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Lei de Terras: do contexto histórico às consequências

Lei de Terras: do contexto histórico às consequências

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Explanam-se os principais aspectos relacionados ao contexto histórico que ensejou a criação da Lei de Terras (Lei 601/1850) e seus reflexos na questão fundiária brasileira até os dias atuais.

INTRODUÇÃO

A Lei de Terras, como ficou conhecida a Lei 601, de 18 de setembro de 1850, certamente está entre as mais importantes legislações brasileiras do século XIX. Sua idealização visava à regularização fundiária, à reforma agrária - segundo alguns autores, como James Holston (2013, p.178-180) - além de também significar uma política para o financiamento da vinda de colonos estrangeiros para servirem de mão-de-obra na agricultura brasileira, que sentia os impactos do combate ao tráfico internacional de escravos, no século XIX.

Entretanto, como será demonstrado, a referida Lei não gerou os efeitos esperados, e sim, concentração de terras e insegurança jurídica, cenário que favoreceu, e muito, a grilagem de terras públicas. Esta concentração ainda é refletida nos dias de hoje, mostrando que a politica fundiária brasileira nunca conseguiu alcançar resultados de justiça social e equidade, seja por má-vontade, seja por falta de capacidade técnica.

De início, importante contextualizar a situação do Brasil na primeira metade do século XIX, principalmente quanto a economia, a situação fundiária e a política. Durante aquele século, o Brasil passou por três regimes diferentes: colônia, Império e República. Da transição do primeiro para o segundo regime, a concessão das sesmarias - meio clássico de aquisição da propriedade imóvel, até então - houvera sido suspensa, surgindo a necessidade de que nova Lei regulasse os aspectos fundiários e a transição para um novo e moderno conceito de propriedade de terras, transformando esta em uma mercadoria.

Além deste problema, outra questão afligia o país, e, principalmente, o seus meios de produção: o combate ao tráfico internacional de escravos, liderado pela Inglaterra, então maior potência do mundo e aliada de Portugal e do Brasil. Este fato levou a uma redução da mão-de-obra escrava, a principal utilizada na lavoura nacional, surgindo, assim, a necessidade de que nova solução para esse problema fosse encontrada. Assim, foi proposto o incentivo à vinda de colonos estrangeiros para o país.

Estas duas questões citadas acima foram os principais focos de ação da Lei de Terras.  

Para realização do presente estudo, foi feita uma revisão bibliográfica de livros, artigos e outros meios de produção científica acerca do tema. Em seguida, foi realizada uma análise dedutiva do conteúdo extraído da bibliografia.


1 - CONTEXTO HISTÓRICO

Faz-se necessário, de início, uma breve contextualização da situação brasileira acerca dos dois principais focos da Lei de Terras: estimulo e financiamento da imigração estrangeira para ocupar o território e servir de mão-de-obra para a lavoura brasileira, especialmente a de café; e a regularização e venda de terras no país.

– A DECADÊNCIA DA MÃO DE OBRA ESCRAVA

De acordo com Caio Prado Jr. (1981, p.136-137), durante a primeira metade do século XIX, o Brasil viveu um período de intensa transição em sua produção econômica e ordem política.

A vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil, em decorrência da ameaça napoleônica, e a seguida abertura dos portos brasileiros às nações amigas representaram importantes fatores de aceleração destas mudanças, pois, com Portugal invadido pelos franceses, a colônia tomava ares de moradia definitiva da Corte Portuguesa, tendo de suprir as necessidades e perspectivas desta elite, que, ao mesmo tempo, acabava por ser influenciada pelas práticas e cultura locais.

A invasão napoleônica aproxima mais ainda Portugal e Inglaterra, antigos aliados, que fecham vários acordos internacionais no início do século XIX, entre eles um de proteção à família real portuguesa; um de privilégio aduaneiro para Inglaterra e outro de redução de taxas de importação de produtos ingleses para o Brasil, produtos estes que seriam taxados em valor inferior, inclusive, aos produtos portugueses, fato que, segundo Celso Furtado (2005, p.126-129), juntamente com a baixa nos valores dos produtos exportados pelo país, levaria a um desequilíbrio em sua balança financeira.

Neste ponto, importante ressaltar que, no início do século XIX, as lavouras de açúcar, algodão e tabaco entram em franco declínio devido tanto a fatores externos, como a concorrência internacional, quanto a problemas internos, especialmente a técnica rudimentar empregada na agricultura brasileira, geradora de baixa produtividade.

Durante este período, o café, cultivado no centro-sul brasileiro, torna-se um produto supervalorizado internacionalmente, movendo o eixo da produção econômica nacional do norte para o sul. Caio Prado Júnior (1981, p.) afirma que nos segundo e terceiro decênio após a independência brasileira, ocorrida em 1822, aquele produto representava cerca de 40% de todas as exportações nacionais, gerando grandes riquezas e incentivos para aumento da produção.

Interessante notar que, apesar de serem bem diferentes, a cafeicultura e a cultura canavieira apresentavam similaridades. Celso Furtado (2005, p.135), ao comparar estas duas lavouras, afirma que em ambas havia a intensa utilização da mão de obra escrava, entretanto, a cultura cafeeira tinha um custo de produção mais baixo, seu equipamento de produção era mais simples e, geralmente, de fabricação local, de forma que apenas uma alta excessiva no custo da mão de obra poderia causar prejuízos relevantes a ela, ainda que o preço externo do produto não estivesse em crescimento (como de fato ocorreu durante a primeira metade do século XIX).

