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A minuta, a prisão... e a lei?

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15/01/2023 às 16:35
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A minuta é uma nada jurídico. O TSE jamais acataria a decretação de Estado de Defesa. Trata-se de crime impossível.

1-DOS FATOS E NARRATIVAS

No bojo do Inquérito do STF n. 4879/DF o Ministro Alexandre de Moraes decretou a Prisão Preventiva e autorizou a realização de buscas residenciais contra o ex – Ministro da Justiça do governo federal e atual Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Sr. ANDERSON GUSTAVO TORRES. A alegação é a de que o implicado teria se omitido ou até mesmo incentivado a prática de crimes contra o Estado Democrático e Terrorismo, afora associação criminosa e danos, em especial com referência à invasão e depredação na Praça dos Três Poderes em Brasília no dia 08 de janeiro de 2023. 1

Durante a realização das respectivas buscas pela Polícia Federal foi encontrada na casa de TORRES uma minuta de um decreto com a finalidade de impor “Estado de Defesa” no TSE e invalidar o resultado das eleições presidenciais de 2022. 2

A partir daí, como seria de esperar no atual clima de narrativas estapafúrdias, passou-se a reverberar a tese de que a prática de um golpe de Estado, crimes de Terrorismo e tudo mais que se possa imaginar estava completamente comprovada diante da tal “minuta”.


2-A ORDEM JUDICIAL QUE DEU ORIGEM A TUDO

Como já esclarecido, a determinação da prisão de ANDERSON TORRES e de buscas domiciliares partiu do STF, mais precisamente do Ministro Alexandre de Moraes e foi expedida nos autos de Inquérito 4879/DF.

Diversamente de outras determinações arbitrárias e ilegais já expedidas em circunstâncias similares, o magistrado prolator não agiu de ofício, violando o Sistema Acusatório imposto legalmente pelo Código de Processo Penal e pela Constituição Federal. Desta feita houve uma representação da Polícia Federal tanto para as buscas como para a Prisão Preventiva.

Também não ocorreu uma motivação insustentável faticamente da prisão e ordem de busca. Alardeou-se que a fundamentação dessas determinações faria referência à atuação, ou melhor, omissão de TORRES no fatídico dia 08 de janeiro de 2023, o que seria algo impossível de se sustentar diante do inabalável álibi de que o envolvido se achava em férias funcionais e até mesmo fora do país. Não havia condições nem de agir nem de se omitir funcionalmente nesse quadro. Porém, na verdade, a decisão de Moraes é inequívoca em referir-se à omissão de TORRES no exercício da função de Secretário de Segurança, bem antes da culminância dos fatos ocorridos em 08 de janeiro.

O Direito Material (Penal) que fundamentaria as medidas seria, como visto, crimes de associação criminosa, danos ao patrimônio público, crimes contra o Estado Democrático e Terrorismo. Não considerando por agora apenas a responsabilidade ou não de TORRES, mas a configuração, em tese, dos crimes arrolados, resta claro que no dia 08 de janeiro houve realmente, sem a menor dúvida, vários crimes de danos ao patrimônio público, o que torna o fundamento material do decisório sólido neste aspecto. Por outro lado, a configuração real de crimes contra o Estado Democrático de Direito é altamente questionável em toda essa confusão. Não obstante, não se trata de uma imputação que se possa tachar de totalmente impossível, pode haver discussão no campo jurídico a respeito do tema. Novamente, portanto, o fundamento material, neste ângulo, se apresenta razoavelmente hígido.

O que é inacreditável é que um Ministro do STF ou até mesmo o mais jejuno profissional do Direito não seja capaz de perceber a absoluta impossibilidade de imputação de crimes de Terrorismo a quaisquer atos, mesmo atos graves, perpetrados no Brasil por motivação de natureza política. A lei brasileira de Terrorismo (Lei 13.260/16) não prevê, não tipifica a conduta de “Terrorismo Político”, mas apenas em razão de “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Mais que isso, a legislação brasileira deixa claro que atos de protesto levados a termo por motivação política ou reivindicatória não podem ser equiparados a Terrorismo. Para saber disso, basta ser alfabetizado e ler o artigo 2º. e seu § 2º., da Lei 13.260/16, vasados nos seguintes termos:

Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei (grifo nosso).

