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A desconsideração inversa da personalidade jurídica no âmbito do direito das famílias

08/08/2023 às 15:49
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São claras as vantagens da utilização da desconsideração inversa da personalidade jurídica no direito de família, ratificadas pela doutrina civilista majoritária e pelos tribunais superiores.

Resumo: A finalidade deste trabalho é despertar no leitor a curiosidade da investigação de que a desconsideração inversa da personalidade jurídica pode ser um instrumento de relevância cogente na busca da amenização das fraudes ocorridas nas relações familiares. Um instituto que nasceu no direito empresarial, mas, que na modernidade, possui inúmeras searas jurídicas que bebem desta fonte, sendo, a tratada neste artigo, a do direito familiar. Bem assim, tem como fulcro deixar de visualizar a desconsideração num caráter absolutamente patrimonialista e perceber que trata-se de importante mecanismo para perfazer, inclusive, mandamentos constitucionais basilares do ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da dignidade da pessoa humana, norteador de nosso sistema.

Palavras-chave: Desconsideração; personalidade jurídica; fraudes; desconsideração inversa.


1. INTRODUÇÃO

Nascida de debates firmados na jurisprudência, a primeira aplicação da desconsideração da personalidade jurídica se deu na Inglaterra, em 1897. A partir daí, diversos precedentes começaram a ser firmados, mesmo com a utilização do instituto condicionada à hipótese do cristalino abuso da personalidade jurídica da empresa, o que restava desaguando na pouca efetividade, devido à dificuldade probatória que o permeava.

No Brasil, o autor Rubens Requião (1918-1997) suscitou o instituto pela primeira vez em 1960, que só fora consubstanciado legalmente em 1990, com a edição do Código de Defesa do Consumidor, o qual trouxe a novidade legislativa no bojo do seu texto, no art. 28, inspirando, por conseguinte, novas previsões, em 1994 e 1998 nas Leis 8884 e 9605, respectivamente.

Saliente-se, que nas legislações acima mencionadas, a aplicação da desconsideração se dava de forma mais flexível, bastando a prova do prejuízo experimentado pelo credor. Com o advento do Código Civil de 2002, sua regulamentação se deu da forma devida, trazendo situações específicas que consentem e justificam sua aplicabilidade, como veremos adiante.

É consentânea a realidade desonesta e manifestamente burlista em que estão inseridas as relações sociais desde os tempos arcaicos, e, ainda mais, no cenário atual. Agir dolosamente, a fim de fraudar e prejudicar os direitos e interesses de outrem torna-se, cada vez mais, algo natural nas interrelações, o que resta obstruindo, por conseguinte, deveres como a boa-fé, e, na mesma mão, a ordem jurídico-normativa.

É neste contexto que surgem no ordenamento jurídico mecanismos para impedir atitudes como as ditas alhures. Neste sentido, destaca-se o instituto alvo deste trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa.

O susodito meio, na contramão da desconsideração convencional, permite ao prejudicado se insurgir sobre o patrimônio da pessoa jurídica, a fim de resgatar os bens que a ela foram transferidos de forma fraudulenta, conduta esta, que ocorre imbuída do desejo de não adimplir as obrigações que são impostas pela lei, quando, por exemplo, de uma eventual dissolução de sociedade conjugal, e, até mesmo, do dever constitucional de prestar alimentos. A desconsideração inversa nada mais é que a permissão, de forma não habitual, que a pessoa jurídica responda pelas obrigações pessoais do sócio.

O presente artigo busca destacar a desconsideração inversa como meio jurídico adequado para impedir a atividade fraudulenta do cônjuge, pensionista ou alimentante que visa transferir seu patrimônio para a pessoa jurídica a que estiver vinculado, a fim de se esvair das responsabilidades que derivam das obrigações inerentes às figuras acima mencionadas.

Frise-se, outrossim, que o instituto ora estudado é cogente demonstração da necessidade que o direito possui de beber de outras fontes em inúmeras situações, ante a ausência de previsão legislativa específica para aquele caso. A desconsideração convencional é produto do direito empresarial, aplicado em larga escala nesta seara. Entrementes, fez-se necessário a captura do instituto pelo Direito Civil, para que, feitas as devidas adequações, seja aplicado de forma eficaz no ramo civilista.

Impende falar, ademais, que esta pesquisa decorre do levantamento bibliográfico na seara do Direito Civil, com fito nas relações de família, abordando a inovação trazida com a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa.

