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Equidade aristotélica e segurança jurídica: Aproximação, distanciamento e exemplos no direito brasileiro

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28/12/2023 às 22:41
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Como a equidade de Aristóteles se relaciona com a certeza jurídica do positivismo jurídico e as lacunas na lei?

RESUMO: Em Ética a Nicômaco, Aristóteles desenvolve os fundamentos de sua teoria da justiça, notadamente no Livro V, na parte final desta seção, o filósofo trata da equidade e suas relações com a justiça e o justo, estabelecendo-a como uma espécie de justiça que visa à correção da lei por causa de seu aspecto de universalidade. O uso da equidade como instrumento do direito positivo representa um desafio para a compreensão da filosofia contemporânea do direito. Os objetivos deste artigo são demonstrar como a equidade de Aristóteles se relaciona com as ideias como certeza jurídica do positivismo jurídico e as lacunas na lei, apresentando alguns elementos do direito positivo brasileiro que consagram a concepção de equidade como um componente prático das análises. Para atingir esses objetivos, utilizou-se a consulta em livros e artigos acadêmicos, onde foi possível encontrar fundamentos teóricos sobre os principais conceitos, relacionando-os entre si para chegar às considerações finais. Como resultados e discussões, foi possível perceber que a visão aristotélica de equidade mostra-se de difícil conciliação com as noções de positivismo jurídico sobre segurança jurídica. Ao mesmo tempo, percebeu-se que a equidade não poderia utilizar como critério de solução para as referidas lacunas no direito positivo. Indo além, existem alguns atos brasileiros que apresentam o uso da equidade como fonte secundária de direito e até mesmo critério de julgamento para ações judiciais, o que não condiz com o pensamento aristotélico sobre a equidade. A título de considerações finais, foi possível notar uma relativa impossibilidade de conciliar a ideia aristotélica de equidade com os paradigmas centrais do positivismo jurídico, especialmente a noção de segurança jurídica e das técnicas de solução de lacunas. Ao mesmo tempo, vê-se que os exemplos de uso de equidade na lei brasileira também não estão de acordo com o conceito de equidade para Aristóteles.

PALAVRAS-CHAVE: Equidade aristotélica. Segurança jurídica. Lacunas no direito. Direito brasileiro.


INTRODUÇÃO

A teoria aristotélica da justiça, tratada especialmente no Livro V da Ética a Nicômaco, fornece elementos conceituais de fundamental importância para os debates sobre justiça até os dias atuais. Um dos conceitos que Aristóteles desenvolve nesta obra é a ideia de equidade. O Filósofo vê a equidade como um instrumento de correção da justiça jurídica, uma forma de realização pelos juízes da justiça para casos concretos, que pode ter suas peculiaridades ignoradas diante da generalidade das disposições das leis.

O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de equidade aristotélica e confrontá-lo com elementos da teoria do direito contemporâneo, trazendo também um componente prático à discussão, realizando uma análise das instituições brasileiras de direito positivo à luz do conceito de equidade em Aristóteles.

Para este objetivo geral, os objetivos específicos, enfrentados em cada uma das seções deste trabalho, são discutir, de forma geral, sobre a teoria aristotélica da justiça; apresentar, especificamente, o conceito de equidade no pensamento de Aristóteles; e, por fim, expor ideias sobre a equidade de Aristóteles relacionadas aos conceitos de segurança jurídica e lacunas jurídicas, realizando uma análise das instituições brasileiras de direito positivo à luz do conceito de equidade em Aristóteles como componente prático da pesquisa.

Como fontes para este trabalho foram utilizados livros, ensaios e artigos publicados em periódicos. Sem dúvida, os textos aristotélicos foram a fonte principal, mas seus comentadores também foram substancialmente utilizados, e na seção final também foram utilizados autores da dogmática jurídica.

A pesquisa permitiu compreender melhor o conceito de equidade em suas nuances no pensamento aristotélico. A função da equidade está relacionada com a justiça jurídica, servindo como critério corretivo para o direito escrito em razão do esquema de generalidade ao qual o legislador deve recorrer para elaborar os preceitos das leis.

A leitura, especialmente da seção três deste artigo, permitirá perceber que a ideia de equidade de Aristóteles, e dentro do pensamento de Aristóteles, não seria um ataque à noção de segurança jurídica, uma vez que a determinação do justo equitativo pelo juiz seria ocorreria dentro da constituição da polis e não geraria insegurança se fosse justa.

Da mesma forma, foi possível perceber que o patrimônio aristotélico não pode servir como mecanismo de integração das lacunas do direito positivo, uma vez que sua definição conceitual não se enquadra na necessidade de preencher lacunas. Pelo menos, o componente prático trazido por este trabalho apresenta três previsões literais do termo “equidade” no direito positivo brasileiro, demonstrando que nenhuma dessas três previsões está relacionada à ideia de equidade pensada por Aristóteles.

ASPECTOS GERAIS DA TEORIA ARISTOTÉLICA DA JUSTIÇA

As ideias sobre a equidade no pensamento de Aristóteles são apresentadas, principalmente, na Ética e Retórica a Nicômaco, sendo a primeira especialmente conhecida pela sistematização de sua Teoria da Justiça. Considerando a necessária relação entre o justo e o equitativo, evidenciada pelo próprio Aristóteles (1137b, 10), é importante explicar, de forma breve e apenas como premissas gerais, as ideias sobre justiça de Aristóteles, para então discutir a equidade.

Justiça distributiva e justiça comutativa como partes da justiça particular

Aristóteles parte do entendimento geral sobre a ideia de justiça para explicá-la (1129a), considerando que: “justiça é o tipo de característica com base na qual as pessoas estão dispostas a fazer coisas justas e com base na qual agem com justiça e desejar coisas justas.”1. Diante disso, a justiça é vista como um elemento de ação prática na vida, como uma virtude.

Na verdade, a justiça é vista por Aristóteles como uma virtude completa, em todos os sentidos, “porque é o uso da virtude completa; é completo porque quem o possui pode usar a virtude também em relação ao outro, e não apenas em relação a si mesmo”2.

As relações entre os indivíduos na sociedade são fundamentais para compreender o pensamento de Aristóteles sobre a ideia de justiça, notadamente a ideia de justiça total, integral ou universal. 3 Pela posição central que o conceito de homem como politikón zoon ocupa no pensamento do Filósofo Estagira, fica claro que a justiça, no seu sentido mais geral, está relacionada com a ideia de sociabilidade, de condição que torna a vida humana no espaço pólis possível.