A interpretação desses dispositivos não exige grandes esforços hermenêuticos e é evidente que o cometimento eventual de crimes com motivação política poderá configurar outras infrações penais (v.g. crime de explosão, crime de homicídio, lesões corporais, danos, incêndio etc.). O que é inviável é tentar forçosamente e arrombando os portões protetivos do Princípio da Legalidade e Anterioridade, imputar crimes de Terrorismo a autoridades e populares brasileiros na ausência de legislação específica. Mas, por mais absurdo que isso pareça, um Ministro da Maior Corte nacional faz isso em sua decisão, e mais, chamados “juristas”, inclusive que até ontem eram pela legalidade estrita à Ferrajoli 3, insistem em repetir como um mantra o termo jurídico “Terrorismo” e imputá-lo sem a menor técnica. Isso não somente é uma fundamentação inválida, imprestável juridicamente, como constitui um desserviço à cultura jurídica brasileira, especialmente daqueles que estão em processo de aprendizado e têm seu intelecto revolto por um mar de contradições oriundo de nada mais que uma incontida “vontade de poder” que a tudo e a todos atropela.

O mal ultrapassa o âmbito jurídico e atinge a cultura e a sociedade em seu âmago. Como expõe Silveira:

Numa sociedade decadente, a vilania dos intelectuais acaba por tornar-se o sofisticado modelo para os atos insanos da multidão. Ela invade os costumes, corrompe os valores e, com o passar do tempo, chega a entranhar-se nas leis de forma tal, que a regeneração da Cidade torna-se impraticável, e não nos resta senão assistir ao pungente espetáculo do declínio civilizacional. 4

Essa obstinação em defender uma tese indefensável ou fazer uma falsidade parecer verdade por sua repetição contínua, nos faz pensar que, valendo-nos novamente dos ensinamentos de Silveira, essas pessoas estão numa situação moral e espiritual (já nem se fala intelectual) deplorável:

(...), quando a derrota impingida pelos argumentos do adversário não acende na alma do intelectual a menor fagulha de decência, mas, ao contrário, leva-o a ataques irascíveis contra os que apontaram os seus erros, nada mais se pode fazer por este coração endurecido. O erro invadiu o seu núcleo espiritual e a única coisa que vale, para ele, é a vitória a qualquer custo. 5

E quanto mais qualificada ou ilustre, ocupante de posições importantes, forem tais pessoas, pior é essa corrupção da alma e seus efeitos internos e externos, como nos lembra o brocardo latino: “Corruptio optimi péssima est” (“A corrupção do ótimo é péssima”).

Em nosso “Tratado de Legislação Especial Criminal”, juntamente com Francisco Sannini, esclarecemos essa lacuna legal que impede a tipificação de Terrorismo para atos de cunho político ou de outra natureza não prevista no artigo 2º., “caput”, da Lei 13.260/16, que impõe elementos subjetivos específicos (dolo específico):

Uma observação interessante quanto à conformação do crime de terrorismo na Lei 13.260/16 é que a inclusão da especial finalidade de motivação xenófoba, discriminatória ou preconceituosa, torna o âmbito de alcance da norma bastante restrito. Por exemplo: se levamos em conta os atos de violência, explosões, danos, depredações, incêndios perpetrados pela Organização Criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo nos idos de 2006, não é possível afirmar que se ocorressem hoje configurariam terrorismo.

Por incrível que pareça, já que, sem dúvida alguma, satisfazem as demais descrições típicas e inclusive um dos elementos subjetivos que é o intento de ocasionar “terror social generalizado”. Não obstante, não satisfazem a especial motivação xenófoba, discriminatória ou preconceituosa. Outro exemplo, agora retirado do cinema, é aquele do filme de David Fincher, “Clube da Luta”, estrelado por Brad Pitt e Edward Norton, no qual um psicótico, em surto de dupla personalidade com seu alter ego, acaba criando uma verdadeira rede terrorista promotora de atentados a bomba que culminam com a explosão dos prédios de duas instituições financeiras de grande porte.6

Note-se que novamente a questão do terror generalizado está satisfeita, mas, no Brasil, nada disso poderia ser abrangido pela lei antiterror, já que não há motivação xenófoba, discriminatória ou preconceituosa, mas meramente político-ideológica. 7

Eventual intento de colmatar essa lacuna da nossa legislação antiterror não pode derivar de um arroubo autoritário e usurpador de função legislativa de um membro qualquer do Poder Judiciário, ainda que se trate de um Ministro do STF. Muito menos pode emergir de “vozes da cabeça” de alegados “juristas”. O caminho seria a alteração da lei pelo Congresso Nacional, incluindo a figura do “Terrorismo Político”. Mas, mesmo assim, tendo em vista o Princípio da Anterioridade, tal tipificação não poderia retroagir aos casos já passados e somente seria aplicável àquilo que acontecesse após o início de sua vigência.

