No entanto, observa-se uma explosão de atos emanados pelo Poder Público que criam ou restringem direitos e obrigações, pautados no irregular exercício do Poder Regulamentar e no arbitrário uso do Poder de Polícia.

Ênfase se dará, neste estudo, aos Institutos das Resoluções e das Portarias, mais especificamente no que concerne às resoluções e portarias baixadas pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados, Juizes Eleitorais e Delegados de Polícia, em dias de eleição, proibindo a comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas, devido ao fato de estarem, tais Resoluções e Portarias, impondo conduta específica, criando obrigações sem respaldo legal, fugindo a sua natureza de ato administrativo derivado.

O presente trabalho, portanto, discute a questão da "Lei Seca" em dias de pleito, que, apesar de ter como objetivo a garantia da ordem social, contradiz princípios basilares da Constituição da República de 1988 (a seguir CR/88), tais como os Princípios da Legalidade e da Segurança Jurídica, afrontando, destarte, o próprio Estado Democrático de Direito.

Analisar-se-ão a adequação normativa de resoluções administrativas e portarias para disciplinar direitos e obrigações, bem como a competência dos agentes que as editam. Para tanto, estudar-se-ão as espécies normativas constitucionais, previstas no art. 59 da CR/88, os atos regulamentares de natureza derivada objetos deste ensaio, a fundamentação do Poder Público para proibir a comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleições via resolução e portaria. Questionar-se-á, enfim, a real necessidade da adoção destas medidas para a manutenção da tranqüilidade do pleito eleitoral, objetivo com que se busca justificar a edição de resoluções e portarias, em tempos de eleições, proibindo comércio e consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos.


2. DAS ESPÉCIES NORMATIVAS

"Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (BRASIL, 2006), preceitua o artigo 5°, inciso II da Constituição da República Federativa do Brasil, reconhecendo o Princípio da Legalidade como Garantia e Direito Fundamental do cidadão no Estado Democrático de Direito brasileiro. Mais do que um Direito e Garantia do cidadão, o Princípio da Legalidade é indissociável do Estado Democrático de Direito, como teoriza José Afonso da Silva:

O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do estado Democrático de Direito, porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Toda a sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei. (SILVA, 2005, p.420).

No intuito, destarte, de proteger este princípio basilar do Estado Democrático de Direito, a Constituição da República prevê regras básicas de elaboração das espécies normativas, espécies estas previstas no art. 59 da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 2006). Segundo Alexandre de Moraes:

Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras do processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. (MORAES, 2004, p.71).

Para Michel Temer:

Lei é ato normativo produzido pelo Poder Legislativo segundo forma prescrita na Constituição, gerando direitos e deveres em nível imediatamente infraconstitucional. (TEMER, 1990, p.136).

Portanto, somente as espécies normativas constitucionalmente previstas no art. 59 são legítimas para criar, modificar, restringir ou extinguir direitos e obrigações, abrangendo, desta forma, o termo "Lei", todo o constante do retromencionado dispositivo da CR/88. Salienta-se, no entanto, que o termo "Lei" somente abrange todas as espécies normativas previstas no art. 59 da CR/88 na medida em que estas são capazes de normatizar de forma primária direitos e obrigações, vez que o caráter da generalidade não é atributo de todas estas espécies normativas.

Oportuna se torna a reformulação do Princípio da Legalidade, realizada por Alexandre de Moraes:

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada de acordo com as regras de processo legislativo constitucional. (MORAES, 2004, p.600).

Elencadas de forma taxativa no artigo 59 da Constituição, criam, restringem, modificam e extinguem direitos e obrigações as emendas à constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções. No entanto, vale destacar que às resoluções e aos decretos legislativos falta o caráter de instauração de normas gerais, como se verá a seguir.