Essa percepção de justiça, de certa forma coletiva, conhecida como justiça geral, está ligada ao respeito às leis da cidade, uma vez que ações contrárias à lei resultam em consequências negativas para todos que convivem, conectados por laços de sociabilidade. Sobre isso, Bittar explica:

O respeito às leis é algo que pertine ao coletivo e não propriamente ao individual; ao se violar um preceito de lei está-se propriamente a transgredir uma norma declarada de interesse de todos os membros de uma mesma pólis. A realização da justiça total importa em ações de caráter erga omnes.4

Outra forma de relacionamento entre as pessoas na sociedade ocorre com os contatos que cada pessoa mantém com outra pessoa, em uma determinada rede de relações humanas. Essas relações são marcadas pelo sentido de justiça denominado particular. É um sentido de justiça percebido no contato entre determinados indivíduos, e não na relação entre o cidadão e a polis5.

A justiça privada é dividida por Aristóteles em duas categorias: justiça distributiva e justiça corretiva (1130b). A primeira forma de justiça, a distributiva, “encontra-se nas distribuições de honra ou de dinheiro ou de qualquer outra coisa divisível entre aqueles que participam do regime (pois nestas coisas é possível que uma pessoa tenha uma parte que seja ou desigual ou igual ao de outro).”6

Esta forma de justiça está associada à distribuição de honras, recursos ou funções públicas com base no mérito. É uma manifestação de uma igualdade geométrica, considerando o preceito de proporção entre quatro mandatos: dois homens que receberam cada um duas honras, recursos ou funções públicas. A proximidade entre as ideias de Aristóteles e as noções pré-socráticas sobre a justiça como proporção numérica é evidente nesta parte do pensamento do filósofo7.

A segunda forma de justiça envolve a percepção de igualdade nas transações entre pessoas, que ocorrem voluntária ou involuntariamente. Aristóteles chama esse senso de justiça de corretivo. É a modalidade de justiça perceptível e aplicável às transações entre pessoas, sejam elas voluntárias ou involuntárias. Aristóteles relaciona esta forma de justiça a uma espécie de igualdade, manifestada numa proporção aritmética: “O justo nas transações é uma igualdade certa, e o injusto, uma certa desigualdade, mas não de acordo com a proporção que acabamos de indicar, mas de acordo com uma equação aritmética”.8

Tomás de Aquino, por outro lado, considerando os tipos de transações que podem ocorrer - sejam voluntárias ou involuntárias - divide a justiça corretiva de Aristóteles em justiça comutativa, relativa às relações voluntárias entre os homens como contratos, e em justiça reparatória, de relações involuntárias, nomeadamente violentas ou clandestino.9

A ideia de proporção aritmética está ligada à ideia de igualdade. Nas transações, onde as características de quem causa o dano e de quem é prejudicado são indiferentes, leva-se em conta o elemento de igualdade entre perdas e ganhos para efetivar a justiça. É de justiça, portanto, que as perdas e os ganhos dos envolvidos em uma transação sejam iguais, com precisão matemático-aritmética.

Em Aristóteles, vê-se, sobre ganhos e perdas:

Pois quando, de duas coisas iguais, uma parte é subtraída de uma e adicionada à outra, então esta última excede em duas vezes a parte subtraída; pois se um é subtraído, mas o outro não é adicionado, então este último excede apenas um. Portanto, este último excede o termo médio em um, e o termo médio excede aquele subtraído em um. Com isto, então, saberemos tanto o que devemos subtrair da pessoa que tem a maior parte, como o que devemos acrescentar àquele que tem a menor: devemos acrescentar aquilo que excede o termo médio à pessoa com a menor parte. menor, e subtrair daquele que tem o maior aquele pelo qual o termo médio é ultrapassado.10

A reparação é buscada nas violações da justiça corretiva na figura do juiz, mediador responsável pela restauração da proporção alterada pelo ato voluntário ou involuntário, considerado por Aristóteles a própria justiça personificada ou animada11. É ao juiz responsável por garantir a reparação da injustiça proveniente de uma nova divisão de lucros ou prejuízos.

Justiça política e justiça interna

Aristóteles apresenta outra forma de dividir a justiça, baseada em critérios relacionados, de certa forma, com o espaço social em que ela se manifesta. Trata-se de conceber a justiça como justiça política e justiça interna. Justiça política, para Aristóteles:

Existe entre aqueles que compartilham uma vida comum com o objetivo de serem autossuficientes, que são livres e iguais, seja proporcionalmente ou aritmeticamente. Como resultado, para todos aqueles para quem isso não existe, não há nada politicamente justo em relação uns aos outros, mas apenas algo justo num certo sentido e por meio de uma semelhança.12

A ideia apresentada nesta passagem harmoniza-se com todo o pensamento aristotélico. A justiça está diretamente relacionada à ação humana como animal político. Na Política, Aristóteles apresenta esta relação como necessária, quando diz: “já que em toda ciência e ofício o fim é um bem, o maior e melhor bem é o fim da ciência ou ofício que tem maior autoridade de todos eles, e esta é a ciência do estadismo. Mas o bem político é a justiça, e a justiça é o benefício comum.”13

Uma forma de pensar a justiça, portanto, tem a ver com o espaço político daquele que faz parte da polis, ou seja, o cidadão, na forma como pensava Aristóteles. 14 Esta justiça está relacionada com a coisa pública, com a gestão coletiva dos negócios da cidade através do sistema político para alcançar o bem comum, referenciado na passagem acima. É o desenvolvimento da justiça no espaço coletivo, em suma, segundo a compreensão aristotélica do espaço coletivo.

Num outro sentido, a ideia de justiça pode estar ligada ao espaço individual, doméstico, relacionada com a noção de economia como oikonomía, ou seja, as normas aplicadas nos lares, nas casas. A justiça doméstica, embora semelhante à justiça política, é aquela que parte do cidadão, no sentido aristotélico do termo, em direção à mulher, aos filhos e aos servos. Veja a seguinte passagem a esse respeito:

“O justo peculiar a um senhor de escravos e a um pai não é o mesmo que estes [sensos políticos de justiça], embora sejam semelhantes. Pois não há injustiça num sentido não qualificado em relação às próprias coisas, mas a propriedade ou descendência de alguém (até que este último tenha uma certa idade e seja independente) é como uma parte de si mesmo, e ninguém escolhe prejudicar a si mesmo”.15

Esta passagem denota que o sentido de justiça doméstica tem mais a ver com a ideia de responsabilidade e justiça para consigo mesmo, assumindo que a criança, por exemplo, faz parte do cidadão, não sendo possível ser injusta consigo mesma.

Sobre a justiça natural e a justiça legal como partes da justiça política

A justiça política compreende, para Aristóteles, a justiça natural e a justiça legal, na divisão já introduzida no primeiro do Capítulo 7 do Livro V da Ética a Nicômaco. A justiça natural refere-se a um valor “que tem a mesma capacidade em todos os lugares e não depende de ser considerado existente ou não”16.