Neste diapasão, são diversos os autores que expõem suas visões sobre o tema, dentre eles: Maria Berenice Dias (2016), que informa acerca da utilização do instituto nas relações familiares; Cristiano Chaves (2016), que a partir de sua obra afirma a importância da aplicação do mecanismo para desmascarar os véus fraudulentos firmados nas relações familiares.

Ainda, Rolf Madaleno (2015), que destaca a insurgência da desconsideração nas relações alimentares, sendo aplicada para inibir as condutas fraudulentas dos alimentantes a fim de se esvair da responsabilidade alimentícia, e, a partir daí, perfazer o direito constitucional do alimentando; e Carlos Roberto Gonçalves (2012), que ratifica a proposta beneficente do instituto, asseverando, na mesma sorte, a sua utilização como forma de evitar abusos patrimoniais, mesmo nas relações puramente privadas.

De mais a mais, o entendimento dos Tribunais Superiores é uníssono quanto a aplicabilidade do método em tela nas relações ora tratadas, e isto, se extrai das ementas acostadas ao presente trabalho. Outrossim, Flávio Tartuce, na publicação de seu artigo na rede “jusbrasil.com.br”, ressalta a relevância da aplicação da desconsideração inversa, o que permite o levantamento do véu maquiavélico e protetivo lançado sobre a pessoa jurídica, com o fim de se esquivar das obrigações devidas.


2. A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA NO DIREITO DAS FAMÍLIAS

Patente é a constatação de que a autonomia das empresas/sociedades empresárias sofreram uma obstacularização marcante nos processos fraudulentos que eram habitualmente desenvolvidos, e isto se dá em razão da adoção, no Código Civil/2002, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Ante a verificação da genérica possibilidade de aplicação da teoria trazida no artigo 50 do susodito diploma, vê-se a necessidade de empregá-la em relações estritamente privadas como forma eficaz de inibir processos viciados. Nessa sorte, a teoria da desconsideração, também conhecida como disregard theory, tem sido de larga aplicação, inclusive, no âmbito do direito das famílias.

Tal ramo do direito é perpassado por forte vetor econômico, o que acaba desaguando nos mais diversos problemas financeiros quando do desamor. Não é raro, quando imbuídos pelo sentimento de vingança, os ex-consortes se valerem de seus respectivos estabelecimentos empresariais como véus protetivos para prejudicar o interesse daqueles que pretendem, neste caso, a partilha de bens. Para tanto, o cônjuge pode utilizar-se ou não, de um terceiro, lançando mão da pessoa jurídica como certo tipo de blindagem, a fim de diminuir ou até acabar com o patrimônio comum.

Sobre o assunto, expõe André Luiz Santa Cruz Ramos (2014, p. 297):

“Atualmente, a desconsideração inversa tem sido muito aplicada em questões relativas ao direito de família, em processos nos quais se percebe que um dos cônjuges desvia bens pessoais para o patrimônio de uma pessoa jurídica com a finalidade clara de afastá-los da partilha ou frustrar a execução de alimentos”.

Após desdobrar-se por diversos ramos do Direito, eis que a Desconsideração da personalidade jurídica encontra incidência no direito familiar, o que se denota especialmente pelas modernas decisões judiciais e jurisprudências que vem sendo consolidadas. Além da expressiva aplicabilidade do instituto nas ações concernentes às segregações conjugais, harmonioso, outrossim, seu cabimento nas lides que envolvem prestação alimentar. Ora, trata-se, aqui, de direito fundamental consubstanciado na carta magna de 1988, que deve ser respeitado e devidamente cumprido.

2.1 As Teorias: Maior e Menor

A Teoria Maior, também conhecida como restritiva, afirma ser possível a desconsideração da personalidade jurídica quando presentes duas hipóteses: o abuso de direito ou a confusão patrimonial. Segundo esta teoria, ignora-se a autonomia inerente à sociedade empresária com vistas a perfazer o cumprimento dos direitos dos envolvidos e consubstanciar a boa-fé nas relações empresariais.

A Teoria Maior possui corolário legal nos artigos 50 do código civil e 28 do código de defesa do consumidor, e apenas admite a desconsideração diante da visualização cristalina de alguma das hipóteses supramencionadas. Frise-se que há fortes críticas à esta corrente, haja vista a dificuldade, inúmeras vezes, da comprovação dos requisitos postos, e, por conseguinte, a impossibilidade de utilização do instituto.