Entretanto, a mão de obra escrava utilizada na lavoura brasileira começava a sofrer impactos devidos a restrições internacionais ao tráfico negreiro.

Durante a primeira metade do século XIX, o Reino Unido fez uma intensa campanha para o fim do tráfico de escravos no mundo ocidental, usando de todos os métodos possíveis, principalmente de sua influência econômica e militar, impondo a vários países sua visão deste problema.

Apesar de ter realizado intenso tráfico negreiro no século XVIII, o Reino Unido extinguiu este comércio para todo seu império no ano de 1807, tornando-se, então, de acordo com Caio Prado Jr. (1981, p.150), “o paladino internacional de luta contra ele”, exercendo forte pressão para que o comércio internacional de escravos fosse extinto no mundo, sendo o Brasil um dos grandes focos desta constrição.

Em 1810, Brasil e Reino Unido firmaram o Tratado da Aliança e Amizade, o qual previa, entre outros assuntos, a gradativa extinção do tráfico negreiro por parte daquele país, limitando o comércio de escravos aos domínios portugueses (Portugal só poderia adquirir escravos de suas colônias africanas). Em 1826, outro acordo internacional é assinado entre os dois países, no qual havia a previsão do Brasil abolir o comércio de escravos em três anos, contados da data da ratificação (que ocorreu em 13 de março de 1827).

Segundo Cláudia Christina Machado e Silva (2006, p.18), esses tratados, assinados basicamente por pressão da Inglaterra, geraram indignação (motivada, em sua maioria, por interesses escravagistas) em boa parte dos deputados, sob o argumento de que eles afetavam a soberania do Império, e este é quem deveria decidir se continuaria ou não com o tráfico de escravos.

 As pressões britânicas, no entanto, levaram o Brasil a editar a chamada Lei Feijó (homenagem ao então Ministro da Justiça, Diogo Antônio Feijó), publicada em 7 de novembro de 1831, a qual declarava “livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos”. 

Esta lei, entretanto, nunca foi realmente cumprida pelo Império Brasileiro, não tendo, na prática, qualquer efetividade, surgindo, daí, a expressão “para inglês ver”.

Caio Prado Júnior (1981, p.155) afirma que a falta de efetividade da Lei Feijó foi devida, principalmente, ao fator político, pois Dom Pedro I abdicou do trono em 1831, justamente o ano de edição deste instrumento normativo, passando o império para seu filho, que, por ser menor de idade à época, não pôde governar diretamente, mas por uma “regência tirada do seio das classes que representavam o maior baluarte oposto a qualquer medida que afetasse a escravidão: os proprietários e senhores rurais”.

Ou seja, essa elite escravagista protelou o quanto pôde a manutenção da mão de obra escrava para dar vazão ao meio de produção clássico utilizado nas lavouras brasileiras. A pressão britânica para o fim do tráfico, porém, aumentaria cada vez mais.

Beatriz G. Mamigonian (2017, p.119) afirma que, na década de 1840, o Reino Unido, devido à falta de eficácia das medidas anteriores em reduzir o comércio de africanos, começa a combater mais fortemente o tráfico para o Brasil, levando as embarcações com escravos “a julgamento em seus próprios tribunais, sob acusação  de pirataria”.

 Todos esses fatos levaram a elevação do valor dos escravos, principais trabalhadores nos meios de produção econômica nacional. O centro-sul, mais rico, conseguia trazer escravos de regiões onde a produção era decadente (norte-nordeste) para dar continuidade à expansão da cafeicultura, gerando uma maior crise nas lavouras daquelas áreas.

Celso Furtado (2005, p.140), entretanto, afirma que, provavelmente, durante o século XIX, a população de escravos no Brasil estava em decadência, sendo três os fatores principais: combate ao tráfico internacional pelo Reino Unido, condições de vida extremamente precárias e a “intensificação da mão de obra e portanto um desgaste ainda maior da população escrava”, levando a morte precoce de vários escravos.

Segundo Celso Furtado (2005, p.143), o problema de defasagem de mão-de-obra era tão grande no Brasil que o Visconde de Mauá pensou em trazer trabalhadores asiáticos para trabalharem em regime de semisservidão, nos moldes do que ocorria nas índias Ocidentais holandesas e Inglesas.

Entretanto, o modelo adotado para a substituição, gradativa, do trabalho escravo foi o de estímulo à imigração europeia, especialmente de países como Itália, Alemanha, Polônia, etc..

Esta mão-de-obra estrangeira, apesar de presente no país há algum tempo (notoriamente na presença de trabalhadores portugueses da região do Minho), passava longe de ser dominante. Além disso, a maior parte desses migrantes vinha de maneira espontânea para o país, e não através de políticas públicas.

 O governo brasileiro tentou, à época, inúmeras políticas de incentivo para imigrantes europeus. Da mesma forma, a iniciativa privada também não conseguia atrair muitos estrangeiros para o Brasil, como foi o caso do regime de parcerias.

Segundo José Sacchetta Ramos Mendes (2009, p. 174-175), foi estabelecido, no Brasil, um regime de parcerias onde o imigrante trabalharia em terras de latifundiários em troca de participação no lucro da produção deste, podendo haver cessão de parceiros para outros latifúndios mesmo sem a vontade daqueles, havendo também a convivência de imigrantes e escravos cativos na feitura do mesmo trabalho nas lavouras, o que gerava tensões entre colonos-parceiros e latifundiários. 

