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O paradoxo de Popper, o fim do diálogo e os limites da liberdade de expressão

25/11/2022 às 13:30
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A beleza do pacto social é que, por viver na sociedade, suas liberdades são garantidas até que você ameace o próprio pacto social. Chegamos então ao paradoxo da tolerância de Popper.

No momento o Brasil passa por uma delicada situação em que suas instituições são diariamente colocadas em xeque sob o argumento de defesa da liberdade de expressão. Grupos de pessoas passaram a defender abertamente um golpe de Estado contra o sistema político vigente, acampam nas portas de quartéis, pedem intervenção militar e alegam, sem provas, fraude nas eleições.

Em sua maioria esses grupos parecem fugir da realidade e apresentam comportamentos de manada, como que guiados por uma seita que lhes entrega uma verdade absoluta e inquestionável que, na prática, não se apoia em nenhum traço de racionalidade ou realidade. Procuradores de Justiça de diversos Estados denunciam esquemas de organização e financiamento dos atos vindos de empresários e articuladores políticos com o objetivo de manter as manifestações ilegais e inflamar cada vez mais os devotos da causa "patriótica". Esse é o cenário atual, pessoas em um estado de transe coletivo, cometendo crimes contra o Estado Democrático de Direito acreditando em poderes irreais concedidos a messias incapazes.

Muito dessa situação se explica pela falsa compreensão de liberdade à que somos expostos diuturnamente através de formadores de opinião nacionais e estrangeiros, compreensão essa que alça as liberdades individuais a conceitos absolutos e invioláveis e deixa de lado a profundidade do tema, e como pretensos "liberais", esquecem-se do motivo pelo qual a filosofia liberal contratualista buscou explicar a existência do pacto social. Trocando em miúdos o pacto social, grosseiramente falando, nada mais é do que abdicar de liberdades em um certo nível com o fim de conviver harmonicamente em sociedade.

A partir dessa premissa é que chegamos a uma máxima que frequentemente é verbalizada por profissionais do direito, de que nenhum direito fundamental é absoluto, encontrando oposição justamente no que a lei define. Penso que podemos dizer que existem alguns direitos absolutos, como por exemplo o direito de não ser torturado e o direito a um processo justo, mas isso é definido por lei e não por conceitos abertos como são os direitos fundamentais. E nesse ponto podemos afirmar que a liberdade de manifestação e expressão possuem limitações legais.

A liberdade de manifestação, já no dispositivo constitucional que trata do assunto, impõe por si algumas dessas limitações. O artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal - CF de 1988 apresenta as seguintes regras: a manifestação deve ser pacífica; sem armas; e exige aviso prévio à autoridade. Percebe-se que o dispositivo não veda conteúdo algum, podendo induzir a interpretação equivocada de que se pode manifestar em prol de qualquer reivindicação.

Porém, a interpretação da norma jurídica não é isolada, toda norma faz parte de um sistema e por isso deve ser interpretada em conjunto, assim a própria CF/88 no artigo 5º, inciso IV nos informa sobre a questão do conteúdo de qualquer manifestação de pensamento, inclusive as que se concretizem por meio de protestos, permitindo a manifestação, mas vedando o anonimato, e a razão da vedação é a possibilidade de responsabilização civil e/ou criminal.

Há diversos dispositivos legais que, nessa linha de raciocínio, nos mostram a aplicação prática desse conceito, podemos por exemplo imputar um crime a alguém, mesmo sabendo não ser verdade, a liberdade de praticar esse ato não anula a possibilidade de responsabilização por estar incidindo no artigo 138, do Código Penal - CP, e podendo ser detido de 6 meses a 2 anos. Desse raciocínio entende-se que não se pode caluniar alguém, mas também não significa uma ofensa a liberdade de expressão ou censura. A beleza do pacto social é que, por viver na sociedade, suas liberdades são garantidas até que você ameace o próprio pacto social. Chegamos então ao paradoxo da tolerância de Popper.

Popper defende que devemos ter um limite de diálogo e que enquanto conseguirmos rebatê-los através do discurso racional não devemos censurá-los ou persegui-los, devemos combatê-los na opinião pública. Porém, a tolerância aos intolerantes tem um limite, que é a recusa à uma discussão racional. Isso porque ao se recusar à racionalização do debate o intolerante passa a oferecer perigo a existência da própria tolerância, ele se torna uma ameaça a existência do próprio pacto social.