Tendo em vista o caráter rígido da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, exige-se, para que esta seja alterada, processo legislativo especial de maior complexidade do que aquele previsto para modificação de leis ordinárias, em razão da supremacia constitucional sobre todo o ordenamento jurídico republicano. Tal processo se consubstancia em emendas ao texto constitucional, espécie normativa prevista no inciso I do art. 59 da CR/88, cujo escopo é o de alterar a Constituição. Enquanto mera proposta, a Emenda é desprovida de qualquer normatividade, adentrando no ordenamento jurídico somente após sua aprovação, publicação e entrada em vigor, passando, assim, a ser preceito constitucional, hierarquicamente idêntica às normas constitucionais originárias.

O processo legislativo especial necessário à alteração da Constituição via emenda deve obedecer às bases do Estado Democrático de Direito, ressaltando-se a sujeição plena ao também basilar Princípio da Segurança Jurídica, do qual se abstrai o dever do Estado de resguardar o cidadão de súbitas modificações, extinções, criações e restrições de direitos e obrigações. Este especial processo de elaboração e aprovação da emenda constitucional é previsto no art. 60 da CR/88 (BRASIL, 2006), o qual dispõe:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II – do Presidente da república;

III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

[...].

§2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

(BRASIL, 2006).

Ademais, observa-se que embora sejam as emendas constitucionais Leis, no sentido de poderem criar, restringir, modificar e extinguir direitos e obrigações, a Constituição lhes impõe limites, uma vez que não poderão ser objeto de deliberação propostas de emenda com o objetivo de abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, os direitos e garantias fundamentais, bem como alteração constitucional durante vigência de estado de sítio.

Segunda espécie normativa prevista constitucionalmente, a lei complementar, segundo entendimento de Alexandre de Moraes:

[...] consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar de evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através de um processo legislativo ordinário. O legislador constituinte pretendeu resguardar determinadas matérias de caráter infraconstitucional contra alterações volúveis e constantes, sem, porém, lhes exigir a rigidez que impedisse a modificação de seu tratamento, assim que necessário. (MORAES, 2004, p.569).

As leis complementares são elaboradas mediante procedimento legislativo especial. Diferem das leis ordinárias materialmente, uma vez que as leis complementares somente tratam de matéria taxativamente prevista na Constituição da República, sendo objeto de leis ordinárias todas as demais matérias. Ressalta-se que, para José Afonso da Silva, o aspecto formal constitui a única diferença entre leis complementares e leis Ordinárias. Ao tratar das leis complementares, este teórico afirma:

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[...] nada mais carece dizer senão que só diferem do procedimento de formação das leis ordinárias na exigência do voto da maioria absoluta das casas, para sua aprovação (art. 69), sendo, pois, formadas por procedimento ordinário com quorum especial. (SILVA, 2005, p. 529).

É sabido que lei complementar e lei ordinária possuem campos materiais distintos, sendo o campo da lei complementar taxativamente delimitado pela Constituição, ao passo que não se pode definir precisamente o campo material das leis ordinárias. Devido a este fato, considera-se que a lei ordinária, terceira espécie normativa reconhecida pela Constituição, possui campo material residual, uma vez que esta espécie normativa atua no campo que não fora entregue ao legislador complementar, nem aos editores dos decretos legislativos e das resoluções.

Instituída como espécie normativa pelo inciso IV do artigo 59 da CR/88, as leis delegadas constituem atos normativos elaborados e editados pelo Presidente da República, mediante autorização do Poder Legislativo, nos limites e prazos impostos por este. Salienta-se que tal autorização configura verdadeira delegação externa da função legiferante e significa que o Presidente, com fulcro nesta autorização, adquire legitimidade para editar lei. Esta delegação só é possível se o Presidente solicitar, isto é, o Poder Legislativo, em hipótese alguma, pode obrigar o Presidente da República a legislar.

Não obstante a capacidade de criar obrigações e direitos para os indivíduos, dado seu caráter de "vontade geral", as leis delegadas sofrem limitações constitucionais, haja vista o fato de que a competência legislativa para alguns atos é indelegável, não sendo permitido ao Presidente da República legislar sobre determinados assuntos, tais como aqueles concernentes aos atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, previstos no art. 49 da Constituição, os de competência exclusiva da Câmara dos Deputados, destacados no art. 51, os de competência exclusiva do Senado Federal, arrolados no art. 52 e acerca da organização do Poder Judiciário e do Ministério Público. (BRASIL, 2006).