É uma referência ao que se tem chamado de direito natural, reconhecido como uma ordem normativa universal e imutável que existe sem constrangimentos17. É uma referência ao que se denomina direito natural, reconhecido como uma ordem normativa universal e imutável que existe sem constrangimentos.

Por outro lado, Aristóteles identifica a existência de um valor de justiça determinado pela atividade do legislador, assemelhando-se o autor às convenções de medidas para a alimentação18. Da mesma forma que as medidas são variáveis de localidade para localidade, é possível que aquilo que cada povo determina juridicamente como justo através das leis seja mutável, variando de acordo com a convenção adotada.

Esta subdivisão da justiça política, que é a justiça jurídica, não está relacionada, pelo menos não diretamente, com o justo absoluto, que se divide em justiça distributiva ou corretiva, vinculando-se, entretanto, a uma componente prática de aplicação ou criação do direito. É o pensamento de Beever: “uma consequência do acima exposto é que a justiça legal não é justiça absoluta (distributiva ou corretiva), mas é o tipo de justiça apropriado à atividade de fazer direito”19.

Com essa forma de pensar o direito surge a ideia de equidade, sobre o que será discutido a seguir.

A EQUIDADE, A JUSTIÇA JURÍDICA E O DIREITO POSITIVO DE ARISTÓTELES

As premissas fundamentais da teoria da justiça de Aristóteles, necessárias para a compreensão das ideias sobre equidade, são brevemente estabelecidas. É necessário tratar especificamente da equidade como componente do pensamento de Aristóteles, em termos necessários para atingir os objetivos deste artigo.

Sobre a equidade como uma correção da justiça legal

O Capítulo 10 do Livro V da Ética a Nicômaco, penúltimo desta seção, trata de equidade e equidade. Aristóteles justifica suas considerações sobre a equidade a partir de um problema, o da generalidade das prescrições das leis que dizem respeito à justiça jurídica, discutido acima.

Mas antes disso, o filósofo volta-se para questões relativas à posição da equidade quando se relaciona com a justiça.

Inicialmente, cabe destacar que o justo e o equitativo, assim como a justiça e a equidade, são conceitos diferentes20, embora Aristóteles reconheça que as diferenças não são tão substanciais. Este é um dos pontos de partida para a argumentação de Aristóteles: até que ponto a justiça e a equidade estão relacionadas.

Na verdade, lemos na Ética a Nicômaco: “pois o equitativo, embora seja melhor do que o justo num certo sentido, é justo, e não é porque pertence a uma classe diferente de coisas que é melhor do que o justo. Portanto, o justo e o equitativo são a mesma coisa, e embora ambos sejam sérios, o equitativo é superior.”21

Assim, Aristóteles parece conceber a equidade como uma manifestação da justiça, mas não da justiça. O reconhecimento da equidade como tal, embora não haja uma afirmação clara nos textos aristotélicos nesse sentido, pode ser inferido do fato de que tanto o justo quanto o equitativo se manifestam como uma virtude, uma predisposição de caráter para fazer coisas justas, para desejar o justo, para dar a cada um o que é seu.

Dadas estas considerações próximas da posição da equidade em relação à justiça, voltamo-nos para a ideia de equidade em si.

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O conceito de equidade para Aristóteles, na Ética a Nicômaco, é visto na seguinte passagem: “portanto, o justo e o equitativo são a mesma coisa, e embora ambos sejam sérios, o equitativo é superior. É isto que produz a perplexidade, porque embora o equitativo seja justo, não é o que é justo segundo a lei. O equitativo é, em vez disso, uma correção do legalmente justo”.22

A equidade aparece no pensamento de Aristóteles como critério de correção para a justiça legal. Esta necessidade de correção da justiça jurídica é apresentada pela generalidade das previsões normativas, uma vez que as leis, manifestações do justo jurídico, são genéricas.

Na verdade, esta generalidade de comandos de leis pode ser enganosa, uma vez que afirmações genéricas podem ignorar questões específicas relevantes.23

Beever diz que: “para Aristóteles, a verdade ética é demasiada complexa para ser capturada por qualquer conjunto finito e consistente de princípios. Portanto, um sistema que insistisse na observação de princípios não poderia concretizar a justiça”24. Isto implica que as dificuldades para a determinação do agir ético - partindo do pressuposto de que a justiça está inserida no campo da ética - não permitem a plena concretização da justiça a partir de preceitos gerais, que ignoram elementos particulares em situações particulares. Para Hobuss: “portanto, a esfera prática, evitada de contingência, parece não poder ficar dependente da lei, na medida em que esta é, por definição, como referência, deficiente devido à sua generalidade.”.25

Aristóteles cuida da equidade em outra de suas obras, a saber, a Retórica. Ao discutir a possibilidade de duvidar das circunstâncias e definições de um ato, O Filósofo aponta a equidade como instrumento de superação das omissões da lei escrita como forma de ir além das previsões jurídicas. “Isso é o que chamamos de equidade; as pessoas consideram isso justo; é, de facto, o tipo de justiça que vai além da lei escrita.”.26

As omissões nas previsões das leis podem ser decorrentes da impossibilidade do legislador em criar normas capazes de atingir particularidades, ou seja, uma omissão deliberada, ou simplesmente quando uma situação passa despercebida pelo legislador27. Qualquer que seja o motivo, a equidade servirá como critério de correção da incapacidade da justiça jurídica em prever as peculiaridades de um caso e, mais ainda, como instrumento de reparação de injustiças que possam advir da lei.

Para ilustrar a equidade como instrumento de correção da injustiça, ver o recurso de Aristóteles à metáfora do governo de Lesbos, que, sendo de metal macio, adaptou-se ao tamanho para permitir a sua correção. É dito:

Esta é de facto a natureza do equitativo: uma correição da lei no aspecto em que é deficiente por ser geral. Pois esta é a causa também do facto de nem todas as coisas estarem de acordo com a lei: é impossível estabelecer uma lei em algumas matérias, de modo que é necessário recorrer a um decreto específico. Pois a regra [ou medida] de algo indeterminado também é indeterminada, tal como acontece com a regra de chumbo usada na construção de casas em Lesbos: a regra de chumbo muda em relação à forma da pedra e não permanece a mesma; e assim também o decreto específico muda em relação aos assuntos em questão28.

Nesta passagem, para além da utilização da metáfora da regra de Lesbos, conhecida nos meios acadêmicos de filosofia e direito, é importante enfatizar a afirmação categórica de Aristóteles de que seria impossível rebaixar uma lei em determinadas matérias, marcadas pela sua especificidade. Fugiria das previsões gerais da lei. Portanto, seria necessário recorrer a uma norma mais específica para cuidar do assunto privado, um decreto, nos termos do trecho citado, que poderia ser interpretado como uma decisão do próprio juiz.


