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O poder de polícia e as relações juridico-administrativas

06/11/2022 às 12:00
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Apresentamos as sujeições e prerrogativas da administração pública, em especial o atributo do poder de polícia e sua aplicação nas relações com particulares.

1 - INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo elucidar os principais fundamentos da administração pública para compreendermos a substância dos seus atos, que não raro, encontra-se sobre a tensão de posições conflitantes entre autoridade e liberdade, interesses coletivos sobrepostos aos individuais. Ainda que sopese ao Estado o dever de manter o equilíbrio dos direitos, suas ações têm como primazia a manutenção da sociedade e a ordem pública.

O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e o princípio da indisponibilidade do interesse público confere à administração poderes para atuar que a coloca em situação de superioridade em um plano vertical em face do particular, sendo revestida de prerrogativas que lhe concedem vantagens exponenciais nas relações jurídico administrativas.

Conquanto demasiados tributos sejam concedidos a administração pública para que possa atuar em razão do bem-estar coletivo, quando atua motivado por interesse próprio, equipara-se ao particular em um plano horizontal nessa relação, derrogando substancialmente seus atributos e prevalecendo a autonomia da vontade das partes.

Sobretudo, é mister elucidarmos além dos princípios basilares que fundamentam o regime jurídico administrativo, o elemento constitutivo que concede legitimidade para a administração atuar. Observaremos que o princípio da legalidade se configura como a origem do poder do Estado e concomitantemente o limitador desse poder, constringindo o administrador a sujeições impostas por lei.

Concluiremos este trabalho abordando os aspectos administrativos do poder de polícia em decorrência das relações jurídicas entre a administração e particulares. Ponderamos acerca da imperatividade desta relação a fim de analisarmos se há exorbitação de poder sob fundamento de atuação em razão dos interesses coletivos.

2 O REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO

Comumente percebe-se fundamentos dicotômicos no direito administrativo: aspectos conflitantes, mas que se completam como uma interpenetração dos contrários. Sobre a égide do princípio da legalidade reveste-se a proteção dos direitos individuais, sobre o qual o Estado de direito está sujeito a observar, todavia, em detrimento a estes direitos existem interesses coletivos que são arguidos como status de supremacia sobre o particular, conferindo a administração pública prerrogativas funcionais para atuar com fundamento na satisfação da coletividade. As limitações dos direitos individuais em face do bem-estar coletivo é o exercício pleno do poder do Estado e confere à administração pública uma posição privilegiada nas relações jurídico-administrativas com particulares.

A administração pública é regida por um conjunto de princípios que norteiam a sua atuação. Sobretudo, dois são considerados essencialmente basilares e por isso classificados como supraprincípios, o qual veremos adiante:

2.1 - O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular

O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular confere maior relevância dos interesses coletivos sobre os individuais e para que a administração possa alcançar a finalidade pública é necessário fazer uso dos privilégios que lhe concede poderes especiais: tais como as intervenções do Estado sobre a propriedade privada na modalidade restritiva (servidão, requisição, ocupação temporária...), ou supressivas (desapropriações em geral), bem como a aplicação de multas e rescisões unilaterais de contratos administrativos e a presença de cláusulas exorbitantes e não raro, a coercibilidade, atributo imbuído ao poder de polícia do Estado. De acordo com Matheus CARVALHO:

o Estado tem o dever de atingir certas finalidades indicadas pela lei e pela CF e, para alcançá-las, dependem da existência de poderes não cogitados para os particulares em geral, não existentes no direito privado. Com efeito, todas as prerrogativas de direito público conferidas pelo ordenamento jurídico ao Estado justificam-se por serem necessárias para que ele atinja os fins impostos pelo ordenamento jurídico ``. (2016, p. 45).

A prevalência da satisfação das necessidades coletivas sobre as individuais é fundamental para a instituição do Estado democrático de direitos, pois o individualismo é um contrassenso da sociedade, que só perdura se houver limites e restrições entre os indivíduos. Por isso que o Estado em sua posição de mantenedor adota uma postura mais rígida eivada de prerrogativas para suprir os interesses primários, que são os coletivos. Diante do exposto, nas relações jurídico-administrativas com particulares, quando resguardados a primazia dos interesses, a administração sempre terá uma posição de superioridade e supremacia construída em uma escala vertical. Este fundamento implica na utilização de mecanismos que possibilitem a atuação da administração, tais quais compreende-se a imperatividade, a exigibilidade e a executoriedade e não raro, a coercibilidade, atributos imbuídos ao poder de polícia do Estado. Que iremos explorar mais adiante. A princípio, devemos compreender que, apesar da supremacia, a administração não poderá agir sem precedentes legais.