Diga-se ainda mais, atos de depredação, vandalismo, danos a patrimônio público e privado, enfrentamento de forças policiais em manifestações são extremamente comuns em ações de grupos como os Antifa, os Black Blocs, o MST, o MTST, Torcidas Organizadas, inclusive em apoio a facções políticas (v.g. Gaviões da Fiel e PT), grupos de militantes de toda espécie etc. No entanto, seja no Brasil ou no mundo em geral, ao menos em regra, nada disso tem sido apontado como suposto “Terrorismo”. Aliás, a imputação parece indevida e extremamente perigosa para as liberdades políticas, de expressão, reunião, reivindicação, greve etc. Não é à toa que sabiamente o legislador brasileiro incluiu o § 2º. no artigo 2º. da Lei Antiterror. Eventuais abusos devem ser tratados de acordo com a legislação comum e não como atos de terror. É isso que sempre aconteceu. Nunca vimos um grupo Black Bloc ou Antifa, ao realizar depredações e agressões, ser qualificado criminalmente como “terrorista”. O mesmo se diga de outros movimentos sociais ou quaisquer manifestações de cunho político que acabem descambando para a violência e o vandalismo. Ainda que estivéssemos diante de uma lei que tipificasse a conduta do “Terrorismo Político”, seria insustentável e abusiva a imputação, mesmo porque violaria o Princípio da Igualdade e da Imparcialidade, já que casos similares ou idênticos nunca foram rotulados como atos de terrorismo.

Essa espécie de seletividade decisória casuística e motivada por fatores estranhos ao ordenamento jurídico gera uma terrível insegurança e como bem lembra Dip a segurança desponta hoje como “bem jurídico” e “até como objeto de direitos fundamentais”. O autor arrola diversos instrumentos internacionais que tutelam a segurança em seus vários enfoques, incluindo o jurídico: Declaração da Virgínia (1776 – artigo 1º.); Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776); Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789 – art. 2º.); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948 – arts. 1º. e 16); Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU – 1948 – art. 3º.); Convenção para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convênio Europeu dos Direitos Humanos – Roma, 1950 – art. 5º.); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966 – art. 9º.) e Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969 – art. 7º.). 8

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E prossegue o autor aduzindo o seguinte:

O ius certum é, objetivamente, firmeza e eficácia das situações jurídicas – pessoais e reais -, com os reflexos da paz política e, no plano subjetivo, da confiança comum. A essas notas agregam-se a positividade das regras, sua cognoscibilidade, inclusiva da prognose de constância e efetividade e da disciplina das mudanças. 9

E nesse ponto destaca-se estudo da lavra de ninguém menos que a Ministra do STF, Cármen Lúcia, o que nos empresta, talvez ingenuamente, alguma esperança, afirmando:

“(...) segurança jurídica produz-se na confiança que se põe no sistema e na convicção de que ele prevalece e observa-se obrigatória e igualmente por todos” (grifo nosso). 10

A decisão também peca no que tange a demonstrar minimamente o efetivo liame entre TORRES e supostos grupos criminosos. Afirma-se que foi omisso, mas não se demonstra ligação entre eventual omissão dolosa e grupos de infratores.

Ademais, se a questão é de omissão, mesmo sem jamais excluir as responsabilidades legais de quem praticou depredação, apenas um fato concreto de natureza política precisa ser apontado: Presidente da República, Ministro da Justiça e outros sabiam o que ia ocorrer e não reforçaram a segurança. Há a PM do DF, há a PF, há a Polícia Civil do DF, há a Força Nacional, há Forças Armadas, Guarda Civil, Segurança terceirizada dos prédios, Polícia Legislativa e só da Guarda Especial do Palácio do Planalto há um contingente de mil homens. Nenhuma providência foi tomada, tudo foi deixado como numa situação de normalidade. Alegar que foram pedidas a TORRES providências não exclui a responsabilidade que cabia ao Presidente da República, ao Ministro da Justiça e outras autoridades que têm poder de mando e comando sobre diversas forças militares e de segurança que estão completamente fora do alcance do Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Se há omissão relevante, não é no singular, mas no plural (omissões relevantes) e não deveriam reduzir-se as prisões às autoridades do Distrito Federal. Não cabe o argumento de que as autoridades federais citadas não teriam interesse em sabotar a si próprias. Isso porque o caos pode servir (e parece estar servindo mesmo) para objetivos inconfessáveis e, em última instância, destrutivos para o Estado Democrático de Direito.