Ocorre que esse sistema de parcerias, na maior parte das vezes, gerava endividamento e insatisfação por parte dos imigrantes, pois não recebiam um salário fixo e faziam dívidas com os grandes latifundiários donos das plantações, devido ao fato de terem de consumir os produtos e moradia oferecidos por estes, algo parecido com o instituto do truck system. Além disso, muitos imigrantes eram maltratados e este fato chegava ao conhecimento de várias nações europeias, gerando desestímulo a imigração.

Tanto o Brasil colônia quanto o Império não conseguiam elaborar politicas eficazes de incentivo a imigração, havendo dificuldades de financiamento para a vinda de imigrantes. Este foi um dos focos da Lei das Terras: trazer mão de obra imigrante para a lavoura nacional e para colonização do país.

A QUESTÃO DA TERRA NO BRASIL.

Durante todo o período do Brasil-colônia, a terra era uma concessão pública, na qual a Coroa Portuguesa concedia o direito ao bem imóvel para quem entendesse ser merecedor e/ou capaz de cultivá-lo. Era o conhecido regime das sesmarias.

De acordo com Laura Beck Varela (2005, p.73), o caráter público é o principal pressuposto para entender a propriedade sesmarial no Brasil. As terras pertenciam de direito à Coroa, e estavam, de acordo com Ruy Cirne Lima (1990, p35), sob a jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo.

Não havia, assim, segundo Laura Beck Varela (2005, p.72-74), propriedade como um direito absoluto, mas uma transposição/tradução, adaptada a realidade brasileira, do que ocorria no regime das sesmarias em Portugal.

Este regime surge logo no início da colonização do país, conforme afirma Ruy Cirne Lima (1990, p.37), pois já nas cartas de doações das capitanias hereditárias havia a previsão dos donatários concederem terras a terceiros.

Desta forma, Laura Beck Varela (2005, p.74) diz que foi através dos institutos das sesmarias, legitimação das posses e das datas de terras que “a propriedade pública gradativamente passou às mãos dos colonizadores particulares”. A referida autora diferencia (2005, p.74), ainda, as sesmarias das datas de terra, sendo essas últimas concedidas por comandantes militares, e tinham extensão, geralmente, não superior a meia légua quadrada, enquanto as sesmarias eram concedidas pelos “governadores das capitanias e vice-reis do Brasil”.

As sesmarias eram concedidas a pessoas influentes, de preferência com muitas posses, principalmente de escravos (pois a mão-de-obra para trabalhar o terreno tinha mais valor econômico que a terra em si), e que pudessem cultivar a terra. Conforme afirma Ruy Cirne Lima (1990, p. 39-40), as primeiras concessões continham um princípio estranho ao direito português, no sentido de que as terras seriam cedidas para a criação de engenhos para cultivo de cana de açúcar, onde deveriam ser construídas fortificações para defesa da área.

Essa obrigação de cultivo foi uma das principais características do regime das sesmarias no Brasil, apesar da fiscalização ter sido falha quanto a esse requisito (vindo a melhorar após a chegada da Família Real Portuguesa), até mesmo por falta de material humano adequado para tanto.

Laura Beck Varela (2005, p.93-96) expõe que houve, por bastante tempo, limitação legal da extensão das sesmarias, variando essa metragem de acordo com a época, mas, a partir de 1753, ficou definido a extensão máxima de 3 (três) léguas para a concessão de terras. Apesar disto, não raro eram os casos de concessões de áreas maiores que o limite estabelecido, fato que decorria, segundo a citada autora (2005, 93-96), de favores políticos ou quando a capacidade de produção do latifundiário era muito grande.  Ruy Cirne Lima (1990, p. 39-40), então, conclui que a concessão de sesmarias, geralmente, beneficiava pretendentes que “afeitos ao poder, ou ávidos de domínios territoriais, jamais, no entanto, poderiam apoderar-se materialmente das terras que desejavam para si”.

Lima (1990, p. 39) afirma que havia um “espírito latifundiário” na concessão de sesmarias no Brasil, no sentido de ser essa a intenção da lei: concentrar terras nas mãos de poucos. Entretanto, confrontando essa ideia, Laura Beck Varela (2005, p.86-90) afirma que este fato decorria mais da própria dinâmica do sistema colonial, pois a lavoura (em esquema de plantation) precisava de grande quantidade de terra inculta para expansão, para a extração de matéria prima, de lenha, cultivo de gêneros alimentícios, etc., sendo o latifúndio, com grande parcela de terra não cultivada, uma exigência de funcionamento deste tipo de sistema de produção e, disto, decorria outra característica das sesmarias, que era a falta de precisão de seus limites.

Fato é que, por intenção ou não, esse regime gerou concentração de terras nas mãos de poucas pessoas, que, em sua grande maioria, tinham muitas posses e influência junto aos líderes políticos do Brasil Colônia.

Segundo Ruy Cirne Lima (1990, p.47-48), já no início do século XIX o regime das sesmarias apresentava grandes problemas, entre eles os referentes à confusa legislação, problemas demarcatórios e registrais (geradores de imensos conflitos entre particulares, pois uma concessão, não raramente, abarcava área anteriormente concedida à outra pessoa), exigências excessivas por parte da Coroa (fato que levava muitos sesmeiros a abandonarem suas concessões ou continuarem com a terra de forma irregular), e a falta de uma efetiva ocupação do território nacional.

Esse regime perdurou até 1822, quando, após a independência brasileira, por ato do príncipe regente Dom Pedro I, em 17 de julho, foram suspensas todas as concessões de sesmarias.

