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O disparo de advertência e suas consequências jurídicas

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Se houver justa causa para o disparo, notadamente quando efetuado por policiais, não há que se falar em crime.

Nos últimos tempos, estamos acompanhando pelas redes sociais algumas situações de tumulto em que um dos envolvidos realiza disparo de arma de fogo para o alto no intuito de dissuadir uma potencial agressão, seja contra o autor do disparo ou contra terceiros.

Nesse cenário, o objetivo deste artigo é promover uma análise sobre as consequências jurídicas do denominado “disparo de advertência”, notadamente quando realizado por policial no exercício de suas funções.

É mister consignar que o artigo 15 do Estatuto do Desarmamento criminaliza a conduta de efetuar disparo de arma de fogo em local habitado ou em suas adjacências, na via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime. Daí por que um “disparo de advertência”, ao menos em tese, poderia constituir uma violação ao referido tipo penal.

Ocorre que, ao que nos parece, a intenção do legislador ao criminalizar estas condutas foi proibir “disparos a esmo” ou “disparos aleatórios”, muito comuns em outros países em ocasiões comemorativas, por exemplo. Com efeito, se houver justa causa para o disparo, notadamente quando efetuado por policiais, não há que se falar em crime.

Com o objetivo de subsidiar nosso entendimento, vale destacar o que em doutrina é chamado de “Triângulo do Tiro”, que representa uma regra cujo objetivo é auxiliar na identificação de situações que permitem o emprego de uma arma de fogo. Conforme preconizado pelos estudiosos do tema1, é possível atirar em um agressor quando, no caso concreto, ele demonstrar “habilidade”, “oportunidade” e “perigo”.

Tem “habilidade”, assim, o agressor com capacidade real de, injustamente, causar danos graves ao policial ou a outra pessoa. De maneira ilustrativa, o agressor pode estar armado ou ter uma compleição física elevada ou, ainda, habilidades similares que lhe dão características próprias de uma “arma” (domínio da arte marcial, por exemplo), com aptidão para colocar em risco a integridade física da vítima.

A “oportunidade” tem a ver com a possibilidade de o agressor, sem motivação plausível, fazer uso dessa habilidade, o que significa que ele está em condições de atingir sua vítima, havendo uma proximidade, atual ou iminente, entre eles. O “perigo”, por sua vez, relaciona-se com a constatação da efetiva intenção do agressor em atacar, sem justa causa, alguém de maneira potencialmente letal.

Destarte, se por meio da “linguagem corporal” do indivíduo for possível aferir este Triângulo do Tiro, o disparo, técnica e juridicamente, poderá ser efetuado, observando-se, em todos os casos, o princípio da proporcionalidade pautado no uso diferenciado da força.2

Justamente por isso, em respeito, inclusive, ao previsto na Lei 13.060/14, o uso de armas não letais deve ser priorizado por policiais diante de uma potencial agressão. Ocorre que, em muitas situações, policiais civis e policiais militares não dispõem de armas não letais por ausência de fornecimento pela instituição, o que, na realidade das ruas, serve de justificativa para o emprego de armas de fogo.

No que se refere especificamente ao emprego da arma de fogo como um instrumento de defesa, vale destacar que o simples porte de forma ostensiva pode ser útil para desestimular alguns ataques. Uma alternativa mais incisiva seria o seu emprego, mas sem a realização de qualquer disparo, como apontar a arma com finalidade dissuasiva.

Se, todavia, o porte e o emprego não forem suficientes para dissuadir uma potencial agressão, surge, na ausência de armas não letais ou até mesmo na presença delas, quando o uso não for suficiente, o disparo de arma de fogo como uma ferramenta de defesa. Segundo a doutrina, o tiro direto de defesa possui as seguintes modalidades: tiro de contenção, tiro de intimidação, tiro mediato e tiro de comprometimento. Saliente-se, porém, que todos estes disparos são efetuados frontalmente na região do alvo.

Já o “tiro de advertência”, representa uma forma distinta de dissuasão de ataques atuais ou iminentes, constituindo uma modalidade de disparo menos incisiva, pois não é efetuado na região do alvo, mas, preferencialmente, em zona neutra, sem apresentar risco à incolumidade pública.

Portanto, entendemos que o denominado “tiro de advertência”, se efetuado nas condições da regra do “Triângulo do Tiro”, notadamente por policiais, ainda que fora de suas funções, não tem aptidão para caracterizar o crime do artigo 15, do Estatuto do Desarmamento, constituindo, na verdade, uma espécie de ação não letal com aptidão para fazer cessar uma injusta agressão.

Tecnicamente, pensamos que o elemento subjetivo da figura descrita no artigo 15, da Lei de Armas, deve abranger condutas em que o agente realiza um ou mais disparos sem qualquer justificativa, fora das condições apresentadas pela regra do “Triângulo do Tiro”, como ocorre, por exemplo, em disparos festivos ou a esmo.

Se, por outro lado, existe justa causa para o disparo e a sua realização é direcionada para uma zona neutra que permita a fragmentação do projetil em segurança, não há que se falar em crime, seja pela ausência de dolo, seja pela atipicidade da conduta em virtude da incidência do princípio da insignificância, reconhecendo-se, em tais circunstâncias, a falta de tipicidade material pela ausência de risco significativo ao bem jurídico tutelado.

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Note-se que ao efetuar o disparo de advertência diante de um ataque iminente, que, vale dizer, pode fazer com que o policial seja desarmado e até morto pelo seu agressor, não há a intenção de criar ou incrementar um risco proibido relevante, pelo contrário. A finalidade do disparo não é reduzir a segurança pública e abalar a paz social, mas evitar um ataque iminente injusto e, consequentemente, promover a segurança dos envolvidos, constituindo uma ação que, na verdade, busca proteger o bem jurídico tutelado pelo artigo 15, do Estatuto do Desarmamento.