De outra banda, a Teoria Menor possui cunho cristalinamente mais amplo, razão pela qual não exige o cumprimento de nenhum requisito específico, bastando, para sua utilização, o inadimplemento dos devedores, o que nos permite afirmar que nesta situação pouco importa se estamos diante de um abuso de direito ou de confusão patrimonial, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pode tomar forma pelo simples fato da inadimplência. Com espeque no artigo 28 §5º do Código de Defesa do Consumidor, esta corrente ignora a subjetividade da conduta do devedor, importando-se, apenas, com o ato material do descumprimento.

Não obstante as visíveis benesses decorrentes da Teoria Menor, ante o reduzido grau de complexidade que lhe envolve, bem como a facilidade no que tange aos aspectos comprobatórios, na desconsideração inversa a teoria adotada é a maior, sendo, por conseguinte, a que diz respeito às situações do direito familiar que comentaremos em breve. Dessa forma, o prejudicado precisa comprovar se o sócio agiu de forma fraudulenta, lançando mão do abuso do direito ou mediante confusão patrimonial, para lograr êxito na aplicação do instituto.


3. A desconsideração no âmbito dos alimentos

No senso comum, os alimentos significam as substâncias utilizadas para subsidiar a nutrição e a alimentação dos seres vivos, tendo, dentre suas diversas finalidades, a função de fornecer aos consumidores elementos fisiológicos e nutricionais mínimos a fim de mantê-los vivos.

Para o direito, os alimentos estão intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana. O Direito familiar tem sido interpretado numa nova perspectiva, em que se discute as questões concernentes com espeque na reformulação do direito civil, que caminha, hoje, sob um viés estritamente constitucional, de forma a injungir que as relações modernas sejam constituídas com a cogente observância dos direitos fundamentais dos indivíduos, garantindo o caráter protetivo e socioafetivo do direito de família, ignorando-se, por conseguinte, o cunho puramente patrimonial que anteriormente lhe dava suporte.

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Nesse diapasão, temos que a família moderna possui um objetivo, o de proporcionar que a convivência se dê de maneira que consubstancie a dignidade e a realização das pessoas, buscando a proteção de elementos subjetivos tais como sentimentos, virtudes e valores, a fim de que as realizações pessoais sejam alcançadas. E dessa forma, os alimentos avançam na esfera subjetiva, desvencilhando-se da ideologia da pura cessação da fome, tendo a finalidade, ainda, de promover a concretização do bem-estar dos indivíduos.

É o que se extrai, inclusive, da lição de Dias (2016, p.937):

“A expressão alimento não serve apenas ao controle da fome. Outros itens completam a necessidade humana, que não alimentam somente o corpo, mas também a alma. No dizer de Gelson Amaro de Souza, o maior alimento da alma é a liberdade, e esta somente se conquista com o estudo, o aprendizado e a fruição do mínimo existencial necessário ao exercício da cidadania. Sem o exercício da cidadania não há liberdade e sem liberdade não há vida digna”.

No âmbito alimentício, além de ser base para que se observe o direito aos alimentos, o princípio da dignidade da pessoa humana serve, também, como instrumento limitador de abusos, razão pela qual podemos afirmar que a fixação do quantum devido ultrapassa o simples cálculo aritmético, devendo ser observado o binômio necessidade (do alimentando) e possibilidade (do alimentante), na busca do equilíbrio onde o percentual fixado não seja inferior ao mínimo da necessidade do alimentando, nem supere a possibilidade financeira do alimentante.

O que se constata, é que a Carta suprema de 1988 traz consigo todo um arcabouço de regras e princípios que possuem a cogente finalidade de consagrar o ser humano como sujeito de direitos, concedendo-o a faculdade de sobreviver dignamente, e é nesta senda que os alimentos estão reconhecidos, inclusive, entre os direitos sociais (art. 6º, CRFB/88).

Outra situação em que fica evidente esse tratamento especial dado ao direito alimentício como instrumento corporificador da dignidade da pessoa humana é a responsabilidade subsidiária que recai sobre parentes do alimentando. Embora a responsabilidade principal seja dos genitores, na impossibilidade do cumprimento do direito por estes, o nosso ordenamento, em entendimento firmado nos tribunais superiores, impõe a subsidiariedade da responsabilidade sobre outros parentes, tais como os avós, e, ainda, a possibilidade de cônjuges e companheiros assumirem tal dever.