Assim, sobre as pessoas intolerantes, Popper propõe que "devemos reservar o direito de suprimi-las, mesmo através de força; porque poderá facilmente acontecer que os intolerantes se recusem a ter uma discussão racional, ou pior, renunciarem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são traiçoeiros, e responder a argumentos com punhos e pistolas. Devemos, pois, reservar o direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes" (CORREA apud POPPER, 2020).

No caso de nossa situação atual, não se pede nada além de que a lei seja cumprida. Se chegamos ao ponto de existir a recusa à racionalidade e se leis foram infringidas, o necessário e lógico é que se faça cumpri-las. E aqui pode ser que se diga que as manifestações são pacíficas e ordeiras, mas, ainda que fosse verdadeiro dizer que não há uso de violência por parte dos manifestantes, pedir às Forças Armadas que pratiquem o crime previsto no artigo 359-M do CP, ou seja, um Golpe de Estado, é na prática o crime previsto no artigo 286 do CP, de incitar, publicamente, a prática de um crime.

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Não sendo suficiente, o próprio desejo de abolição do pacto social vigente é grave ameaça constituída ao Estado Democrático, podendo-se auferir dos atos, a prática do artigo 359-M do CP, e ainda, diante do caráter organizado e financiado dos atos antidemocráticos, em tese, caberia aplicação da Lei 12.850/2013, lei das organizações criminosas, ou ainda, nos casos de incitação, o crime de associação criminosa previsto no artigo 288 do CP.

Ao observamos o contexto de descolamento da realidade e ausência de racionalidade nas manifestações, a partir da proposição de Popper, podemos entender que não há diálogo a ser estabelecido, mesmo por que, para se estabelecer um diálogo é necessário disposição e reciprocidade, quesitos que no momento não encontram espaços para serem preenchidos. Isso porque, como mencionamos, existe um comportamento irracional de seita, um movimento de manada ao qual estão presos, gerando uma falsa realidade em seu entorno.

Frente a esse aspecto, não há outra possibilidade, infelizmente, que não lançar mão do uso dos dispositivos legais e da força, cabendo mais uma vez, na inércia das instituições, o protagonismo do Poder Judiciário. Protagonismo esse que é prejudicial, visto que cada vez mais coloca o Judiciário no centro de um debate político onde não deveria estar, corroendo e fragilizando ainda mais as estruturas de poder perante a sociedade.


Referências

BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte especial: crimes contra a administração pública, crimes praticados por prefeitos e crimes contra o estado democrático de direito (arts. 312 a 359-T). v.5. São Paulo - SP: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622050. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553622050/. Acesso em: 16 nov. 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 05 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 16 nov. 2022.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 31 de dezembro de 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 16 nov. 2022.

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CORREIA, Pedro. O Paradoxo da Tolerância. Observador. [S.l.], 2020. Disponível em: https://observador.pt/opiniao/o-paradoxo-da-tolerancia/ . Acesso em: 16 nov. de 2022.

FORENSE, Equipe. Constituição Federal Comentada. Rio de Janeiro RJ: Grupo GEN, 2018. E-book. ISBN 9788530982423. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530982423/. Acesso em: 16 nov. 2022.

LOPES, Léo. FIGUEREDO, Carolina. Manifestantes pedem intervenção militar em SP e DF. CNN BRASIL. [S.l], 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/manifestantes-pedem-intervencao-militar-em-sp-e-df/. Acesso em: 16 nov. 2022.

NETTO, Paulo Roberto. Procuradores dizem a Moraes que empresários bancaram atos antidemocráticos. UOL. Brasília, 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/08/procuradores-gerais-moraes-financiadores-atos-antidemocraticos.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 16 nov. 2022.

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Sobre o autor
Renan Mariano da Silva

Estudante de Direito Pela Universidade Cruzeiro do Sul Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Execução Criminal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Renan Mariano. O paradoxo de Popper, o fim do diálogo e os limites da liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7086, 25 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101298. Acesso em: 27 abr. 2024.

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