O inciso V do dispositivo constitucional (art. 59 da CR/88) traz como instrumento criador de direitos e obrigações a medida provisória, editada pelo chefe do poder executivo, pautado em juízo de relevância e urgência para edição da medida. A medida provisória é ato normativo com força de lei, editada pelo Presidente da República. Não se pode, contudo, afirmar ser a medida provisória uma lei, uma vez que "Lei" é ato nascido no Poder Legislativo. No entanto, as medidas provisórias também criam direitos e obrigações por ter o legislador constituinte permitido exceção ao Princípio segundo o qual incumbe ao Legislativo legislar. Tão logo seja a medida provisória editada, deve-se submetê-la à apreciação do Poder Legislativo e, como a própria denominação esclarece, este ato normativo possui termo de vigência de 60 dias, contados a partir de sua publicação, excepcionalmente podendo exceder tal prazo. Entretanto, nos primeiros sessenta dias posteriores à perda de eficácia da medida provisória, decreto legislativo poderá dispor acerca das relações jurídicas atribuídas à espécie destacada no inciso V do artigo 59 da CR/88.

Aprovada a medida pelo Legislativo, será ela convertida em lei e promulgada pelo presidente do Senado Federal, incumbindo ao chefe do executivo que a editou a publicação de lei de conversão. Embora dotadas de força de lei, as medidas provisórias sofrem restrições, impostas pela emenda Constitucional nº 32/2001 (BRASIL, 2001), quanto ao âmbito de competências, haja vista não poderem incidir sobre:

nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; direito penal, processual penal e processual civil; organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, §3°; que editem ato "que vise detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro"; ou matéria "reservada a lei complementar"; ou já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. (FERREIRA FILHO, 2003, p.208).

O decreto legislativo, por sua vez, é a espécie normativa determinada pelo inciso VI do artigo 59 da Constituição, destinada a veicular matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, criando direitos e obrigações através de atos que dispensam a sanção ou promulgação por parte do Presidente da República. Neste sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, citando Pontes de Miranda, afirma:

Decretos legislativos são as leis a que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto). (FERREIRA FILHO, 2003, p.214).

Os decretos legislativos, apesar de legítimos para criar, restringir, modificar ou extinguir direitos e obrigações, são atos a que falta o caráter de instauração de normas gerais e abstratas. Sobre tal característica desta espécie, Manoel Gonçalves Ferreira Filho assevera:

Ora, sobre as matérias de competência exclusiva do Congresso arroladas na atual Constituição pelo art. 49, não cabe a normatividade abstrata característica da lei propriamente dita.

De fato, os itens do art. 49 atribuem ao Congresso o "resolver", o "autorizar" ou "permitir" ou "aprovar" ou "sustar", o "mudar", o "fixar", o "julgar", o "deliberar", e só a menção desses verbos já mostra que se está em face de questões sobre as quais o constituinte quis deixar a decisão última ao Congresso, especialmente como forma de fiscalização do Poder Executivo. Somente os itens VII e VIII sobre a fixação da remuneração, respectivamente, de Deputados e Senadores e do Presidente e Vice-Presidente da República é que dão azo à edição de normas gerais. As outras hipóteses, apenas à de normas individuais. Ora, a elaboração de normas individuais não é matéria considerada como pertencente ao "processo legislativo", nem ao "processo normativo" em sentido estrito. (FERREIRA FILHO, 2003, p.214).

Para edição do decreto legislativo, necessário se faz que seja votado em ambas as casas legislativas, no sistema bicameral, sendo então, caso aprovado, publicado pelo Presidente do Congresso Nacional.

Como última espécie normativa prevista constitucionalmente, disposta no inciso VII do art. 59 da Lei Maior, tem-se o instrumento criador de direitos e obrigações denominado resolução, que dispõe acerca de matérias de competência do Congresso Nacional ou de competência privativa do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. A respeito das resoluções, assevera Alexandre de Moraes que:

Resolução é ato do Congresso Nacional ou de qualquer de suas casas, tomado por procedimento diferente do previsto para a elaboração das leis, destinado a regular matéria de competência do Congresso Nacional ou de competência privativa do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados, mas em regra com efeitos internos; excepcionalmente, porém, também prevê a constituição resolução com efeitos externos, como a que dispõe sobre a delegação legislativa. (MORAES, 2004, p.593).