Segundo os doutrinadores que tratam do tema, os alimentos estão pautados, outrossim, no princípio da solidariedade, o que nos permite afirmar que independentemente do tipo de família formada, sejam elas monoparentais, homoafetivas, união estável, casamento, o que justifica a obrigação alimentar, são os elos firmados no parentesco. É a inteligência, v.g, de Chaves (2015, p. 714), “(...) a obrigação alimentar é, sem dúvida, expressão da solidariedade social e familiar (enraizada em sentimentos humanitários) constitucionalmente impostas como diretriz da nossa ordem jurídica”.

A fim de explicitar ainda mais o caráter protetivo e substanciador da dignidade humana, sem receio de exageros, importante frisar a figura dos alimentos gravídicos, previstos na Lei 11.804/08. Benfazejo instituto que permite à gestante o direito de buscar os alimentos ainda durante a gravidez, mesmo que não haja constituição parental posta.

Afirma Dias (2016, p. 970):

“A expressão é feia, mas o seu significado é dos mais salutares. A L 11.804/08 concede à gestante o direito de buscar alimentos durante a gravidez - daí "alimentos gravídicos". Apesar do nome, de alimentos não se trata. Melhor seria chamar de subsídios gestacionais. Ainda que não haja uma relação parental estabelecida, existe um dever jurídico de amparo à gestante”.

Em rol não taxativo, a lei expõe quais as despesas são abarcadas desde a concepção ao parto. Frise-se que as despesas devem guardar relação com a gestação e não com a gestante, de forma pessoal.

Tudo isso, para ratificar a preocupação existente no nosso sistema jurídico em materializar a dignidade da pessoa humana, e em especial, no tema aqui estudado, sendo o tratamento alimentício expressão latente do princípio susodito.

Dessa forma, captado o tratamento constitucional e o caráter protetivo dado aos alimentos, devemos, entrementes, reconhecer que os sujeitos que compõem as relações, não raras vezes, ignoram as disposições legais e constitucionais e de forma insensata, põem em xeque os direitos aqui estudados.

Como suscitado à saciedade, a obrigação alimentícia perfaz um caráter subsistencial para quem a busca e, não obstante, são constantes as notícias de que aqueles tido por lei como obrigados, lançam mão de elementos ardilosos para evadir-se de tal responsabilidade.

E é nesse contexto fraudulento que aparece o objeto deste artigo. Entre diversas medidas que são usadas para fugir da obrigação de pagar alimentos, está a transferência de bens e valores para empresas de propriedade do devedor, na tentativa de impor uma forma de blindagem, caracterizando, por conseguinte, sua suposta insolvência.

É consentâneo o caráter emergencial que possuem os alimentos, ligado, como já dito, intrinsecamente à materialização da dignidade da pessoa humana e por esta razão, merece soluções céleres.

Nesse diapasão, tendo em vista que a fome não espera e diante da inadmissibilidade de ardentes discussões judiciais nesta seara, forçoso convir que resta esperançosa a utilização da desconsideração inversa, a fim de expelir a negativa ao sonegado crédito alimentar, permitindo-nos afirmar, outrossim, que a moderna visão do instituto é capaz de conferir eficácia substancial aos alimentos, tanto no que tange à sua fixação bem como quando da cobrança e eventuais revisões.

É o que defende Madaleno (2013, p. 1033):

“Cuida-se da desconsideração inversa, para captar a autêntica realidade ocultada pelo sócio e empresa no propósito de encobrir a obrigação alimentícia do devedor executado, excedendo ambos ao objetivo social, e em afronta à ordem jurídica e lidem criminosamente o direito alimentar viabilizado para assegurar a vida, o mais importante dos direitos”.