2.2 O princípio da legalidade na administração pública

Para que o Estado de direitos se efetive de forma concreta, tanto os administrados quanto os seus administradores devem se submeter às leis instituídas como regras sociais para o bem-estar da coletividade e a manutenção da ordem pública. Apesar da obediência irrestrita às leis, há significativa diferença sobre a forma de recair: enquanto as restrições determinadas ao particular são aplicadas em situações específicas previstas em lei, cujo plano da legalidade privada se configura sobre a autonomia da vontade, ao Estado a legalidade se finda por subordinação, em acepção material, só poderá atuar conforme a lei, o que lhe constrange a uma moldura de discricionariedade. O princípio da legalidade restrita confere aos governantes a condição de sujeição, já que enseja limites opostos à atuação administrativa em benefício dos direitos dos cidadãos. (DI PIETRO, 2018, p. 314).

A submissão às leis para o particular significa condicionar os direitos individuais através de obrigações positivadas ou quando não arrazoadas pelo bom senso comum. Ou seja, as limitações impostas por obrigações se efetuam através de normas as quais contemplam duas nuances: a de não fazer, tendo em vista os princípios valorativos convencionados por uma sociedade, e a de fazer, que consiste nos deveres cívicos do indivíduo inserido nesta sociedade. Ademais, os direitos individuais poderão ser restringidos ou suspensos quando conflitantes e submetidos a julgamento para que seja dito a quem de fato pertence o direito. Em geral, as normas são enunciações do poder soberano, que delimitam as atividades dos particulares para que seus interesses não se sobreponham aos da coletividade. Dessarte, é razoável concluirmos que a razão fundamental destas limitações anseia ao mal estar da civilização moderna e o esfacelamento do Estado. Não obstante, a liberdade individual só se tornará tangível ao poder do Estado quando houver previsão legal, visto que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (Art. 5º, II, CF 88).

A atuação da administração pública está sujeita à reserva da lei, que de certa forma limita o seu poder a uma moldura normativa vigente. Convém observa que o aspecto fundamental da sujeição é pressupor a submissão, que no âmbito interno da administração, coloca o administrador em uma posição abaixo das leis, porém, na relação de sujeição no âmbito externo, entre o administrador e os seus administrados, a sujeição à reserva da lei também pressupõe fundamento de atuação da administração, conferindo legitimidade aos seus atos que se reveste oficiosamente da legalidade com finalidade pública na busca pelos interesses coletivos. Ainda que aparente ser ilimitados os poderes da administração, o princípio da legalidade, que vincula a sujeição ao Estado de direito, tem como objetivo equilibrar as relações desiguais de poder e assegurar que os atos do administrador tenham como primazia a supremacia dos interesses públicos.

2.3 Interesses primários e secundários

A administração é constituída por órgãos e agentes públicos que nem sempre compactuam da gênese social, e quando no exercício da função, são incutidos na personalidade do poder público, não raro, tem como fundamento a satisfação de interesses particulares sobre a motivação de eficiência, metas, fins, dentre outras cuja razão primeva não contempla à coletividade. Tais interesses são considerados como secundários e não se amparam sobre o esteio da supremacia dos interesses públicos, devendo assim as relações jurídico-administrativas discorrerem sobre um plano horizontal à guisa de igualdade. É mister ressaltar que a abstenção do Estado perante os interesses coletivos e o bem-estar social configura abuso de poder, visto que a finalidade de expedir atos arbitrários violam o princípio constitutivo do Estado de direitos. Ademais, os anseios e necessidade do Estado como sujeito de direitos não sobrepõem os interesses da sociedade, pois ao Estado não pertence a máquina estatal, apenas lhe enseja a condição de adjunto.

2.4 Indisponibilidade do interesse público

O supra princípio da indisponibilidade do interesse público exige dos agentes públicos um padrão de conduta compatível com as expectativas da sociedade. Os deveres da administração devem ser abarcados em sua totalidade para satisfação dos interesses da sociedade a fim de fomentar o bem-estar social. Segundo o ministro Celso Antônio Bandeira de Mello:

é encarecer que na administração os bens e interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos ``. (apud Carvalho, 2016, p 59).