Prossegue Alexandre de Moraes:

As resoluções constituem, igualmente às demais espécies previstas no art. 59 da Constituição Federal, atos normativos primários, e disporá (sic) sobre a regulamentação de determinadas matérias pelo Congresso Nacional, não incluídas no campo de incidência dos decretos legislativos (arts. 49 e 62, §§1º a 12, da CF) e da Lei, além de matérias privativas da Câmara dos Deputados (art. 51, da CF) e do Senado Federal (art. 52, da CF). (MORAES, 2004, p.593).

Ao conceituar "Processo Legislativo", Manoel Gonçalves Ferreira Filho critica a denominação "Do Processo Legislativo", presente na Constituição, asseverando que nesta seção "está regida a elaboração de atos que não são nem material nem formalmente lei" (FERREIRA FILHO, 2003, p.183). Neste sentido, prossegue Ferreira Filho:

De fato, compreende-se aí a elaboração de emendas constitucionais que são leis materialmente, mas que formalmente destas devem ser distinguidas, por serem manifestação de um poder distinto, que é o de revisão. Arrola-se, aí, também, a elaboração de resoluções que, se por sua tramitação se assemelham a leis a ponto de se poder dizer que são leis, formalmente falando, não têm a matéria de lei, por não editarem regras de direito gerais e impessoais. E o que se disse das resoluções aplica-se, mutatis mutandis, aos decretos legislativos. (FERREIRA FILHO, 2003, p.183).

Em análise específica do instituto constitucional das resoluções, Ferreira Filho afirma que:

Se, com boa vontade, ainda se pode dizer que a inclusão do decreto legislativo no "processo normativo" apresenta um tênue fundamento, bem mais difícil é admiti-lo em relação às resoluções, também incluídas pelo art. 59 no "processo legislativo".

"Em direito constitucional", assinala Pontes de Miranda, " ‘resolução’ é a deliberação que uma das Câmaras do Poder Legislativo, ou o próprio Congresso Nacional, toma, fora do processo de elaboração das leis e sem ser lei."

[...]

Decreto legislativo e resolução essencialmente ditam normas individuais, no que se confundem; mas, no nosso direito anterior, enquanto a resolução não era constitucionalizada, sempre se entendeu que a disposição relativa às matérias de competência privativa do Congresso Nacional se manifestava pelo decreto legislativo.

[...]

Do que se expôs, claramente se infere que a resolução não tem por que ser incluída no processo normativo stricto sensu. (FERREIRA FILHO, 2003, p.214-215).

Não se confundem as resoluções previstas no art. 59, VII da Constituição, enquanto atos autônomos de natureza primária, integrantes, mesmo que contrario sensu, do processo legislativo e formalmente capazes de gerar direitos, com as resoluções expedidas por autoridades de escalão administrativo, uma vez que estas são típicos atos administrativos, possuindo natureza derivada e pressupondo sempre a existência de lei ou outro ato legislativo a que se subordinem. Acerca das resoluções administrativas e portarias, objetos deste trabalho, tratar-se-á em momento posterior.

Em se tratando da questão hierárquica das normas, segundo o entendimento de Michel Temer, para o Direito "hierarquia" constitui:

Circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade numa norma superior. A lei é hierarquicamente inferior à Constituição porque encontra nesta seu fundamento de validade. Aliás, podemos falar nesse instrumento chamado lei, porque a Constituição o cria. Tanto isto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, ao declarar que uma lei é inconstitucional está dizendo: "aquilo que todos pensaram que era lei, lei não era", dado que lei é instrumento criado pelo Texto Constitucional. (TEMER, 1990, p.148).

Kelsen afirma que há hierarquia quando "a norma que determina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa regulamentação é a inferior". (KELSEN, 2000, p.181).