Embora seja debatido ainda de forma tímida, o instituto vem sendo aplicado em larga escala nos litígios familiares instaurados modernamente, e isto se traz à lume com os entendimentos que vem sendo firmados na jurisprudência dos Tribunais. Vejamos:

EMBARGOS DE TERCEIRO – Penhora on-line – Alimentos devidos pelo marido e sócio da embargante – Desconsideração inversa da personalidade jurídica – Confusão patrimonial – Bloqueio de valores depositados em conta corrente de titularidade da empresa – Sócios casados sob o regime de comunhão parcial de bens – Acervo em conta corrente que constitui bem comum – Os ganhos de cada cônjuge convergem para o patrimônio comum no momento de sua percepção – Inteligência dos arts. 1.659, VI e 1.660, V, do CC/02 – Ressalva da meação – Levantamento da constrição na proporção de 50% determinado – Embargos de terceiro acolhidos – Inversão dos ônus de sucumbência, observada a gratuidade – Recurso provido.

(TJ-SP – AP: 1010253-03.2018.8.26.0001, Relator: Luiz Antonio de Godoy, Data de Julgamento: 16/10/2018, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/10/2018)

Com efeito, latente a observação de que a autonomia patrimonial vem sendo mitigada com a demonstrada eficácia da aplicação da desconsideração inversa, sendo possível a responsabilização da pessoa jurídica quando o alimentante tenta fraudar a execução ou evadir-se de sua obrigação.


4. A desconsideração no âmbito da dissolução conjugal

Na mesma direção constitucional que foi abordada no tocante aos alimentos, caminha o tema que a partir de então será estudado. Mas, aqui, temos uma curiosidade. Qualquer relação, quando de sua constituição, presume a aquisição de resistência aos problemas ordinários com o decorrer do tempo, com fulcro na longevidade e bem estar da união.

Ocorre que, embora não seja regra, tem sido contumaz a dissolução das relações provocadas por situações adversas geradoras de infelicidade. Com efeito, nenhum indivíduo componente do meio social merece viver no infortúnio, e é com base nesta premissa que a Constituição de 1988 (vide art. 226, §6º) e as regras civilistas modernas, tratam de forma sensível sobre a dissolução matrimonial: o divórcio.

Dessa forma, não se pode olvidar que o sistema normativo de nosso País, com base, mais uma vez, no pilar da dignidade da pessoa humana, confere aos sujeitos de direitos, a faculdade de desvencilhar-se do pacto que, anteriormente, era projetado como eterno.

Forçoso admitir que as pessoas são voláteis, ninguém está adstrito à manutenção de sentimentos se a realidade os negam e cabe ao Direito avançar ao simples cuidado dos efeitos jurídicos decorrentes do desfazimento conjugal, mas, outrossim, abarcar a subjetividade que permeia cada caso, a fim de consubstanciar os direitos fundamentais dos indivíduos e proporcionar o bem comum.

Aduz Chaves (2015, p. 341-342):

“O divórcio, portanto, materializa o direito reconhecido a cada pessoa de promover a cessação de uma comunidade de vida (de um projeto afetivo comum que naufragou por motivos que não interessam a terceiros ou mesmo ao Estado – aliás, não sabemos mesmo se interessam a eles próprios). Por isso, toda e qualquer restrição à obtenção da ruptura da vida conjugal não fará mais do que convalidar estruturas familiares enfermas, casamentos malogrados, convivências conjugais em crise, corrosivas e atentatórias às garantias de cada uma das pessoas envolvidas”.

Dessa forma, resta claro que caiu por terra a visão patrimonialista e conservadora que permeava o instituto do casamento nas codificações anteriores a 1988, tratando-o como indissolúvel, até porque sabe-se que a intervenção do Estado na vida privada deve ser mínima, sob pena de violação de mandamentos constitucionais basilares, como o direito à privacidade. O que se percebe, hoje, é que materializar os direitos da personalidade do indivíduo de forma indissociável da dignidade da pessoa humana, tornou-se absoluta prioridade. Importante salientar, ainda, que tais disposições também se aplicam a união estável.

Com a novel legislação, apenas um único requisito é imposto para que se obtenha a dissolução do casamento ou da união estável: a vontade da separação. E como qualquer fato jurídico, o divórcio/separação produz seus efeitos, decorrentes da extinção do matrimônio, e dentre a diversidade de efeitos, recai nossa atenção às questões atinentes a partilha de bens.

Inviável falar de partilha de bens sem se ater ao regime de bens, isto porque, em qualquer regime, exceto no da separação convencional, a dissolução acarretará, inevitavelmente, efeitos econômico-financeiros.