A segregação carcerária de TORRES é determinada com sustento em fundamentos de direito material em parte discutíveis e em parte absolutamente inviáveis, bem como sem comprovação necessária de sua ligação com outros agentes (prova do crime e indícios suficientes de autoria – artigo 312, CPP).

A finalidade da prisão preventiva é apontada como visando à manutenção da ordem pública, bem como o interesse da instrução criminal. Alega-se que TORRES solto e no exercício do cargo poderia prosseguir em atos de suposta sabotagem. Também se afirma que a prisão se dá para assegurar a aplicação da lei penal (inteligência do artigo 312, CPP).

Quanto à manutenção da ordem pública e a conveniência da instrução criminal é notório que não houve por parte do magistrado o emprego da necessária proporcionalidade e escolha da medida menos gravosa, deixando a prisão como “ultima ratio” (inteligência do artigo 282, § 6º., CPP). Não existe no decisório qualquer espécie de abordagem do tema para afastar medidas menos gravosas que a preventiva. E o dispositivo legal supra mencionado é claro ao estabelecer que a preventiva somente será decretada diante da inviabilidade de cautelares alternativas nos termos do artigo 319, CPP. Dessa forma “o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada” (artigo 282, § 6º., CPP, “in fine”). Ora, nada disso ocorreu. Há evidente descumprimento das normas legais. Mesmo porque se a questão é a atuação de TORRES como Secretário Estadual, então bastaria afastá-lo do cargo, como se fez com o governador do Distrito Federal (inclusive atropelando lei e constituição, porque sem qualquer processo legal e por autoridade incompetente, já que o Governador é vinculado para tais fins ao STJ e à Assembleia Legislativa e não ao STF). Ainda se poderia impor seu monitoramento com uso de tornozeleira, o que é aplicado a homicidas, traficantes, estupradores etc. pelo país afora (vide artigo 319, VI e IX, CPP).

Ainda mais estapafúrdio é, especialmente neste momento, dada a conduta de TORRES após a decretação de sua prisão, o alegado fundamento de assegurar a aplicação da lei penal. Para isso seria necessário demonstrar que o envolvido estaria empreendendo fuga. Isso não foi em momento algum sequer alegado, quanto mais demonstrado no “decisum”. Mas o pior de tudo é que TORRES, estando fora do país retornou e se apresentou espontaneamente às autoridades, desconstruindo qualquer hipótese de sustento dessa motivação para sua prisão.

Como se vê a decisão judicial em estudo carece de devida fundamentação em pontos cruciais, o que a torna nula de pleno direito, nos exatos termos do artigo 93, IX, CF (Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais).

Outro problema gravíssimo que não é apanágio somente desta decisão em comento, mas de várias outras proferidas pelo Ministro Alexandre de Moraes, é que TORRES não é atualmente detentor de prerrogativa de função perante aquela Corte Suprema e, portanto, não é seu jurisdicionado, a não ser em fase recursal extraordinária. Ele foi Ministro da Justiça, cuja competência para julgamento é do STF, mas não o é mais e sabemos que com o fim do exercício do cargo também acaba a prerrogativa de função (Decisão STF 15.09.2005, Plenário, cancelamento da Súmula 394, STF). 11 Dessa forma, Moraes é autoridade judicial absolutamente incompetente para tomar qualquer decisão ligada a TORRES no momento. Não há competência “ratione personae” a justificar a atuação do Ministro no caso, o que também torna a decisão enfocada eivada de nulidade.

Ainda que se tenha em consideração que talvez o Ministro Alexandre de Moraes entenda que há um grupo concatenado de pessoas agindo e que, dentre elas, há algumas com prerrogativa perante o Supremo, ensejando a chamada “vis atractiva” para os implicados sem prerrogativa, tendo em vista eventual “conexão subjetiva” (Súmula 704, STF), 12 isso não serviria para salvar a decisão de sua inépcia. Isso porque quando se levanta a tese de que Moraes tenha, talvez, tal pensamento, isso é mera hipótese cerebrina deste autor, porque o Ministro, seja nesta decisão, seja em todas as demais não deixa claro e muito menos fundamenta os motivos pelos quais seria competente para atuar perante pessoas sem foro no STF. Nem sequer uma ligeira menção à Súmula 704, STF é encontrável em qualquer lugar. Significa dizer que com relação à competência para atuação no caso a decisão também é nula de pleno direito, já que sem a menor fundamentação, violando novamente o artigo 93, IX, CF (Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais).