A equidade como correção da justiça legal ou da lei escrita?

Estabeleceu-se que, para Aristóteles, a equidade funciona como critério corretivo do justo legal, em termos próprios e literais. É preciso pensar agora como o conceito de justiça jurídica pode ser visto na atualidade para que se possa compreender como a equidade poderia estar relacionada às ideias contemporâneas ligadas ao direito. Ao final, importa investigar se o justo jurídico em Aristóteles seria equivalente à compreensão atual do direito, especialmente do direito imposto pelo Estado, através do Poder Legislativo e dos Tribunais.

Para Beever,

[…] a ideia de que a justiça legal equivale ao direito positivo não se coaduna com a discussão de Aristóteles. Para Aristóteles, os vários tipos de justiça não são meras descrições de crenças sobre justiça ou explicações convencionais de virtude. Pelo contrário, os tipos de justiça são partes da virtude. Assim, a menos que tenhamos boas razões para agir de outra forma, “justiça legal” deve ser interpretada como referindo-se à forma como a lei deveria ser, não necessariamente à forma como ela é. A justiça legal é a justiça que a lei deve instanciar.29

A colocação parece correta. Aristóteles inclina seu pensamento sobre a justiça e todas as suas manifestações para a perspectiva ética, e não jurídica, no sentido que se aplica hoje. Isto relaciona o conceito de justiça à ideia de virtude, neste caso, a virtude da justiça, aplicada não como um atributo das leis, mas sim do legislador na sua atividade de criação de leis. É assim que Beever conclui: “para Aristóteles, então, a justiça legal aplica-se não aos juízes, mas aos legisladores; não é uma justiça judicial, mas uma justiça legislativa30.”

Se é verdade que o sentido de justiça jurídica de Aristóteles está relacionado com uma virtude específica do legislador em criar leis, até que ponto a equidade atua como corretiva das leis, tal como proposto pelo próprio Aristóteles, literalmente?

A função da equidade como corretiva da justiça jurídica, em termos gregos epanorthoma, não aparece como uma correção do direito positivo, das leis escritas. Mostra-se, antes, como uma forma de correção da forma de apresentação das prescrições feitas pelo legislador, que são dadas em termos gerais, que podem levar as leis escritas à injustiça. A equidade assim entendida parece harmonizar-se com o pensamento de Aristóteles em geral, que contempla as virtudes como um terreno intermediário entre os excessos e as faltas.

Levantamento patrimonial, portanto, para corrigir a imprecisão das leis escritas, sanando uma falha no campo da justiça jurídica, entendida como a virtude vinculada à atividade legislativa que gerou essas leis escritas. Nas palavras de Shiner:

A equidade retifica a lei escrita, compensando a deficiência do seu esquema inevitavelmente universal. O direito escrito fica inevitavelmente aquém do padrão de aplicabilidade que ostenta na sua face linguística. A lei escrita fala universal e absolutamente, mas não tem o direito de fazê-lo. A equidade corrige essa deficiência31.

Considerando que as leis se expressam através de uma linguagem geral, daí resulta que a necessidade de equidade deve funcionar como instrumento de correção quando as leis se desviam da justiça legal, ou seja, quando a atividade legislativa de criação de comandos gerais sai, por excesso ou por falta, de a média correspondente à feira. É, portanto, um critério corretivo e não a forma como as leis se expressam - isto é, a generalidade - do que uma correção da própria legislação escrita.

Assim, pode-se dizer que a equidade, para Aristóteles, serve como elemento de correção para o justo jurídico e não, pelo menos conceitual e diretamente, para o direito escrito.

A equidade como preservação da intenção do legislador?

Uma vez estabelecido que a equidade funciona como uma correção da justiça jurídica, entendida como a virtude da justiça relacionada com a prudência do legislador na criação das leis, daí decorre que a equidade não funciona como uma correção das leis escritas, questiona-se como a o juiz, o executor da justiça, a justiça animada32, usa a equidade e qual a sua relação com a lei escrita.

Abordando mesmo a figura do juiz e sua relação com a equidade, seria possível concluir, numa leitura mais apressada da Ética a Nicômaco, especialmente em 1137b, e da Retórica em 1374b, que a equidade autorizaria a retirada da lei pelo juiz para buscar justiça no caso concreto. Esta interpretação dos textos de Aristóteles, porém, não parece ser a correta.

Nas palavras de MacDonald:

O texto de Aristóteles, entretanto, não fornece em nenhum momento fundamento a essa linha de interpretação. Ao contrário, não parece permitir que o juiz se exima de aplicar o justo legal – isso iria de encontro, como vimos, à própria função judicial. O que ele afastou é a aplicação da lei de acordo com seu enunciado universal, com o objetivo de proteger a solução do caso concreto ou fim a que o legislador viu ao elaborá-la. Assim, o justo legal é muito antes redefinido pela equidade frente às situações específicas – e, desse modo, preservado – do que por ela rejeitado.33

No trecho acima, o autor defende a interpretação de que a igualdade, para Aristóteles, visa a separação da generalidade como um esquema normativo ao qual o legislador deve recorrer na criação de leis, agindo sobre a equidade, como um aperfeiçoamento da intenção do legislador trazido no texto das leis. Parece ir no sentido de que a função da equidade é reparar a imprecisão das normas gerais como representantes da intenção do legislador.

Portanto, a interpretação proposta por esses autores, com a qual este trabalho se alinha, é a de que a equidade não é um mecanismo de relativização do direito escrito, muito menos um instrumento de rebelião dos juízes contra os legisladores. É, antes, uma forma de investigar e aplicar a intenção do legislador quando não era possível demonstrar essa intenção no esquema de representação geral das leis.

Ao tratar com a intenção do legislador e da equidade, é importante trazer uma passagem da Retórica em que Aristóteles diz:

A equidade nos convida a ser misericordiosos com a fraqueza da natureza humana; pensar menos nas leis do que no homem que as elaborou, e menos no que ele disse do que no que ele quis dizer; não considerar tanto as ações do acusado quanto suas intenções, nem este ou aquele detalhe tanto quanto toda a história; perguntar não o que um homem é agora, mas o que ele sempre ou normalmente foi34

A ideia de equidade parece estar ligada à ideia de aplicação prática da intenção do legislador que escapou às previsões legais devido ao esquema geral de elaboração das leis. A atividade dos legisladores deve ser orientada pela justiça legal, como acima explicado. Contudo, se a necessidade de expressão por meio de formas gerais faz escapar às previsões dos aspectos jurídicos necessários à implementação da justiça, surge então a função retificadora da equidade.