Tão importante é a partilha, que a legislação tenta impedir a constituição de novo casamento antes da divisão, impondo como impedimento matrimonial previsto no art. 1523, III, do Código Civil, a não realização da divisão, mesmo que tratando-se de pessoa já divorciada ou separada de fato. Destaque-se, que a depender do regime, todos os bens, anteriores e comuns ao casamento, deverão ser partilhados, como no caso da comunhão universal.

Ante as nuances de cunho eminentemente patrimonial que enlaçam a partilha de bens, recorrente a hipótese em que o cônjuge ou companheiro, quando da dissolução conjugal, transfere, de forma ardilosa, os bens comuns, que entrariam na partilha, para as pessoas jurídicas em que são proprietários ou figuram como sócios. Isto, para se desamarrar da obrigação da meação.

Outra situação fraudulenta que impede a partilha é a retirada de forma ficta do sócio da sociedade. Vejamos a lição de Dias (2016, p. 583):

“Por vezes, ocorre até a retirada fictícia do sócio da sociedade. Ele, em conluio com terceiro, vende sua parte na empresa, a fim de afastar da partilha as quotas sociais ou o patrimônio do casal `que havia sido revertido ao ente societário. Também a dissolução da sociedade, com o mesmo fim de esconder patrimônio partilhável configura abuso da personalidade jurídica”.

Diante de tais situações, pode o cônjuge ou companheiro prejudicado lançar mão da desconsideração inversa, a fim de buscar no patrimônio da empresa os bens que lhe são de direito. Inclusive, pode o magistrado declarar a ineficácia do negócio jurídico eivado de vício na mesma sentença que declarar o divórcio.

É o que sustenta Dias (2016, p. 583), “Verificando o juiz o engodo engendrado pelo consorte empresário, é possível declarar, na própria sentença que decreta o divórcio, a ineficácia do ato fraudulento praticado sob a veste da pessoa jurídica”.

A aplicação do instituto na seara do direito das famílias guarda estrita relação com a necessidade de combater a fraude. Visualiza-se, cada vez mais, cônjuges que agem com ou sem a ajuda de terceiros, com a desprezível finalidade de burlar a lei e descumprir obrigações por ela impostas. No caso em análise, o desejo de esconder o patrimônio comum nos bens empresariais, sendo, portanto, a desconsideração inversa, mecanismo eficiente de impedir este tipo de conduta e salvaguardar os direitos inerentes.

Para Chaves (2015, p.421), a aplicação da desconsideração no âmbito do direito das famílias, também, pelo seu caráter mais informal, vejamos:

“Aliás, em relação aos processos de família, não se pode negar a redobrada importância da teoria da desconsideração em razão da imperiosa necessidade de procedimentos mais simplificados e menos formalistas, tendendo a soluções mais justas (juízo de equidade), considerando que o objeto da disputa judicial incide sobre relações de ordem íntima, cuidando do aspecto psicológico espiritual, da pessoa humana, dizendo respeito, em última análise, à sua própria existência”.

Nos mesmos moldes tem sido a postura admitida pelos Tribunais de nosso país, os quais vem aplicando a teoria da desconsideração inversa no âmbito familiar, e ressaltando seu caráter benéfico. Importante trazer à pauta festejado julgado do TJ-RS. Veja-se:

“Tendo tocado na partilha consensual à mulher/autora o único bem registrado em nome da sociedade comercial, evidente o dano que a impede de exercer seu direito à meação. Aplicação da teoria da disregard para determinar a transferência da titularidade do imóvel à autora, conforme acordado na separação consensual, com sentença homologatória”.

(TJ/RS, Ac. Unân., 8ª Câm. Cív., Ap. Cív. 70005866660, Rel. Des. José S. Trindade, j. 3.4.2003, DOERS 17.4.2003, RBDFam 17: 114)”.

O Superior Tribunal de Justiça, perfilha o mesmo entendimento. Vejamos:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA. COMPANHEIRO LESADO PELA CONDUTA DO SÓCIO. ARTIGO ANALISADO: 50 DO CC/02. 1. Ação de dissolução de união estável ajuizada em 14.12.2009, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 08.11.2011. 2. Discute-se se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a desconsideração inversa da personalidade jurídica e se o sócio da sociedade empresária pode requerer a desconsideração da personalidade jurídica desta. 3. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita. atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. 4. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva.