Tinha, então, início um longo período - que duraria até 1850 - onde o único meio de aquisição da terra, de ter o domínio desta, seria pela posse.

Esse acesso a terra pela posse não era algo novo no Brasil, segundo José Luiz Cavalcante (2005, online), pois remonta o início do período colonial, passando, entretanto, a ter maior representatividade durante o século XVIII. Tratava-se, então, de um costume contra legem, pois a única forma legal de adquirir domínio de terras no país, até então, era por concessão da Coroa Portuguesa.

Ruy Cirne Lima (1990, p.51) afirma que, pelo menos no início do período das posses, a ocupação era um “triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sobre o senhor de engenhos ou fazenda”, pois permitia ao colono pobre o acesso à pequena propriedade agrícola. Jacob Gorender (ano, p.385) diz, entretanto, que a posse era “uma via de acesso aberta a grandes e pequenos”, ou seja, tanto o pequeno agricultor quanto o latifundiário poderiam utilizar deste mecanismo para conseguir o domínio da terra.

Lima (1990, p.-52-53) diz que a ocupação, para gerar posse, teria de vir acompanhada pelo cultivo da terra. Este, inclusive, foi o entendimento exarado na provisão de 14 de março de 1822 (anterior, portanto, a Lei de Terras), que, ao determinar a medição e demarcação das sesmarias, previa a prevalência dos posseiros que efetivamente cultivassem a terra sobre as sesmarias posteriormente concedidas após a ocupação daqueles.

Este era o quadro geral existente no Brasil na primeira metade do século XIX.  O aumento do número de posseiros, incluindo entre eles grandes latifundiários recebedores de sesmarias, mas sem a capacidade de cumprir os requisitos legais para manter a concessão, e a ausência de demarcações regulares nas terras (o que muitas vezes era de interesse dos próprios posseiros ou sesmeiros, para que pudessem ampliar os seus domínios) levaram a um quadro de crescimento de conflitos por terra e de incerteza jurídica.

Ao analisar esse contexto, Laura Beck Varela (2005, p.116-118) afirma que a situação fundiária brasileira, à época, era complexa, havendo sesmarias completamente regularizadas; outras irregulares, por falta de cumprimento de requisitos dos sesmeiros; terrenos, tanto de pequena quanto de grande extensão, ocupados só por posse; e um grande número de terras devolutas do império, ou seja, sem ocupação.

Visando regular essas situações é que surge a Lei de Terras, de 1850, mas não sem antes passar por intenso debate legislativo.  

– O NASCIMENTO DA LEI DE TERRAS

O projeto da Lei de Terras nasce, segundo Ruy de Cirne Lima (1990, p. 63), em 1842, quando o Governo Imperial requisitou a feitura de uma proposta de reforma legislativa sobre imigração e sesmarias à Secção dos Negócios do Império do Conselho de Estado.

Em 8 de agosto de 1842, o referido projeto, assinado por Bernardo Pereira de Vasconcellos e José Cesário de Miranda Ribeiro, foi apresentado à Secção, subindo para o Pleno do Conselho de Estado (onde ocorria a fase preparatória antes do envio da lei ao Legislativo), onde, de acordo com Ruy Cirne Lima (1990, p.63), foi amplamente discutido entre setembro e novembro daquele ano, não alcançando, entretanto, “qualquer resultado definitivo”.

O projeto é finalmente apresentado, em 10 de junho de 1843, à Câmara dos Deputados por Joaquim José Rodrigues Torres. Esteprotótipo, à época, tinha 29 artigos, contando, entre eles, com a previsão do modo de aquisição de terras, penalidades, utilização do produto da venda de terras para demarcação e vinda de imigrantes; e cobrança de imposto sob terrenos cultos e incultos, penalizando os inadimplentes há mais de 3 anos em pena de perda da terra.

De acordo com Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.28-29), os autores do projeto decidiram apresentar uma proposta conjunta, pois entendiam quesesmarias e imigração eram assuntos conexos, sendo o principal objetivo da proposta trazer mão-de-obra livre para o país, devido a intensa repressão externa ao tráfico internacional de escravos. No entanto, continua a mencionada autora (2006, p.29), estas justificativas foram alteradas quando o projeto foi para a Assembleia Geral, “onde enfatizou-se primeiro a necessidade de regularizar a propriedade territorial, assegurando os direitos dos sesmeiros e posseiros”.

Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.45) afirma que os discursos feitos na Câmara, em sua maioria, denotavam a intenção de restringir o acesso a terra, a priori, aos imigrantes, pois eles deveriam, primeiramente,“trabalhar para os proprietários já estabelecidos”. A preocupação principal da maioria dos membros desta casa legislativa era, assim, garantir mão-de-obra para a lavoura nacional, para isso, deveria haver um encarecimento do preço da terra.

Este fato, segundo Emilia Viotti da Costa (1998, p.176-177), caracterizava a influência das teorias de Edward Gibbon Wakefield (economista britânico que participou dos debates acerca da colonização da Austrália e Nova Zelândia) na elaboração do projeto da Lei de Terras, pois, segundo ele, em uma localidade onde o acesso a terra fosse fácil, seria difícil conseguir mão de obra livre para trabalhar em lavouras. Portanto, as terras deveriam ser alienadas por um preço relativamente elevado, para que os recém-chegados imigrantes não conseguissem de imediato adquirir um terreno próprio. Segundo a mencionada autora (1998, p.178-179), houve certa oposição à ideia de venda de terras por preço elevado para colonos, pois isto dificultaria a colonização de um país com vasta quantidade de terras desocupadas, de modo que as ideias de Wakefield não fariam sentido nesta situação, sendo preferível um sistema de doação de terrenos para estimular a vinda de imigrantes (coisa que os EUA fariam com os Homestead Act, de 1862, onde era garantida terra gratuita para colonos imigrantes).