Além da indisponibilidade dos interesses coletivos que implicam ao administrador o dever de agir, tal princípio igualmente infere sobre os bens públicos, pois são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo, seja de uso comum ao povo ou de uso especial para a prestação de serviços à sociedade, salvo os dominicais, uma vez que não ensejam afetação. Decerto que as pessoas jurídicas que detém a posse desses bens são apenas possuidores em nome do povo e compete-lhes o dever de resguardá-los. Ressaltamos que o desuso de um bem não o torna naturalmente desafetado (dominical) a fim de ser alienado pelo administrador sem uma previsão legal (art. 17, lei 8.666/93). Em regra, os bens públicos são inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis, sendo responsável pelo prejuízo àquele que lhe deu causa, podendo responder por improbidade administrativa e na esfera penal. Portanto, torna-se evidente que o agente público não é titular dos interesses coletivos, sendo a persecução de vantagens utilizando-se da coisa pública configurada crime contra a administração e tão pouco poderá o agente público abster-se de agir quando provocado ou em razão do interesse público. Assenta Fernanda MARINELA: "em nome da supremacia do interesse público, o Administrador pode muito, pode quase tudo, mas, não pode abrir mão do interesse público ``. (apud Carvalho 2016, p. 60).

2.5 - O poder de polícia e suas restrições

O poder de polícia foi inserido em nosso ordenamento jurídico através do Código Tributário Nacional (art. 78, lei 5.172/66), e segundo a doutrina, fundamenta-se no fato do exercício desse poder constituir fato gerador de taxa. Conceitua precisamente DI PIETRO (2019, p 19): Pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público.

O poder de polícia é abrangente e abarca os mais diversos âmbitos da sociedade a fim de guardá-los, por isso, subdivide-se em áreas de atuação: segurança, trânsito, florestal, sanitária, dentre inúmeras outras. Para sintetizar a atividade policial, a doutrinas passou a classificá-las de duas formas: Gerais (referente às atividades relacionadas à segurança) e Especiais (referente às atividades dos demais setores), De acordo com Maria Sylvia: o crescimento do poder de polícia se deu em dois sentidos:

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1 de um lado, passou a atuar em setores não relacionados com a segurança, atingindo as relações entre particulares, anteriormente fora de alcance do Estado; o próprio conceito de ordem pública, antes concernente apenas à segurança, passou a abranger a ordem econômica e social, com medidas relativas às relações de emprego, ao mercado dos produtos de primeira necessidade, ao exercício das profissões, às comunicações, aos espetáculos públicos, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e artístico nacional, à saúde e tantas outras;

2 - de outro lado, passou a possibilitar a imposição de obrigações de fazer, como o cultivo da terra, o aproveitamento do solo, a venda de produtos; a polícia tradicional limitava-se a impor obrigações de não fazer. Para alguns autores, essas medidas escapam ao poder de polícia e se apresentam como novo instrumento de que o Estado dispõe para intervir na propriedade, com vista em assegurar o bem comum, com base no princípio da função social da propriedade. (DI PIETRO, 2019, p. 317;318).

A professora ainda alerta sobre as limitações à liberdade impostas pelo Estado realizada através do atributo do seu poder de polícia, cujas determinações das obrigações de fazer e não fazer invadem de forma descomedida as relações sociais a ponto de desclassificar os direitos individuais, autonomia da vontade e a liberdade de comércio. As intervenções do Estado alcançam cada célula da sociedade dissecando-as sobre a falácia do bem estar-social, impondo medidas e decisões desarrazoadas e desproporcionais que sopesam entre indivíduos da mesma classe social, subordinados a uma hiperatividade exacerbada, subentendidas nas relações jurídico-administrativas.

3 Considerações finais

Evidenciamos neste trabalho, sem esgotar o tema, os aspectos mais relevantes das relações jurídico administrativas entre a administração pública e seus administrados, percorrendo os princípios basilares que regem a atuação do Estado até a legitimidade dos seus atos. Elucidamos que os interesses primários constituem o fundamento da administração, que tinha como objetivo o bem-estar da coletividade. Aludimos às sujeições e prerrogativas da administração pública, em especial o atributo do poder de polícia e sua aplicação nas relações com particulares.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. - 3. ed. - Salvador: JusPODIVM, 2016.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MAZZA, Alexandre Manual de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. - 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

VADE MECUM. Juspodivm Salvador, 2020

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Sobre o autor
Rick Lima

Bacharel em Direito pela UniFBV widen - Pós graduando em direito Penal e processo Penal pela EBRADI (escola brasileira de direito) - Graduado em Letras pela FAESC Servidor Público do Estado do RN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rick. O poder de polícia e as relações juridico-administrativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7067, 6 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100956. Acesso em: 27 abr. 2024.

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