Apenas a título de esclarecimento e para não deixar nada tecnicamente relevante sem análise:

Em julgamento de questão de ordem no Inquérito 4342 de relatoria do Ministro Edson Fachin, o STF acatou a tese conhecida como competência por “mandatos cruzados com prorrogatio fori”. Decidiu-se que se um parlamentar (Deputado Federal, Estadual ou Senador) for eleito ou nomeado para outro cargo com prerrogativa de função sem que tenha havido interrupção ou término do mandato (ou seja, saiu de um cargo e foi para o outro imediatamente), a competência por prerrogativa inicial se prorroga. Exemplo: alguém é Deputado Estadual e responde a processo originário no Tribunal de Justiça do respectivo Estado. Tal pessoa deixa de ser Deputado, mas é nomeada Ministro no governo federal ou eleita Senador ou Deputado Federal. A competência do TJ é prorrogada e o caso não se move para o primeiro grau nem para o STF. 13

Essa questão não tem o menor cabimento para justificar o caso em estudo com a pretensão de prorrogação da competência do STF, considerando que TORRES foi anteriormente Ministro da Justiça. Primeiro porque trata especificamente de prorrogação de foro privilegiado de parlamentares e TORRES não é parlamentar, foi Ministro da Justiça e agora Secretário de Segurança. Além disso, como Secretário de Segurança, a prerrogativa de função para seu processo e julgamento seria do TJDF (inteligência do artigo 8º., I, “a”, da Lei Federal 11.697/08) e não do STF. Ainda que se considere o fato de que anteriormente foi Ministro da Justiça (foro de prerrogativa do STF) fato é que houve interrupção ou término do exercício da função muito antes dos acontecimentos que se deram quando já era Secretário de Segurança do DF. Não há continuidade entre os exercícios dos cargos, requisito explicitamente exigido pelas decisões do STF para a “prorrogatio fori”, conforme acima destacado.

Na realidade a competência para julgamento de TORRES seria da Justiça Federal de primeiro grau. Isso porque a competência por prerrogativa como Secretário de Estado do DF estabelecida por lei ordinária (o DF não tem Constituição Estadual) cede diante da competência constitucionalmente estabelecida da Justiça Federal, conforme artigo 109, CF. Os crimes em estudo são de competência federal, já que envolvem bens, serviços e interesses da União. Mesmo quando uma competência especial é estabelecida pela Constituição Estadual (o DF não tem isso, apenas uma Lei Orgânica que não dispõe sobre o tema), há prevalência, no conflito das normas, da regra estabelecida pela Constituição Federal enquanto normativa cimeira do ordenamento jurídico nacional. Poder-se-ia indagar por que a competência não seria do segundo grau da Justiça Federal (TRF)? É que a CF não prevê foro de prerrogativa para Secretários de Estado. Tais normas são previstas nas Constituições dos Estados e no caso do Distrito Federal em lei ordinária de organização judiciária do TJDF. Dessa forma, no conflito entre a competência federal estabelecida pela CF e a competência distrital conferida pela lei ordinária prevalece a norma constitucional e no caso a justiça federal de primeiro grau. Interessante sobre o tema o estudo de situação similar por Gontijo:

Nesse cenário, embora a Constituição Estadual, conforme antes verificado, institua foro por prerrogativa de função ao Secretário de Estado, por evidente, seus preceitos normativos não podem contrariar as regras de definição da competência previstas no artigo 109 da Carta da República. Assim, inviável que se desloque, para o Tribunal de Justiça, a competência para o julgamento da prática de crimes federais. Afinal, não se há de admitir que, no âmbito dos Estados, sejam criadas regras de competência que prevaleçam sobre aquelas erigidas pelo constituinte originário.

Desse modo, como primeira conclusão, é possível dizer que, ainda que as Constituições Estaduais, em geral, e a Constituição do Estado em que o fato aconteceu, em especial, prevejam o julgamento de Secretários de Estado pelo Tribunal de Justiça, tal previsão não se estende aos casos em que estejam sendo apurados crimes que a Constituição Federal determina sejam processados e julgados pela Justiça Federal.