Outra questão intensamente debatida na Câmara foi a da necessidade de medição das terras, fato extremamente importante para a que a lei atingisse objetivos concretos. Sem a medição, o Governo não saberia exatamente o tamanho de suas terras e não teria como diferenciar muitas delas de terras particulares, dificultando sua venda. Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.66-67) afirma que houve intensa rejeição a proposta de medição por dois principais motivos: a) quem pagaria pela medição seria o próprio sesmeiro ou posseiro do terreno; b) a possibilidade de haver uma limitação dotamanho das propriedades, o que irritava boa parte dos parlamentares, mas estes, segundo Emília Viotti da Costa (1998, p180), não foram capazes de retirar essa limitação completamente.

Ponto polêmico, de discussão acirrada, foi o artigo do projeto que previa a criação de dois impostos: um de chancelaria e um territorial, que também seria utilizado para trazer imigrantes. Entretanto, apesar da insatisfação, Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.84-85) afirma que os impostos foram mantidos no projeto após haver uma pequena diminuição em seus valores.

O projeto, então, sem sofrer grandes modificações, foi enviado para o Senado em outubro de 1843, onde sua discussão só foi retomada no começo de 1845. Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.89-93) afirma que muitos atrasos ocorreram no Senado em decorrência do chamado “Período liberal”, no qual os liberais dominaram o Senado Brasileiro. Eles não tinham tanto interesse na análise e aprovação desta lei, pois, em sua maioria, eram de proprietários mineiros e paulistas, que, por não terem ainda cafezais muito desenvolvidos, não tinham tanta necessidade de aumento de mão de obra em suas fazendas. As discursões são retomadas em 1848, quando os conservadores retornam ao poder naquela casa legislativa.

No Senado, o projeto foi bastante questionado quanto à previsão de um imposto territorial. Segundo Claudia Christina Machado e Silva (2006, p.), essa rejeição não era unânime, havendo vozes a favor e contra, mas foi decidido que a questão deste tributo seria destacada do projeto e votada separadamente. Desta forma, a Lei de Terras foi aprovada no Senado em 23 de agosto de 1850, voltando para a Câmara, onde foi definitivamente aprovado em 18 de setembro de 1850, tornando-se a Lei 601.


3 – A LEI DE TERRAS

A Lei de Terras (Lei 601), de acordo com Laura Beck Varela (2006, p.134), teve como objetivo “conferir um estatuto jurídico à propriedade privada, adequando-a às novas exigências econômicas, além de fomentar a colonização”.  

Logo em seu art. 1º, a Lei de terras estatuía que o único modo de adquirir as terras devolutas seria pela compra, com exceção das terras situadas a até 10 léguas do limite com um país estrangeiro, podendo, estas, serem concedidas gratuitamente.

Dispositivo de enorme relevância encontrava-se no art. 3º, da referida lei, ao definir quais terras seriam consideradas devolutas, enquadrando-se nesse conceito “as que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal”; “as que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”; “as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei”; e “as que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei”. Desta forma, fazia-se a diferenciação entre as terras públicas e as privadas.

José Luiz Cavalcante (2005, online), ao analisar o termo “terras devolutas”, afirma que, durante o período colonial, ele tinha o significado de “terra cujo concessionário não cumpria as condições impostas para sua utilização, o que ocasionava a sua devolução para quem a concedeu: a Coroa”. Com o passar dos anos, entretanto, o termo ganhou o significado de terra “vaga”. A Lei 601 utilizava este termo nos dois sentidos ao dispor que as terras não ocupadas ou cultivadas seriam consideradas devolutas.

Segundo Laura Beck Varela (2005, p.141-146), muitos juristas, como Teixeira de Freitas, criticaram o conceito disposto na lei por ser extremamente confuso. Além disso, continua a autora (2005, p.141-146), havia a dúvida se a nova lei, ao instituir que o único modo de aquisição de terras devolutas seria a compra, teria acabado com a possibilidade de aquisição de terra devolutas pelo mero apossamento. Juristas renomados, como Clóvis Beviláqua, defendiam a ainda existência da usucapião quadragenária de terras públicas, prevista na legislação civil da época, mesmo sob a égide da Lei de Terras.

Os arts. 4º e 5º da Lei de Terras traziam as possibilidades de revalidação e legitimação das antigas sesmarias e posses. Para as sesmarias (e outras concessões estatais), havia a necessidade de se acharem “cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas”.

Já quanto às posses, o art. 5º previa o seguinte:

Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:

§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.

§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indemnização pelas bemfeitorias.

Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hypotheses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionarios e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.

§ 3º Dada a excepção do paragrapho antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionario ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se tambem posseiro para entrar em rateio igual com elles.

§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o contrario.

Nota-se, desta forma, a presença, em ambos os tipos de validação, dos princípios da ocupação e do cultivo, contendo, porém, para o caso das posses, um limite espacial de uma sesmaria, podendo este limite ser excetuado nos casos do §2º do art.5º.