(STJ – REsp: 1236916 RS 2011/0031160-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI. Data de Julgamento: 22/10/2013, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/10/2013)

Alfim, das afirmações dispostas neste capítulo, resta evidente a eficiência da desconsideração inversa para impedir as manobras fraudatórias do cônjuge ou companheiro que esconde seu patrimônio pessoal no da pessoa jurídica a ele pertencente ou em que é sócio para evadir-se da obrigação de partilhá-lo.


5. A necessidade de combater a fraude

Sem temer a exaustão, imperioso afirmar, por mais uma vez, a indispensabilidade de instaurarmos o sensor repulsivo aos atos fraudulentos que visam a violação do direito de outrem. A conduta de agir com ânimus puro e simples de prejudicar o outro polo das relações tem de ser encarada com rigidez, com o fulcro de que seja expulsa totalmente do meio social.

Como é sabido, não basta a resistência pessoal, por vezes, mas, é imperiosa que haja por parte da figura estatal a instauração de medidas que tenham como finalidade o impedimento dessas condutas ardilosas, e a forma mais contundente de reprimir o violador de direitos, é através da edição de leis que tenham como previsão reprimendas reais, ou, surjam como instrumentos preventivos e que possibilitem ao sujeito violado a reparação.

Bem assim ocorre com o objeto deste estudo. A desconsideração inversa da personalidade jurídica vem denotando que é uma efetivo mecanismo no combate às posturas ardilosas praticadas pelos sujeitos que compõem uma relação e querem ver obstado o direito do parceiro.

Dessa forma, diante de todas as afirmações aqui trazidas e embasadas, resta claro que o instrumento é eficaz e pode moldar os comportamentos das pessoas que pensem a agir de forma fraudulenta, o que demonstra seu caráter também preventivo e educador, e aí está a necessidade de coadunar o dever do estado de criar meios que elidem a fraude, mas, outrossim, do indivíduo fazê-lo valer, uma vez que vige no nosso sistema processual civil o princípio da inércia da jurisdição, não podendo a máquina judiciária iniciar os processos judiciais sem a provocação das partes.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todas as discussões envolvidas neste artigo, pudemos observar a nova perspectiva que vive o direito civil, nomeado, modernamente, como o direito civil-constitucional. E é essa nova visão que permitiu o surgimento de institutos como o da desconsideração inversa.

A modernidade aliada à necessidade intrínseca de perfazer o mandamento basilar do nosso novo sistema jurídico: a dignidade da pessoa humana. Entrementes, muito embora tenham surgido novos mecanismos a fim de minimizar o prejuízo aos direitos individuais ou até evitá-los, a realidade nos mostra que práticas burlistas a lei são cada vez mais contumazes.

No âmbito do direito das famílias, a utilização da desconsideração da personalidade jurídica que foge à convencional tem dado certo, no sentido de ter evitado que se concretizem a violação aos direitos dos indivíduos que compõem as relações, sendo, no caso aqui tratado, dos cônjuges e dos alimentandos.

O alimentando tem tido a chance de buscar judicialmente o efetivo cumprimento do seu direito, inclusive posto como social, à alimentação. O cônjuge, de visualizar a partilha dos bens sendo realizada da forma como manda a lei, sem que prevaleça nenhuma tentativa de burlá-la e obste a devida divisão.

Por todo o exposto, restam cristalinas as benesses que são inerentes a utilização da desconsideração inversa, o que é ratificado pela doutrina civilista majoritária e pelos entendimentos que vêm sendo consolidados nos Tribunais Superiores.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 1010253-03.2018.8.26.0001. Apelante: Marinez Marques Paiva da Silva. Apelado: Murilo Brenes Ribeiro Paiva da Silva. Relator: Luiz Antonio de Godoy, 1ª Câmara de Direito Privado, 16/10/2018. <Acesso em 02/11/2018>

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70005866660. Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Oitava Câmara Cível, 03/04/2003. <Acesso em 02/11/2018>

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1236916 RS 2011/0031160-9. Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, T3 – TERCEIRA TURMA, 22/10/2013. Acesso em 03/11/2018.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias – 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: famílias - 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2015.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral – 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família – 5. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado – Ed. 5. São Paulo: MÉTODO, 2015.

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Sobre o autor
Vinicius Azevedo Viana

Graduado em Direito pela Faculdade Anísio Teixeira (FAT)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Vinicius Azevedo. A desconsideração inversa da personalidade jurídica no âmbito do direito das famílias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7342, 8 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105044. Acesso em: 28 abr. 2024.

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