Importante mencionar, nesse panorama, que o Supremo Tribunal Federal, ao tratar da definição da competência para a apuração de crimes federais de responsabilidade de prefeitos municipais, editou o provimento sumular 702, segundo o qual “a competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça Comum Estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de Segundo Grau”, circunstância que exclui qualquer dúvida quanto ao fato de que o Tribunal de Justiça não poderia julgar Secretário de Estado investigado pela prática de crime federal.

Ademais, considerada a premissa de que a Constituição Estadual não pode alterar os parâmetros de definição de competência material insculpidos na Constituição Federal, retirando da Justiça Federal a competência para julgar infrações penais lesivas a interesses da União, cumpre verificar se a previsão de foro por prerrogativa de função, em norma estadual, tem o condão de ampliar os casos de competência originária dos Tribunais Regionais Federais, para neles abarcar os Secretários de Estado investigados pela prática dos crimes elencados no artigo 109 da Carta da República.

É necessário, no ponto, mencionar que o texto constitucional, de forma expressa, no artigo 29, inciso X, assegura aos prefeitos municipais o julgamento perante o “Tribunal de Justiça”. Tal dispositivo, em cotejo com os dispositivos normativos que especificam o âmbito de competência da Justiça Federal, permite concluir, na linha que consta do édito sumular antes referido, que, nos casos de apuração de crime federal, caberá aos Tribunais Regionais Federais, originariamente, julgar os prefeitos.

Destaque-se que, no que concerne a esses agentes políticos, a própria Constituição Federal traz indicação de que eles devem ser processados e julgados por Tribunais de Segundo Grau. E, portanto, a necessidade de assegurar foro por prerrogativa de função aos prefeitos, também quando investigados pelo envolvimento em crimes federais, não advém de normas estaduais, mas da própria Lei Maior.

A situação, contudo, é muito diversa, quando está em análise a situação jurídico-processual dos Secretários de Estado. Com efeito, nenhum dispositivo constitucional trata da necessidade de se lhes assegurar foro por prerrogativa de função: a disciplina dessa matéria é integralmente feita no bojo das Constituições Estaduais. Assim, cumpre responder ao seguinte questionamento: é possível que, em razão de previsão existente em norma estadual, seja acrescida hipótese de competência originária dos Tribunais Regionais Federais, não delineada na Constituição Federal?

Em nossa concepção, por óbvio, a resposta há de ser negativa. Afinal, os casos de competência originária dos Tribunais Regionais Federais estão previstos, de forma clara, no artigo 108 da Constituição Federal, e inexiste qualquer ressalva que autorize supor que outras situações poderiam ser nele inseridas. Repise-se que, com relação ao julgamento dos prefeitos, a própria Carta Magna indicou a necessidade de que gozassem de foro por prerrogativa de função, o que justifica, nas investigações de crimes federais, sejam eles julgados pelos Tribunais de Segundo Grau da Justiça Federal.

Entretanto, tal situação não pode ser estendida para os ocupantes de cargos de Secretário de Estado, que, portanto, não gozam de foro por prerrogativa de função na apuração de crimes federais, de competência da Justiça Federal de Primeiro Grau.

Afinal, (i) a Carta da República prevê que compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes apurados no caso concreto referido no texto, e dispositivos da Constituição Estadual não podem alterar essa determinação constitucional; (ii) inexiste qualquer preceito normativo que permita ampliar, para além dos casos previstos no artigo 108 da Carta Magna, o âmbito de competência dos Tribunais Regionais Federais; e, por fim, (iii) tendo em vista que as normas que asseguram, para alguns agentes públicos, foro por prerrogativa de função, tratam de situações excepcionais, sua interpretação deve ser restritiva, não extensiva, como se exigiria para que os Secretários de Estado, investigados por crime federal, fossem julgados em Segundo Grau. 14

Mister se faz consignar que foi dado destaque à figura de ANDERSON GUSTAVO TORRES porque este texto tem por finalidade a análise da questão da minuta encontrada na busca da Polícia Federal e esse encontro se seu na casa de TORRES. No entanto, é preciso deixar claro que todas as irregularidades, ilegalidades e nulidades apontadas com relação a TORRES valem também, na mesma medida e “mutatis mutandis”, para o Comandante Geral da Polícia Militar do Distrito Federal, Sr. FÁBIO AUGUSTO VIEIRA.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A minuta, a prisão... e a lei?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7137, 15 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102026. Acesso em: 27 abr. 2024.

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