Para Laura Becker Varela (2005, p.154-157), a partir da edição da Lei de Terras, rompia-se com o princípio do cultivo como motivador e justificador da propriedade, pois as terras adquiridas a partir de compra e venda não poderiam mais ser requisitadas de volta pelo governo brasileiro caso não fossem cultivadas, a não ser em caso de desapropriação. Desta forma, aqueles princípios – cultivo e ocupação - seriam ainda importantes para a validação e legitimação das posses e sesmarias (e, em alguns casos, para aquisição da terra), demonstrando uma eficácia para atos passados, mas não teriam muita influência no direito de propriedade posterior à vigência da Lei de Terras.  

 Varela (2005, p.169), no entanto, ressalva que o princípio do cultivo ainda teve certo respaldo no Direito brasileiro, servindo de base para algumas normas, como no caso do Aviso Circular de 19 de julho de 1873 e do Aviso de 1862, que dispunham que as terras públicas não deveriam ser alienadas a pessoas ou empresas que não pudessem cultivá-las.

A Lei também demonstrava grande preocupação com a regularização e medição das terras, prevendo a perda do terreno não cultivado para os possuidores que não fizeram a medição no prazo assinalado pelo Governo (art.8º); a obrigatoriedade dos posseiros em tirar o título do terreno, sob pena de não o poderem alienar ou hipotecar (art.11); a criação de registros de terras possuídas nas freguesias (art. 13); e a autorização para criação da Repartição Geral das Terras Públicas, que “será encarregada de dirigir a medição, divisão, e descripção das terras devolutas, e sua conservação, de fiscalisar a venda e distribuição dellas, e de promover a colonisação nacional e estrangeira” (art.21).

No art. 14, havia a previsão do meio de alienação das terras devolutas. Os arts. 15 e 16, respectivamente, tratavam a respeito do direito de preferência dos posseiros que cultivem seus terrenos para aquisição de terras devolutas contíguas a eles, desde que demonstrassem a capacidade para cultiva-las; e sobre os ônus impostos aos adquirentes de terras devolutas, como o direito de passagem.

Quanto à questão da imigração para colonizar e trazer mão de obra para as lavouras, a Lei de Terras trazia três dispositivos muito importantes. O primeiro era o art.19, que previa a utilização do produto da venda das terras devolutas para a medição de terrenos e para a “importação de colonos livres”; outro dispositivo era o art.17, que dispunha sobre a possibilidade dos estrangeiros comprarem terras e requererem a naturalização “depois de dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S, Leopoldo”, ficando isentos do serviço militar, excetuando a guarda nacional presente em cada município. Por fim, havia o art. 18, autorizando o governo a trazer, às suas custas, colonos livres para serem “empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica”, ou para formações de colônias em locais convenientes. O governo deveria tomar, antecipadamente, medidas “para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem”.

Estes dispositivos demonstravam claramente que a intenção de usar o imigrante como mão de obra nas lavouras (substituindo os escravos) estava acima da intenção de os utilizar como meros colonos independentes, para povoamento. Os termos do art. 18 não poderiam ser mais esclarecedores dispor os imigrantes como “empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração Pública”.

Em linhas gerais, esses foram os principais dispositivos da Lei de Terras. Como ressalta Ricardo Marcelo Fonseca (2005, online), este instrumento normativo representou a mudança de uma concepção pré-moderna de propriedade para uma concepção moderna (como direito absoluto), pois, se antes da Lei de Terras era possível falar em sesmeiro, concessionário e posseiro, depois dela surge a figura do proprietário. Completava-se, desta forma, nas palavras de Emília Viotti da Costa (1998, p.172), a transição “de um período no qual a propriedade da terra significava essencialmente prestígio social, para um período no qual ela representa essencialmente poder econômico”.

Por fim, segundo Ruy Cirne Lima (1990, p.71), a Lei de Terras contou com os seguintes instrumentos para sua regulamentação, que visavam esclarecer seu conteúdo e sanar omissões, tratando de questões como medições de terras e responsabilidades administrativas, além de, muitas vezes, ampliar o prazo para regularização das Terras: Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854; Regulamento de 8 de maio de 1854, Portaria 385 de 19 de dezembro de 1855 e Decreto 6.129 de 23 de fevereiro de 1876.


4 – CONSEQUÊNCIAS DA LEI DE TERRAS

Como exposto anteriormente, a Lei de Terras tinha como objetivos principais trazer mão de obra livre para as lavouras brasileiras - imigrantes estes que também serviriam para colonizar o extenso, mas pouco povoado, Brasil do século XIX -; e fazer uma regularização fundiária no país, acabando, de vez, com a concepção de propriedade pré-moderna e trazendo a tona uma propriedade moderna.

Um dos seus principais efeitos, segundo James Holston (2013, p.185), foi transformar a terra em commodity, sujeitando-a ao mercado de uma forma legal (pois já há algum tempo havia venda de posse de terras, entre outros negócios relativos a este bem). No mesmo sentido, João Sette Whitaker Ferreira (2005, online) afirma que, antes da Lei de Terras, a riqueza dos grandes latifundiários era medida no número de escravos que eles tinham – estes eram até objeto de hipoteca. Após a Lei 601, houve uma mudança, passando o parâmetro de riqueza a ser determinado pela quantidade de terras que uma pessoa detinha. A terra, desta forma, passava a valer como capital, ganhando mais e mais valor com o decorrer dos anos.

Entretanto, como afirma Ruy Cirne Lima (1990, p.75), a Lei de Terras não surtiu o efeito desejado quanto aos seus dois principais focos.