Ao tratar da justiça e da sua relação com a função do juiz, Beever diz: “o papel da equidade no direito, então, é concretizar as intenções do legislador não captadas pelos princípios gerais expressos na legislação. Como diríamos, a equidade dirige a atenção para o espírito e não para a letra da lei.”35

Da mesma forma, MacDonald:

As palavras da lei constituem o registro universal do justo legal, expressando a arte arquitetônica do legislador; o equitativo, por seu turno, corresponde ao registro particular e propriamente prático, que efetiva em ações no mundo as intenções contidas na lei com atenção à variação das circunstâncias.36

Portanto, a equidade parece surgir no pensamento aristotélico mais como uma orientação interpretativa para o aplicador das leis do que como uma permissão para abandonar as prescrições das leis. A equidade baseia-se na noção de que as prescrições legislativas são deficientes não porque estejam erradas, mas porque não são capazes de abranger os detalhes de casos particulares.

Esta deficiência torna necessária a equidade como instrumento de retificação da justiça legal, liderança do legislador, adaptando as previsões abstratas aos casos particulares com a intenção dos legisladores como liderança e como base para o reconhecimento de que a decisão dos juízes faz parte da o espaço político - assim entendido nos termos do pensamento aristotélico.

Disso pode surgir a dúvida sobre como o juiz conseguiria desvendar a intenção do legislador para que finalmente se cumprisse o instrumento patrimonial de sua preservação. Para isso, é importante ter em perspectiva o pensamento de Aristóteles e a função que o juiz desempenha na polis. Afinal, como foi dito acima, o juiz atua no espaço político, entendendo a política como promoção do bem comum e da felicidade geral. Nesse sentido, para MacDonald: “a ciência política permitiria ao juiz refazer na ordem inversa todo o percurso deliberativo que é legítimo esperar que o legislador tenha realizado, em busca da sua intenção.”37

Por fim, é importante apresentar uma questão interessante: a aparente contradição entre as ideias sobre equidade na obra de Aristóteles. Isso ocorreria porque o Filósofo apresenta, na Retórica, noções consideradas um tanto ambíguas em relação à equidade, se comparadas àquelas trazidas na Ética a Nicômaco. Veja o trecho a seguir, que repete trecho citado acima para facilitar o entendimento:

A equidade nos convida a ser misericordiosos com a fraqueza da natureza humana; pensar menos nas leis do que no homem que as elaborou, e menos no que ele disse do que no que ele quis dizer; não considerar tanto as ações do acusado quanto suas intenções, nem este ou aquele detalhe tanto quanto toda a história; perguntar não o que um homem é agora, mas o que ele sempre ou normalmente foi. Ela nos convida a lembrar dos benefícios em vez dos danos, e dos benefícios recebidos em vez dos benefícios conferidos; ser paciente quando somos injustiçados; resolver uma disputa por negociação e não pela força; preferir a arbitragem à moção para um árbitro depende da equidade do caso, um juiz pela lei estrita, e a arbitragem foi inventada com o propósito expresso de garantir plenos poderes para a equidade.38

Percebe-se que Aristóteles parece apresentar diretrizes para a compreensão da equidade. Há vários significados para equidade nesta passagem, desde preceitos de prudência e parcimônia até significados mais próximos do que foi desenvolvido até agora: equidade como correção do esquema genérico de previsão normativa ao qual o legislador é obrigado a recorrer.

A compreensão mais exata destas contradições requer primeiro perceber que esta citação é extraída da Retórica. É uma escrita voltada para a prática da persuasão e da persuasão, especialmente “para fornecer argumentos aos litigantes em um processo judicial usa isso em seu benefício39”.

Isso leva a pensar que as práticas que Aristóteles relaciona com a equidade nesta passagem, especialmente aquelas que se assemelham à prudência, precisam ser interpretadas como técnicas de persuasão. Por outro lado, na Ética a Nicômaco o autor recorre a uma sistematização teórica da teoria da justiça, abrangendo, para isso, o conceito de equidade, tal como desenvolvido até à atualidade. Assim, a aparente contradição entre as definições de equidade na Retórica e na Ética a Nicômaco é apenas esta: aparente. Pode ser curado quando se tem em mente o contexto em que cada menção à equidade é realizada e o propósito de cada obra, bem como a integração das ideias de cada texto, lido como parte de um sistema filosófico abrangente.

A EQUIDADE ARISTOTÉLICA SOBRE A SEGURANÇA JURÍDICA, AS LACUNAS DA LEI E ALGUNS INSTITUTOS JURÍDICOS BRASILEIROS

A proposta deste trabalho é pensar os conceitos do pensamento de Aristóteles em relação aos conceitos da teoria jurídica vigente, ou vice-versa. A grande virtude das obras de pensadores considerados clássicos é a capacidade de dialogar com qualquer época, ainda que as condições de pensamento sejam diferentes, como evidentemente o são as atuais condições sociais e políticas daquelas em que Aristóteles viveu e escreveu.

Foram escolhidos três temas da teoria jurídica para relacioná-los com as ideias aristotélicas de equidade desenvolvidas nas seções anteriores, a saber: segurança jurídica, lacunas no direito e, para dar um componente prático a este trabalho, institutos do direito brasileiro relacionados à ideia de equidade.

Segurança jurídica e equidade aristotélicas

A ideia de segurança jurídica é tão vasta e complexa, no tempo e no espaço, que tratar apenas da precisão terminológica deste conceito com a atenção que merece distanciaria este trabalho dos fins a que se destina. Para permanecer fiel a esses objetivos, é necessário direcionar as considerações futuras para o que é pertinente sobre a relação entre equidade e segurança jurídica.

Ainda assim, faz-se necessário apresentar elementos históricos que delineiem a noção de segurança jurídica como valor do direito contemporâneo para que se possa compreender até que ponto a equidade se relaciona com ela.

Para Van Meerbeck40, o estado atual das ideias sobre segurança jurídica tem no século XVII o seu momento mais significativo. Isso porque a noção de possibilidade de percepção correta com precisão matemática tem na lógica cartesiana sua fonte de inspiração. Van Meerbeck disse:

A lógica cartesiana resulta da impregnação da teoria jurídica pelo pensamento científico da época, ilustrado principalmente por Descartes, Galileu e Newton. Num século em que a razão se tornou quase uma nova divindade, espalhou-se a convicção de que um conhecimento racional das causas acabaria por permitir aos humanos prever todas as consequências e acontecimentos futuros. A questão da previsibilidade tornou-se indispensável para definir um futuro não mais garantido por Deus. Este credo logo convenceu pensadores do direito natural como Grotius e Leibniz, e deu origem à lógica cartesiana da segurança jurídica: o domínio das causas jurídicas deveria permitir o conhecimento das consequências jurídicas.41

A ideia de segurança jurídica desenvolveu-se ao longo dos séculos seguintes com base nestas bases. O movimento do Iluminismo, no século XVIII, representa o ápice da crença na razão humana como capaz de examinar os fenômenos e descrevê-los: a razão humana orienta a elaboração da lei, que, criada pelos representantes do povo, se mostra aos seja perfeito. ponto de vista lógico e democrático. A percepção que Montesquieu tem do juiz como “boca muda da lei” caminha justamente nesse sentido42. Em Kant, pode-se ler que a aplicação da lei, no sentido de dar a cada um o que lhe é de direito, configura-se com precisão matemática43.