Isto posto, tem-se que todas as espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição da República buscam seu fundamento na própria Constituição, não existindo, portanto, para o Direito, segundo os teóricos supra citados, relação hierárquica entre elas sob este aspecto. Há de se destacar, no entanto, que parte da Teoria Jurídica admite a hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária, posicionando aquela em patamar superior a esta.

Tomada como base a definição de Hierarquia para o Direito, bem como o entendimento supra explicitado de Kelsen, é de se inferir a inexistência de hierarquia entre as espécies normativas elencadas no art. 59 da Constituição da República. Como já mencionado, todas estas espécies têm como fundamento de validade o próprio texto constitucional. O quorum privilegiado instituído para a formação das Leis Complementares, segundo Kelsen e Temer, não constitui parâmetro que coloca esta espécie em posição hierárquica superior às Leis ordinárias, mas tão somente significa que o legislador, por motivo de conveniência, reservou certas matérias, que julgou de maior relevância para a Federação, a um procedimento especial de aprovação. Destarte, o caráter diferenciador entre as leis complementares e as leis ordinárias decorre, em verdade, conforme tal entendimento, da função normativa e não da força normativa. Entre as demais espécies normativas, também não há, de acordo com a definição de hierarquia para o Direito, qualquer relação gradativa, mas âmbito material diverso e destinação diferenciada.

No entanto, discute-se a admissão de uma relação de hierarquia entre as espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição de 1988, com exceção da posição formal e material superior da Emenda enquanto preceito constitucional.

Ora, há a hierarquia entre as espécies previstas no art. 59 da CR/88 quando ocorre a revogação de uma lei ordinária por uma lei complementar, a qual, tratando de mesma matéria, regula de forma contraditória à lei ordinária. Determinada lei complementar, ao estatuir, por exemplo, preceitos gerais a serem seguidos, vincula a respectiva lei ordinária especificadora. Ao dispor de forma contraditória aos preceitos gerais da lei complementar, a lei ordinária será inválida. Portanto, nota-se uma submissão da lei ordinária à lei complementar, quando tratantes de mesma matéria, e toda submissão pressupõe um comando superior, o que por sua vez denota hierarquia. Ressalta-se a importância da identificação da matéria para que se configure a hierarquia, uma vez que não haverá qualquer tipo de hierarquia entre uma lei complementar e uma lei ordinária, a título ilustrativo, quando a matéria em questão for diversa.

Situação análoga se configura entre, por exemplo, uma lei ordinária, lei delegada ou medida provisória ante uma resolução ou decreto legislativo. Se houver identificação material, prevalecerá o disposto nas espécies previstas, respectivamente, nos incisos III, IV e V do art. 59 da CR/88 em detrimento da resolução ou do decreto legislativo. A idéia de hierarquia é justamente a prevalência de umas espécies sobre as outras. A prevalência da lei ordinária, lei delegada ou medida provisória sobre a resolução ou o decreto legislativo evidencia a hierarquia, pois caso não se admitisse a relação hierárquica, o entendimento conflitante da resolução ou do decreto legislativo, quanto à mesma matéria, poderia prevalecer sobre a lei ordinária, lei delegada ou medida provisória. Destarte, embora busquem seus respectivos fundamentos no texto constitucional, pode-se constatar hierarquia entre as espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição. A prevalência de uma espécie sobre outra, quando tratam de mesma matéria, adotando, porém, posições conflitantes, denota claramente relação hierárquica, uma submissão, que institui a prevalência da espécie normativa "A" sobre a espécie normativa "B" e que não admite, em via oposta, a prevalência de "B" sobre "A".

Ao figurar, então, a sobreposição pré-concebida e necessária de uma espécie normativa em face da outra, nunca se admitindo a inversão de prevalência, clara se apresenta a sujeição de uma espécie às disposições da outra, não sendo possível se afastar, logo, uma relação de hierarquia entre os dispositivos normativos. Destaca-se que a relação hierárquica se mostra eficaz frente a todas as espécies normativas, mas somente se processará quando houver identificação de matéria. Caso não haja tal identificação entre a espécie "A" e a espécie "B", não há razão para se cogitar de hierarquia.