Em relação à regularização fundiária, medição e demarcação de terras, continua Lima (1990, p.75-76), era intensa a desorganização administrativa, como ocorria na Repartição Geral de Terras, efetivamente criada pelo regulamento de 1854 e que consumia muitos recursos e apresentava poucos resultados efetivos, visto que havia poucos registros de demarcações de terras feitos durante o século XIX.

Segundo Marco Antônio Both da Silva (2015, online), “faltavam funcionários qualificados, agrimensores e técnicos, e o prédio onde funcionava o MACOP não atendia às necessidades dos trabalhos realizados”, demonstrando a completa falta de estrutura para a realização do trabalho de demarcação e registro.

Por outro lado, de acordo com James Holston (2013, p.186-187), muitos desses problemas deveram-se à resistência de sesmeiros e posseiros em legalizar as terras. Isso ocorria porque eles teriam de pagar as despesas com demarcação, registro, além do fato de que esta legalização impossibilitaria a incorporação, muitas vezes fraudulenta, de outras terras, o que era, via de regra, uma exigência fática da produção agrícola da época.

José Sacchetta Ramos Mendes (2009, online) afirma que a interpretação flexível dada a Lei de Terras ensejou um número imenso de fraudes, com vários posseiros usando documentos falsos para legitimar uma posse anterior não existente, adquirindo, assim, terrenos públicos de maneira ilícita.  Carlos Alberto Bittar Filho (2000, p.180), corroborando com este entedimento, afirma que esses golpes “acabaram por dilapidar o patrimônio público, criando-se, às suas custas, imensos latifúndios particulares”.

James Holston (2013, p.188), inclusive, cita que o “grileiro” - pessoa que se apropria e vende, através de fraudes, terras que não são suas - surge em resposta à Lei de Terras, dispondo que este instrumento normativo gerou uma série de falsificações sem precedentes na história nacional. Segundo o Holston (188-190), os grileiros davam uma roupagem legalizada às terras invadidas, elaborando vários documentos referentes a supostas transações antecedentes relativas à terra. Para tanto, pagavam impostos sobre o terreno, faziam doações de parte da propriedade, vendiam parte dela, e, principalmente, registravam esses fatos nos livros da paróquia local, que, muitas vezes, era tida como um primeiro registro. Repetidamente esses grileiros eram grandes proprietários de terras ou agiam em conluio com eles, expulsando pequenos posseiros que, por isso, se sentiam desprotegidos pela Lei de Terras, a qual eram obrigados a cumprir.

Essas fraudes, muitas vezes, não eram sofisticadas, como exemplifica Cristiano Luís Christillino (2010, p.224) ao citar o caso de Thomaz Rodrigues Gonçalves, que declarou, em 1856, ser possuidor de terras na extensão de mais de 5.000 hectares, na estrada de Santa Cruz, posse essa iniciada, segundo declaração do próprio interessado, em 1855, ou seja, 5 anos após a vigência da Lei de Terras, não sendo, portanto, atingido pelo benefício do art.5º da Lei 601. Outro ponto denotador deste ardil esta na tamanho declarado da posse. Segundo Christillino (2010, p.224), “uma extensão agrícola dificilmente conseguiria ultrapassar os 300 hectares em oito anos de atividade”. Não havia, assim, possibilidade de explorar milhares de hectares em apenas um ano de posse, configurando “uma fraude clara, expressa no próprio registro paroquial”.

Corroborando com este fato, Marco Antônio Both da Silva (2015, online) afirma que, apesar de um ou outro dispositivo legal tentar preservar os direitos de posseiros de baixa renda, pouco foi feito para proteger essa camada mais vulnerável da população. Além disso, continua Silva (2015, online), a própria influência dos latifundiários garantia que a aplicação da Lei de Terras, e as fraudes cometidas em seu nome, os beneficiassem, pois o processo de legitimação e validação partiria do interessado, e essa “tarefa era cumprida administrativamente por um Juiz Comissário nomeado pelo presidente da província, ambos mantendo relações próximas, para não dizer promíscuas, com as elites regionais das comarcas onde atuavam”.

Márcia Motta (1998, p.164), inclusive, cita relatório do Ministério da Agricultura, de 1870, expondo que a Lei de Terras deveria ser revista, pois ela não havia impedido, mas estimulado, a invasão de terras públicas, que acabavam por possuídas ilegalmente.

Desta forma, poucas posses foram legitimadas e poucas sesmarias revalidadas - muitas delas através de fraudes - durante as décadas seguintes à vigência da Lei de Terras. Segundo José Luís Cavalcante (2005, online), o governo brasileiro “abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei”.

Além disso, ao estabelecer um preço considerável para aquisição de terras devolutas, a Lei de Terras acabou por excluir toda uma massa populacional do acesso ao bem imobiliário, pois poucos podiam pagar o preço exigido pelo governo brasileiro, beneficiando, mais uma vez, as elites que tinham interesse na criação da Lei 601 e dispunham de renda e influência suficiente para adquirir terras.

Quanto à questão da vinda de imigrantes estrangeiros para trabalharem como mão de obra nas lavouras e colonizarem o país, também houve fracasso. José Luís Cavalcante (2005, online) e Emília Viotti da Costa (1998, p.14) afirmam que não houve uma substituição intensa do trabalho escravo pelo dos imigrantes assalariados, mas, sim, um aumento do tráfico interno, onde os escravos das regiões de lavoura decadente, como o norte-nordeste, eram adquiridos pelos grandes agricultores do sudeste-sul.