O século XIX apresenta o desenvolvimento da ideia de segurança jurídica nas previsões dos códigos, ainda que o paradigma da precisão matemática perca força. Para Van Meerbeck: “Os códigos civis francês e alemão deram corpo à crença na capacidade do direito de ser predeterminado por conceitos definidos abstratamente, apesar da reação antiracionalista da Escola Histórica Alemã ou da autoridade de Portalis.”44

No século XX, as ideias sobre segurança jurídica desenvolveram-se, com nuances, nos pensadores identificados como positivistas. Em Kelsen, lê-se sobre segurança jurídica quando o autor a identifica como um dos princípios do Estado de Direito, ao lado da democracia, relacionando-a com a possibilidade de “indivíduos submetidos ao Direito se poderem orientar na sua conduta pelas decisões previsíveis dos tribunais. ”.45

Ainda, com Kelsen, o elemento de certeza do direito, ligado à ideia de segurança jurídica, reaparece no capítulo VIII da Teoria Pura do Direito, que trata da interpretação do direito como um processo mental de determinação de normas jurídicas a partir do sistema jurídico. Kelsen demonstra que a segurança jurídica não tem a ver com uma única resposta correta por parte do direito, mas com a identificação da norma adequada dentro das possibilidades que a interpretação faz surgir. Nos mundos de Kelsen:

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a tradição tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximadamente.46

O desenvolvimento do conceito de segurança jurídica acompanha o desenvolvimento de ideias sobre o conceito e a função do direito. Como síntese das diversas formas de pensar a segurança jurídica, pode-se tomar a posição de Alexy, que diz sobre o assunto: “O princípio da segurança jurídica é um princípio formal. Requer um compromisso com o que é emitido com autoridade e socialmente eficaz47.” A ideia defendida por Alexy é que a segurança jurídica tem a ver com a estabilidade que se pretende alcançar a partir do estabelecimento de normas de direito positivo. É por esta razão que a segurança jurídica é um dos fundamentos do direito positivo para o autor 48.

Portanto, a questão que pode ser colocada em relação à ideia de segurança jurídica e ao conceito de equidade é se o uso da equidade como corretivo da justiça jurídica poderia ser considerado uma potencial violação da segurança jurídica.

Percebe-se que Aristóteles não contemplou a possibilidade de que os juízes, aplicando corretamente a equidade, pudessem afetar a segurança que se espera obter da lei. Isso porque os juízes atuariam na polis como a justiça personificada, voltada para o bem comum, decidindo com base na constituição política da cidade. É assim que MacDonald vê:

[...] o legislador deve elaborar as leis em função da constituição, que, para cada comunidade política, existe um arranjo constitucional que lhe é mais adequado para promover o bem comum e que se pode conceber uma constituição capaz de promover o bem comum de modo ideal. Em outras palavras, a concepção de bem comum expressa de modo mais detalhado nas leis que compõem o justo legal guarda alguma relação com o bem comum efetivamente buscado pela comunidade política. Este último, por sua vez, corresponde à constituição da comunidade, a qual traduz, através de uma forma mais ou menos desviada de apreensão, a noção de bem comum daquela que seria a constituição mais adequada para tal sociedade concreta, que, por fim, apresenta condições mais ou menos distantes daquelas presentes na melhor constituição por natureza.49

Nesse sentido, o pensamento aristotélico não contempla eventuais problemas de segurança jurídica que a decisão por equidade poderia trazer, uma vez que a correção feita pelo patrimônio à justiça jurídica representaria a aplicação do que se esperaria caso a lei tivesse previsto se não fosse o regime geral que precisa apresentar seus preceitos.

Dito de outra forma, a equidade não criaria situações de invasão dos poderes do legislador por parte do juiz, nem representaria um ataque às leis escritas da polis. É como pensa Beever ao falar do desempenho dos juízes com equidade: “A afirmação de Aristóteles é apenas que os juízes podem tentar realizar a intenção do legislador, dado que essa intenção não será e não pode ser capturada na forma que a legislação deve assumir”. 50Isto, então, está longe da visão de que a equidade é a rebelião da justiça contra a lei.

É importante dizer, por fim, que a conclusão alcançada fazia parte da ideia de equidade como conceito filosófico pensado por Aristóteles. Foi esse conceito que confrontou a ideia de segurança jurídica.

Se a equidade, ao mesmo tempo, é vista de outra forma e esse entendimento atual pode conflitar com a ideia de segurança jurídica é um assunto que foge às pretensões deste artigo, evidenciadas em sua introdução. Aqui é feito um estudo do conceito de equidade no pensamento aristotélico. Se, de facto, parece existir um conceito de equidade diferente daquele concebido por Aristóteles, e este conceito afeta as noções de segurança jurídica, esta situação transcende os limites deste texto.

Lacunas no direito positivo e na equidade aristotélica

Outro conceito da teoria do direito que merece atenção quando se trata da equidade aristotélica é o das lacunas do direito positivo. Um significado que pode ser aplicado ao termo “lacunas legais positivas” significaria a completa ausência de regras para regular certas questões, como a falta de leis que regulamentem especificamente o uso de moedas virtuais no Brasil51. Este sentido decorre do significado do uso comum dado ao termo “lacunas”.

Contudo, Bobbio apresenta mais dois sentidos para a ideia de lacunas no direito positivo – ou na ordem jurídica. A primeira é reconhecida “não no sentido, repetimos, de falta de uma norma a ser aplicada [sentido que se relacionaria ao exposto no parágrafo anterior], mas de falta de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada”.52 Em nesse sentido, significaria que não há determinação quanto à aplicação de uma norma geral e inclusiva ou de uma norma específica e exclusiva para uma situação imprevista; Bobbio chega a chamar tais lacunas de reais.

O segundo sentido dado por Bobbio à expressão “lacunas” da lei é o de lacunas ideológicas. Diz este autor: “Entende-se também por "lacuna" a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em outras palavras, não há a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse, mas que não existe.”53

O conceito de lacunas na legislação só parece fazer sentido se houver um referencial, para comparação. Não parece possível dizer que falta uma parte de algo se não se tem a noção do seu todo. A partir disso, as lacunas são como aponta Bobbio: elas existem quando se compara o ordenamento jurídico tal como é com o que deveria ser (lacunas ideológicas) ou quando a comparação ocorre dentro do próprio sistema, que é laminado pela ausência de previsão de norma geral ou específica para focar em fatos dados.