Ressalta-se que se identificarão as espécies normativas ocupantes de um mesmo patamar hierárquico somente quando o caráter temporal determinar a sobreposição de uma sobre a outra, isto é, "Lei posterior revoga lei anterior naquilo em que forem contraditórias". As hipóteses de estabelecimento da hierarquia, anteriormente discutidas, não necessariamente adotam este critério, uma vez que, exemplifica-se, uma resolução editada em data posterior a determinada lei ordinária, sobre matéria comum, mas posição contraditória à lei ordinária, será inválida.

Dentre as normas preceituadas pela Constituição, os decretos-legislativos e as resoluções não contam com os caracteres da generalidade e da abstração, típicos da Lei stricto sensu, o que levou Manoel Gonçalves Ferreira Filho a afirmar que "a elaboração de normas individuais não é matéria considerada como pertencente ao ‘processo legislativo’, nem ao ‘processo normativo’ em sentido estrito." (FERREIRA FILHO, 2003, p.214). No entanto, tal fato não retira das resoluções e decretos-legislativos a competência para criar, restringir, modificar ou extinguir direitos e obrigações, uma vez que tal competência foi conferida a estas espécies pela própria Constituição, embora seja para elaboração de normas individuais e restritas ao Congresso Nacional, não atingindo a coletividade.

Taxativo se apresenta, portanto, o mecanismo criador, modificador, restritivo e extintivo de direitos e obrigações, expresso no art. 59 da Constituição da República, atuando de forma a manter sólidas as bases do Estado Democrático de Direito. Nítida se apresenta a exteriorização dos Princípios da Legalidade e da Segurança Jurídica, sendo este diretamente derivado daquele, anunciando ao cidadão da República Federativa do Brasil que sua esfera de direitos não será invadida por instrumentos não destinados a tal. Isto é, a Constituição assegura que se se ousar criar, modificar, restringir e extinguir direitos e/ou obrigações por formas não elencadas em seu art. 59, direito não haverá, obrigação não se constituirá.

O cerne da discussão deste ensaio, no entanto, não gira em torno das espécies normativas previstas constitucionalmente, mas sim no que concerne às resoluções administrativas e portarias, instrumentos do Poder Regulamentar da Administração, no caso utilizadas em tempos de eleições para proibir a venda e consumo de bebidas alcoólicas em locais públicos, proibições estas fundamentadas na regulamentação e no exercício do Poder de Polícia. Para melhor se entender as atribuições e cabimentos das resoluções administrativas e portarias, bem como para possibilitar uma profícua correlação destas normas regulamentares às proibições em questão, válido se faz, antes de analisar especificamente os institutos das resoluções administrativas e portarias, tratar acerca do Poder Regulamentar e do Poder de Polícia atribuídos à Administração.

Por Poder Regulamentar, entende-se:

Prerrogativa conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação. A prerrogativa, registre-se, é apenas para complementar a lei; não pode, pois, a Administração alterá-la a pretexto de estar regulamentando. Se o fizer, cometerá abuso de poder regulamentar, invadindo a competência do Legislativo. Por essa razão, o art. 49, V, da CF, autoriza o Congresso Nacional a sustar atos normativos que extrapolem os limites do poder de regulamentação. (CARVALHO FILHO, 2006, p.44).

Por sua vez, Poder de Polícia, segundo ditames do art. 78 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), consiste em:

Atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (BRASIL, 1966).

Ressalta José dos Santos Carvalho Filho, neste contexto, que a atividade de polícia administrativa é "[...] atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores impõem a disciplina e as restrições aos direitos." (CARVALHO FILHO, 2006, p. 64) . Outrossim, o mesmo art. 78 supracitado, em seu parágrafo único, considera regular o poder de polícia:

quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. (BRASIL, 1966).