A dificuldade de acesso a terra, devido ao seu preço elevado, também afetou os imigrantes, pois, em sua maioria pobres, não conseguiam arcar com os valores requeridos. Este, segundo José Sacchetta Ramos Mendes (2009, p.), foi um dos principais fatores de desestímulo à vinda de estrangeiros para trabalharem nas lavouras, visto que outros países, como os EUA, garantiam o acesso a terra por doação, atraindo um maior fluxo de imigração.

Além disso, as imensas fraudes na aquisição de terras devolutas e o baixo índice de demarcação destas fez com que o Governo brasileiro pouco arrecadasse com suas vendas, não tendo, desta forma, muita verba para financiar a vinda de imigrantes europeus para a lavoura brasileira. Imigração esta que só viria a crescer no final do século XIX e início do século XX. 

De acordo com Caio Prado Júnior (1981, p.195-197), outro fator de desestímulo para a imigração europeia eram os maus tratos sofridos pelos imigrantes por parte dos grandes latifundiários, que não estavam acostumados à mão de obra livre e acabavam por tratar os colonos de forma similar aos escravos. Inclusive, em 1859, foi promulgado na Prússia o Rescrito de Heydt, que proibia a imigração de nacionais daquele país para o Brasil, em decorrência do tratamento dado aos imigrantes nas lavouras nacionais.

Como contraponto, Marco Antônio Both da Silva (2015, online), afirma que, mesmo concordando que a Lei de Terras teve pouca efetividade, pouco realizando durante seu longo período de vigência, o fato de ela ter servido de base para legislações posteriores, e seus efeitos e realizações terem sido “suportes importantes sobre os quais, em termos da estruturação da realidade fundiária brasileira”, não há motivos para dizer que este instrumento normativo foi uma “letra morta”, ou que ele “não pegou”.

Talvez essa influência nas legislações posteriores sirva de justificativa para o cenário fundiário atual do país, onde a concentração prevalece, como demonstra pesquisa do ano de 2016, realizada apenas com imóveis particulares registrados pelo Incra (online), onde 4.720.094 imóveis com até 2 módulos fiscais de extensão detinham uma área de 101.089.744, 9 hectares, enquanto os 23.450 imóveis maiores de 50 módulos fiscais detinha uma área de 118.176.997, 58 hectares.


CONCLUSÃO

A Lei de Terras foi um instrumento jurídico desenvolvido para trabalhar dois grandes aspectos relevantes para o desenvolvimento nacional do século XIX: a necessidade de mão-de-obra livre para substituir a mão-de-obra escrava, bastante ameaçada por pressões externas da Inglaterra e pelo crescimento do movimento abolicionista nacional (mesmo que este viesse a ter maior força somente nas décadas de 70 e 80 do século XIX), e a regularização fundiária no Brasil, com a demarcação de terrenos e a venda de terras devolutas, cuja renda serviria justamente para financiar a vinda de estrangeiros para trabalharem na agricultura nacional.

Dados os debates legislativos, note-se que, ao adotar um modelo mais próximo ao de Wakefield (onde haveria venda de terras por preço suficiente, e não doação), os legisladores brasileiros visavam a evitar que os imigrantes adquirissem terras rapidamente, basicamente levando-os a trabalhar nas lavouras para grandes latifundiários.

Falha em seus objetivos principais, uma vez que não conseguiu promover a regularização fundiária, tampouco promover, de forma consistente, a vinda de imigrantes para a agricultura nacional, a Lei de Terras serviu para validar várias fraudes, incentivando a grilagem de terras em razão da deficiência fiscalizatória (além do imenso gasto com essa estrutura débil) e a interpretação ambígua de seus dispositivos.

Da mesma forma, como houve pouca regularização e venda de terras, o financiamento da vinda de estrangeiros para lavoura restou prejudicado com a mão de obra escrava prevalecendo por décadas.

Se por um lado a terra, ao virar uma mercadoria, instituiu um regime moderno de propriedade no Brasil, por outro, ajudou a manter a concentração de terras nas mãos das antigas elites, pois – mesmo que em um primeiro momento, como afirmam alguns autores, pequenos posseiros puderam tirar algum benefício deste fato - os imigrantes europeus, em sua maioria pessoas empobrecidas, e os nacionais de pouca renda, via de regra, não tinham os valores requeridos para adquirir imóveis. Já os mais abastados possuíam, além de lastro financeiro suficiente, bastante influência, o que facilitava, inclusive, o cometimento de fraudes para adquirir e incorporar mais terras.

Desta forma, além de falhar em seus principais objetivos, a Lei de Terras potencializou a concentração fundiária, fato até hoje não sanado, como demonstra recente pesquisa realizada pelo Incra, apesar da constante mudança na legislação fundiária brasileira. Talvez a manutenção dos privilégios fundiários nacionais, mesmo com várias alterações legislativas, seja um exemplo daquela velha máxima pregada pelo Princípe Falconeri - personagem do livro O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa – no sentido de que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.  


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Autor

  • Lucas Campos Jereissati

    Advogado. bacharel em direito pela Unifor (Universidade de Fortaleza). Bacharel em jornalismo pela UFC (Universidade Federal do Ceará). Especialista em Direito Processual pela FA7 (Faculdade 7 de Setembro). Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional pela UFC (Universidade Federal do Ceará).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JEREISSATI, Lucas Campos. Lei de Terras: do contexto histórico às consequências. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6035, 9 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78820. Acesso em: 13 maio 2024.