Não é incomum que normas técnicas de instituições policiais vedem o disparo de advertência, a exemplo do Manual Técnico de Uso da Força da PMMG – Manual-Profissional n. 3.04.01/2020 -, que dispõe que:

O disparo de advertência não é previsto como procedimento policial-militar, pois quando o policial militar atira com sua arma, não o faz para advertir ou assustar, o faz para interromper, de imediato, uma agressão contra a sua vida ou a de terceiros. Considerando as possíveis consequências desse tipo de ação, os policiais militares não devem atirar para fazer valer suas advertências. Nos disparos feitos para cima, o projétil retorna com força suficiente para provocar lesões ou morte. Nos disparos feitos contra o solo ou paredes, ele pode ricochetear e também provocar lesões ou morte; Estes disparos podem fazer com que outros policiais que estejam atuando nas proximidades pensem, de maneira equivocada, que estão sendo alvos de tiros de agressores, provocando neles uma reação indevida”

A munição decorrente do disparo dado para o alto vai voltar e pode ser fatal para terceiro inocente ou causas sérias lesões, razão pela qual, como expusemos, é necessário que o disparo seja direcionado, preferencialmente, para uma zona neutra que permita a fragmentação do projetil em segurança, como um gramado, por exemplo.

O Regulamento Interno e dos Serviços Gerais do Exército - Portaria nº 816-Cmt Ex, de 19 dezembro de 2003 - prevê a possibilidade do disparo de advertência pela sentinela nos casos que exijam maior segurança da sentinela. Na hipótese, quando um indivíduo ou um veículo se aproximar da sentinela indevidamente esta deverá determinar que passe distante, o que, se não for obedecido, dará sinal de chamada ou alarme, e, caso o segundo comando não seja cumprido, pela terceira vez dará o comando e, novamente, caso não obedecido efetuará disparo para o ar (art. 221, §§ 1º e 2º). No caso há estrito cumprimento do dever legal.

Lembre-se que o militar que realiza o disparo de advertência visa causar um dano menor, pois em muitos casos poderia efetuar o disparo diretamente no agressor. Infelizmente, há muitos registros de policiais que tiveram as armas tomadas, muitas vezes por medo de agir, em razão de tanta pressão e receio de serem julgados, e acabaram morrendo ou sendo lesionados gravemente com a tomada da arma.

Uma das características da legítima defesa é se valer do uso moderado da força, além de ser empregado o meio necessário. Na hora do “vamos ver”, no calor das emoções, não é possível calcular de forma rigorosa e matemática quais são os meios necessários, razão pela qual deve haver uma análise mais flexível, de acordo com o caso concreto. Pense na hipótese em que uma pessoa está com uma arma e começa a sofrer agressões. Vai ter que “pagar para ver” até onde vão as agressões? E se o agressor tomar a arma e matá-la? Quem avança em pessoa armada, ciente disso, tem total conhecimento de que pode sofrer um ataque fatal, até porque há sério e fundado risco de vida para quem está armado, caso não atue.

Portanto, o meio necessário pode até ser desproporcional, desde que utilizado de forma moderada, como atirar em outra pessoa, sem excesso, que tenta tomar sua arma. Isto, pois, insistimos, é iminente e concreto o risco sofrido pelo policial que se envolve em luta corporal portando uma arma de fogo, afinal, é impossível prever a conduta de seu agressor na hipótese em que ele se apodera do armamento.

Reforçamos, em conclusão, que o policial que efetua o disparo de advertência com as cautelas necessárias se vale dos meios disponíveis (disparo de advertência) para evitar uma iminente agressão injusta. Em outras palavras, o policial adotaria, nas condições existentes, o meio menos lesivo para dissuadir uma ameaça, o que vai ao encontro do postulado constitucional da proporcionalidade.

Nesse cenário, ainda que a sua conduta seja considerada típica, ela estaria acobertada pela justificante da legítima defesa3, prevista no artigo 25, do Código Penal, afastando, destarte, as responsabilidades penal e disciplinar do policial.


Notas

  1. Para um estudo mais detalhado, sugerimos: LESSA, Marcelo de. “O tiro defensivo e o tiro de advertência no contexto do uso progressivo da força e da preservação da vida”, disponível: <https://jus.com.br/artigos/62640/o-tiro-defensivo-e-o-tiro-de-advertencia-no-contexto-do-uso-progressivo-da-forca-e-da-preservacao-da-vida>. Acesso em 16.06.2023.

  2. LESSA, Marcelo de. O tiro defensivo e o tiro de advertência no contexto do uso progressivo da força e da preservação da vida. disponível: <https://jus.com.br/artigos/62640/o-tiro-defensivo-e-o-tiro-de-advertencia-no-contexto-do-uso-progressivo-da-forca-e-da-preservacao-da-vida>. Acesso em 16.06.2023.

  3. TJMG, Apl. 1.0251.13.000211-5/001, j. 25/01/2017.

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Sobre os autores
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Rodrigo Foureaux

Juiz de Direito - TJGO. Mestre em Direito. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz do TJAL. É Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Bacharel em Direito e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social. Especialista em Direito Público. Autor do livro "Justiça Militar: Aspectos Gerais e Controversos".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini ; FOUREAUX, Rodrigo. O disparo de advertência e suas consequências jurídicas . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7302, 29 jun. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104815. Acesso em: 27 abr. 2024.

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