Explicitadas as espécies normativas constitucionalmente capazes de gerar direitos e obrigações, tratar-se-á acerca dos atos normativos de natureza derivada, objetos deste trabalho, quais sejam as resoluções administrativas e portarias. Neste sentido, segundo José dos Santos Carvalho Filho, as resoluções constituem-se em

Atos, normativos ou individuais, emanados de autoridades de elevado escalão administrativo, como, por exemplo, Ministros e Secretários de Estado ou Município, ou de algumas pessoas administrativas ligadas ao Governo. Constituem matéria das resoluções todas as que se inserem na competência específica dos agentes ou pessoas jurídicas responsáveis por sua expedição.

Tais resoluções são típicos atos administrativos, tendo, portanto, natureza derivada; pressupõem sempre a existência de lei ou outro ato legislativo a que estejam subordinadas. (CARVALHO FILHO, 2006, p.118).

No que concerne às resoluções, para Hely Lopes Meirelles:

Resoluções são atos administrativos normativos expedidos pelas altas autoridades do Executivo (mas não pelo Chefe do Executivo, que só deve expedir decretos) ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica. Por exceção admitem-se resoluções individuais.

As resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo invocá-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los. Seus efeitos podem ser internos ou externos, conforme o campo de atuação da norma ou os destinatários da providência concreta. (MEIRELLES, 1995, p.165).

Não é diferente o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o Chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta. (MELLO, 1999, p.264).

Especificamente com relação às portarias, é o entendimento de Edmur Ferreira de Faria que:

São atos baixados pelos Ministros de Estado com a finalidade de implementar normas jurídicas não detalhadas em decretos regulamentares ou de disciplinar atividades ou funcionamento de órgão, nos limites da lei e do respectivo regulamento, quando for o caso.

As portarias são utilizadas também pelos dirigentes de autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas nas três esferas da Administração Pública. As competências dessas autoridades para o exercício dessa regulamentação secundária são estabelecidas na lei de criação ou autorização de criação da respectiva entidade e nos regulamentos próprios. (FARIA, 1999, p. 237).

Para Hely Lopes Meirelles:

Portarias são atos administrativos internos pelos quais os chefes de órgãos, repartições ou serviços expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou designam servidores para funções e cargos secundários. Por portaria também se iniciam sindicâncias e processos administrativos. Em tais casos a portaria tem função assemelhada à da denúncia do processo penal.

As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração Pública. (MEIRELLES, 1995, p.167).

Buscando conceituar e apontar o desvirtuamento do instituto das portarias e de outros similares, como instruções, circulares, ordens de serviço, provimentos e avisos, José dos Santos Carvalho Filho sustenta que:

Todos esses atos servem para que a Administração organize sua atividade e seus órgãos, e, por essa razão, são denominados por alguns autores de ordinatórios.

Apesar de auxiliarem a Administração a definir melhor sua organização interna, a verdade é que na prática, encontramos muitos deles ostentando caráter normativo, fato que provoca a imposição de regras gerais e abstratas. (CARVALHO FILHO, 2006, p.119).

Tanto as resoluções (como atos administrativos) quanto as portarias possuem natureza derivada e constitui pressuposto de validade de suas disposições a existência de lei ou outro ato legislativo a que estejam subordinados. Ademais, tais atos não são dotados dos elementos caracterizadores de uma lei, quais sejam, se constituir em uma "regra", ser "abstratos", "genéricos", "obrigatórios" e trazer em seu aspecto normativo uma "novidade". As resoluções e portarias (como atos administrativos formais de natureza derivada) não atendem ao Requisito da "novidade", uma vez que a competência destas se restringe a tratar de questão antes normatizada por uma lei. Ora, a Lei é condição sem a qual validade e razão de existência não teriam as resoluções e portarias. Analisar-se-á, a seguir, a constitucionalidade das disposições proibitivas produzidas por Juízes Eleitorais, Secretarias de Segurança Pública e Delegados de Polícia, através de resoluções e portarias, concernentes ao consumo, em locais públicos, e comercialização de bebidas alcoólicas em dias de eleição.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERDIN, Thiago Aurelio Lomas. Da (in)constitucionalidade da "lei seca" em dias de eleição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1922, 5 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11814. Acesso em: 16 mai. 2024.

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