Qualquer que seja o significado do termo “lacunas jurídicas” a ser adotado, é necessário investigar se a equidade, como critério de correção da justiça jurídica em Aristóteles, também serve como instrumento para preencher as lacunas do ordenamento jurídico.

O primeiro passo para abordar esta questão é saber se as lacunas na lei se relacionam com a justiça legal, objeto da correição da equidade.

Como foi demonstrado, a justiça jurídica para Aristóteles é uma manifestação da virtude da justiça relacionada com a atividade do legislador. É possível dizer que se trata da prudência na atividade legislativa, da capacidade dos responsáveis pelas crianças de observarem as leis os valores da justiça no momento de legislar. Como a legislação se expressa num esquema de termos gerais, trata-se de equidade, aplicada pelo juiz para garantir que esses termos gerais não diminuem o valor da justiça jurídica, da eficácia da intenção do legislador.

A este respeito, Beever diz:

Aristóteles sustenta que os juízes podem perceber as intenções reais dos legisladores, em vez das intenções expressas literalmente na legislação. O papel da equidade no direito, então, é concretizar as intenções do legislador não captadas pelos princípios gerais expressos na legislação. Como diríamos, a equidade dirige a atenção para o espírito e não para a letra da lei.54

Desta forma, a equidade está relacionada com a correção da justiça jurídica através da aplicação ao caso concreto, pelo juiz, da intenção do legislador, impossível de ser revelada na fórmula textual genérica utilizada para elaborar leis. Parece não haver relação com os conceitos de lacunas ou lacunas regulatórias, conforme demonstrado acima.

Esta conclusão pode ser sustentada utilizando como argumento, entre outros, a análise etimológica das palavras escolhidas por Aristóteles. Shiner diz:

A virtude é um meio-termo entre dois vícios, os vícios de exceder o meio-termo e de ficar aquém do meio-termo (kat' elleipsin); os vícios ficam aquém (elleipein) ou excedem o que é exigido tanto nas paixões quanto nas ações, enquanto a virtude encontra e escolhe esse meio-termo. Por exemplo, a injustiça é definida em termos de um “excesso” ou “insuficiência” (elleipsis) em relação à justiça.55

Com isso, o autor citado pretende demonstrar que a palavra escolhida por Aristóteles não denota uma lacuna, evitar, mas um desvio de um padrão. Numa nota de rodapé, Shiner explica melhor seu argumento etimológico:

O uso técnico do termo elleipsis em geometria surgiu muito depois de Aristóteles. Além disso, também não conota “lacunas”. Uma elipse é a figura produzida quando um cone é cortado obliquamente por um plano que forma com a base um ângulo menor do que o lado do cone forma com a base. Não é a “lacuna” entre o referido plano e a lateral do cone que é significativa, mas sim a falha do plano pela lateral.56

O argumento etimológico apresentado faz sentido. A visão aristotélica das virtudes, da qual a justiça faz parte e com a qual se relaciona a equidade, tem muito mais a ver com desvio do que com ausência. No caso da imparcialidade e da justiça legal, tem a ver com o desvio da justiça do padrão de justiça legal, e não com as lacunas da lei.

Neste sentido, a função da equidade não reside no pensamento aristotélico em preencher as lacunas da ordem jurídica/direito positivo/direito escrito, mas sim em reinstaurar, através do juiz e no caso concreto, a justiça que o legislador não conseguiu. contemplar a necessidade de prescrições generalizadas típicas das leis.

O estabelecimento deste ponto é importante quando se consideram os instrumentos de integração do ordenamento jurídico quando este apresenta lacunas, reconhecidas por Bobbio57.

Entre eles, não vemos a equidade como uma técnica de integração, ou seja, uma técnica para resolver lacunas na ordem jurídica.

Ter isto em mente é importante para o desenvolvimento e aplicação de uma teoria correta e precisa sobre a posição da equidade nos sistemas jurídicos contemporâneos, a fim de evitar mal-entendidos.

Os institutos de direito positivo brasileiros e o conceito aristotélico de equidade

Para trazer a este trabalho um componente prático capaz de torná-lo atraente para ser lido por aqueles que estão mais preocupados com o exercício do direito ou com a aproximação entre o pensamento teórico e a dogmática jurídica, segue-se uma interação entre o conceito aristotélico de equidade e exemplos de o ordenamento jurídico positivo brasileiro onde o termo “patrimônio” foi utilizado pelo legislador.

Lei Federal nº 9.307, de 23 de setembro de 1996

Feito esse esclarecimento, a abordagem proposta baseia-se no critério de primeira aproximação, ou seja, a referência expressa ao estatuto patrimonial contido no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, a Lei Federal nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, possui o ato normativo com a mais famosa referência à equidade no direito positivo brasileiro.

Esta lei regula a criação de tribunais arbitrais e tribunais no Brasil, ou seja, pessoas e órgãos, fora do aparelho de justiça estatal, que poderão ser criados, a critério das partes, para julgar disputas que tratem de direitos de propriedade descartáveis. Esta lei apresenta as seguintes declarações normativas sobre patrimônio:

Art. 2 - A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. Artigo 11. A convenção de arbitragem poderá conter ainda:

II - a autorização para o árbitro ou árbitros julgarem por equidade, se assim for acordado pelas partes;

Artigo 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral:

II - os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de direito, mencionando expressamente se os árbitros julgaram com equidade;

O artigo 2º deste ato normativo, acima, estabelece, desde já, que o julgamento do árbitro poderá basear-se em critérios de lei ou de equidade. Aqui surge um problema: estaria o direito brasileiro se referindo à equidade nos moldes do pensamento aristotélico, até então demonstrado?

A arbitragem, tal como regulamentada em outros países, e também como pode ser vista na história, serviu de inspiração para o legislador brasileiro na elaboração da lei de arbitragem. É da história da arbitragem e da arbitragem comparada, como instituto, a utilização da equidade como critério de julgamento. Contudo, parece que o uso da palavra “equidade” na arbitragem, no mundo e também no Brasil, significou a aplicação de critérios gerais de justiça para a solução de litígios.

Sobre os muitos significados de equidade para arbitragem, Hunter e Redfern dizem:

Pode significar, por exemplo, que o tribunal arbitral: deve aplicar regras jurídicas relevantes ao litígio, mas pode ignorar quaisquer regras que sejam puramente formais (por exemplo, uma exigência de que o contrato deveria ter sido celebrado sob alguma forma específica); ou deve aplicar regras jurídicas relevantes à disputa, mas pode ignorar quaisquer regras que pareçam operar de forma dura ou injusta no caso específico que está sendo apresentado; ou deveria decidir de acordo com princípios gerais de direito; ou pode ignorar completamente quaisquer regras de direito e decidir o caso com base nos seus méritos, uma vez que estas atingem o tribunal arbitral.58

Para Valle59: “não parece haver diferença substancial entre o significado de arbitragem por equidade e a expressão ex aequo et bono e suas variações”.

O sentido normalmente dado à equidade na esfera da arbitragem, e que deve ser efetivamente dado às disposições da Lei que institui a arbitragem no Brasil, está vinculado ao julgamento proferido pelo árbitro com base em critérios genéricos de justiça, princípios de direito, em máximas de correção de distorções, em preceitos de justiça etc. – o que significa ex aequo et bono. Não parece ter relação com o conceito preciso de equidade que se procurou demonstrar neste trabalho, à luz do pensamento de Aristóteles e seus comentadores: a justiça como correção do juiz e no caso concreto do regime geral a que o legislador deve recorrer na elaboração de leis.

Diante disso, os demais indícios que a Lei Federal nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 apresenta (artigo 11, II, artigo 26, II, citado acima) seguem a mesma conclusão acima.

Lei Federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966

A Lei Federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, estabelece as normas gerais relativas à arrecadação de tributos no ordenamento jurídico brasileiro. Este é o Código Tributário Nacional. A menção ao capital próprio consta de parte desta Lei destinada à interpretação e integração da legislação fiscal. Abaixo:

Art. 108. Na falta de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:

- a analogia;

- os princípios gerais do direito fiscal;

- os princípios gerais de direito público; IV – patrimônio líquido.

§ 2º. A utilização do capital próprio não poderá resultar na renúncia ao pagamento do imposto devido.

Desde logo, percebe-se que o recurso à equidade almejado pela legislação em questão prestar-se-ia à integração das lacunas quando se exprimissem disposições legais ausentes. Isto implica que o legislador pretende a equidade como uma técnica para resolver lacunas regulatórias, o que já foi rejeitado na subsecção acima. É interessante notar que o §2º do artigo acima cria um limite ao patrimônio como forma de integração do direito positivo/instrumento de preenchimento de lacunas: a utilização do patrimônio não pode resultar em isenção do pagamento do imposto devido.

Também aqui a equidade parece distanciar-se do conceito de equidade construído à luz da filosofia aristotélica.

Lei Federal 13.105, de 16 de março de 2015

A Lei Federal 13.105, de 16 de março de 2015, institui o Código de Processo Civil no Brasil. Nele há apenas uma menção ao patrimônio: trata-se de uma limitação ao seu uso, que só seria permitido mediante autorização da própria Lei. Abaixo:

Art. 140. O juiz não está isento de decidir sob a alegação de falta ou obscuridade do ordenamento jurídico.

Parágrafo único. O juiz só decidirá pela equidade nos casos previstos em lei.

Este artigo está incluído na seção que trata dos poderes e deveres dos juízes. Fica estabelecido que o uso do patrimônio deve ser autorizado por lei. Aqui é mais difícil determinar se a equidade estabelecida poderia relacionar-se com o conceito aristotélico desenvolvido até agora, embora seja possível intuir que o uso do termo escolhido pelo legislador no artigo acima é de equidade como critério de julgamento baseado em preceitos genéricos de justiça para o caso específico.

Isso porque, em primeiro lugar, se assim não fosse, não seria necessário determinar que o patrimônio só poderia ser invocado nos casos previstos em lei. Parece haver aqui um receio de que a equidade sirva como uma revolta contra a lei escrita, conforme mencionado nas páginas acima. Em segundo lugar, os autores que comentam esse dispositivo veem, em síntese, a equidade como instrumento para desacelerar o rigor da lei às particularidades do caso concreto 60.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou, antes de mais, definir o conceito de igualdade para o pensamento aristotélico, recorrendo aos textos centrais de Aristóteles sobre o tema, a Ética e a Retórica a Nicômaco, mas também recorrendo a referências a comentadores da obra deste importante filósofo.

A primeira seção foi dedicada a apresentar os conceitos fundamentais da teoria da justiça trazidos na Ética a Nicômaco, enfatizando a justiça jurídica como parte da justiça política e como virtude ligada à produção de leis pelo legislador. Estas leis, necessariamente, precisam ser apresentadas num esquema genérico, o que pode levá-las à injustiça em determinados casos concretos.

Na segunda seção, foi evidenciado o papel da equidade como corretivo da justiça jurídica, buscando demonstrar que, ao contrário do que poderia parecer aos leitores mais apressados, a equidade não autorizaria a supressão da legislação escrita pelo juiz. Na verdade, o que se dá é uma busca pela intenção do legislador que não pode ser concretizada no esquema genérico de elaboração das leis.

Por fim, a terceira seção procurou demonstrar que, considerando as premissas baseadas em outras partes da obra, a ideia aristotélica de equidade não contradiz o paradigma da segurança jurídica porque a função da equidade não é operar um ataque à legislação, mas corrigir uma injustiça de seus regulamentos gerais.

O que se viu é que para o pensamento de Aristóteles as decisões baseadas na equidade são construídas tendo em vista a esfera política da qual fazem parte os juízes, como homens da pólis. A equidade seria construída a partir da constituição de cada sociedade, de cada povo, e, portanto, não gerando insegurança.

Em outro sentido, o conceito aristotélico de equidade também não funciona como técnica de integração da ordem jurídica quando se estabelecem lacunas normativas. Isto porque a equidade serviria para corrigir o fracasso da virtude da justiça legal em criar as leis apropriadas para determinados casos concretos, e não para suprimir quaisquer vazios normativos que possam existir.

Como última discussão, na terceira seção, foram apresentados três exemplos do uso do termo “patrimônio patrimonial” nas leis brasileiras: a lei de arbitragem brasileira, a lei brasileira que trata de impostos e a lei que estabelece as regras de procedimento civil. jurisdição. Nenhuma dessas menções, porém, significa o conceito aristotélico de equidade, estando mais intimamente relacionada a ideias como justiça, razoabilidade, adequação, ou mesmo suprindo lacunas na legislação positiva.

Concluindo, talvez o verdadeiro propósito deste artigo tenha sido destacar o potencial do pensamento aristotélico como impulsionador das discussões sobre a teoria jurídica contemporânea. Espera-se que as discussões aqui levantadas forneçam contrapontos para manter em movimento as discussões sobre essas questões.

Sobre o autor
Luan Victor de Souza Luna

Bacharel em Direito (UNIFap). Mestre em Direito Privado (PUC-MG). Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI) e da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Professor e advogado militante.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUNA, Luan Victor Souza. Equidade aristotélica e segurança jurídica: Aproximação, distanciamento e exemplos no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7484, 28 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107653. Acesso em: 8 mai. 2024.

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