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Responsabilidade civil dos bancos pelos prejuízos causados em negócios jurídicos de mútuo

Responsabilidade civil dos bancos pelos prejuízos causados em negócios jurídicos de mútuo

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Os bancos submetem-se, frequentemente, a atividades de risco em suas operações. Para isso, devem se cercar de garantias analisando, passo a passo, a documentação a eles apresentada com relação aos empreendimentos que lhe são solicitados.

I – OS BANCOS E SUA ATIVIDADE DE RISCO

Os bancos, como agentes de fomento, diariamente, submetem-se a atividades de risco em suas operações.

Observe-se que devem se cercar de garantias, analisando, passo a passo, a documentação a eles apresentada com relação aos empreendimentos que lhe são solicitados.

Algum importante ocorre quando determinada operação bancária é aprovada e nota-se, posteriormente, que o banco comercial ou de investimento foi induzido a erro diante da documentação, emprestando recursos a quem não devia e da forma como foi feita.

Isso ocorre ademais diante de um negócio jurídico imobiliário firmado com terceiros de boa-fé.

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, quando da análise do REsp 1.479.897, a questão tormentosa foi enfrentada.

Segundo o site do STJ, em 25 de outubro do corrente ano, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso de uma instituição financeira para afastar sua condenação solidária ao pagamento de indenização por danos morais e materiais a quatro herdeiros que foram prejudicados na venda de terrenos para duas construtoras.

Os herdeiros, menores à época da transação, ingressaram com ação para declarar a nulidade da venda dos terrenos, e após a procedência desse pedido entraram com nova ação para serem compensados por danos morais e materiais.

Na segunda ação, as instâncias ordinárias condenaram o banco solidariamente com as construtoras, sob o fundamento de que teria sido informado sobre a nulidade na compra dos terrenos e, por isso, não poderia ter concedido os financiamentos para os empreendimentos imobiliários.

Segundo o relator do caso no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, o banco não poderia ter sido responsabilizado porque, na época dos financiamentos, as escrituras dos terrenos estavam válidas, tendo sido anuladas somente em momento posterior, após a procedência da ação declaratória movida pelos herdeiros preteridos no negócio.

Sabe-se que há uma verdadeira presunção de verdade com relação a esses documentos.


II – A TRANSFERÊNCIA DE DOMÍNIO NO BRASIL

O Código Civil Alemão de 1896 instituiu uma sistemática para a transferência do domínio baseada na inscrição do contrato no registro do imóvel, ato precedido da depuração do título em processo sumário, que  corre perante os juízes do registro  imobiliário. No sistema jurídico alemão de propriedade imobiliária a sua base é o cadastro de toda a propriedade imóvel. Sem a adoção de livros fundiários rigorosamente escriturados não seria possível estabelecer tal técnica.

A transcrição no registro decorre de um acordo formal de transmissão, que se erige, então, sem convenção jurídico-real e resulta de declaração de vontade dos interessados especificamente à transcrição. Feito o registro com a observação das normas do direito imobiliário formal que estatui rito próprio e somente se efetua em decorrência  de ato judicial que retira do título vícios, a transcrição assume a natureza de negócio jurídico abstrato, valendo por si mesma independente do negócio jurídico causal anterior. Assim, promovido o registro nos livros fundiários, a transmissão se desprende do negócio jurídico subjacente (compra e venda, doação etc), para valer como negócio jurídico translativo da propriedade imóvel. Adquire, assim, uma força probante de presunção iuris et de iure de propriedade. Dono é aquele que tem  a propriedade registrada em seu nome.

Pelo sistema germânico, a transcrição opera a transmissão e faz prova plena da propriedade que se presume na titularidade daquele em cujo nome o registro está. No Brasil, com o Código Civil de 1916 e ainda com o Código Civil de 2002, as coisas se passam de forma diversa.

A exemplo do Direito Alemão, o Direito Brasileiro adota o princípio da legalidade em virtude do qual a validade da inscrição depende da validade do negócio jurídico que lhe dá origem e da faculdade de disposição do alienante. No Direito Alemão, porém, põe-se esse negócio jurídico na figura artificial de um acordo jurídico-real-abstrato, por força do qual as partes, perante a autoridade, meramente, dão seu consentimento à inscrição. No Direito Brasileiro, há um acordo jurídico-obrigacional, em que as partes dão o seu consentimento a todas as estipulações entre elas ajustadas.

A inscrição, seja no Direito Brasileiro, seja no Direito Alemão, não tem o efeito saneador de passar a esponja sobre o passado, não torna liquido o domínio ou outro qualquer direito real.

A inscrição tem um efeito constitutivo para aquisição do direito real sobre coisa imóvel, mas não tem o saneador, isto porque o lugar da tradição em virtude da qual o alienante não transmite senão o direito que lhe assiste, pelo qual, se nenhum lhe assiste, nenhum transmite. Assim, quem quer que, fiado na inscrição, adquire a propriedade ou outro qualquer direito real está exposto ao risco de ver contestada a sua aquisição, se o alienante inscrito no registro não era o verdadeiro titular: a aparência registral é sobrepujada pela realidade jurídica.

Não adianta ao proprietário utilizar-se do que se tem como presunção criada em seu benefício.

No Brasil tinha-se pelo Código de 1916, no artigo 859 do Código Civil de 1916:

“Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu ou transcreveu”.

Pelo princípio da fé pública o adquirente de boa fé fica protegido, estabelecendo a lei uma presunção juris et de  jure em favor deste se o título alcançou o fólio real. Este é o sistema que permite a máxima eficácia da circulação da riqueza, em virtude da confiança que atribui ao adquirente. Pelo princípio da presunção, o registro estabelece uma presunção iuris  tantum de veracidade, determinando, tão-somente, uma vantagem processual, invertendo o ônus da prova em juízo.

Com a edição do novo Código Civil, introduzido pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o legislador aproximou-se ainda mais do princípio da fé pública, não fosse o dispositivo do parágrafo único, do artigo 1.247, do mesmo Diploma.

Esse artigo 1.247 do Código Civil de 2002 não tem paradigma no Código Civil de 1916, revogado, num quadro comparativo.

Aproximou-se, afirma-se, porque o novo Código pátrio trouxe o conceito do negócio jurídico e da boa-fé objetiva, ambos presentes no Código Civil Alemão (104 e seg., e 157), e que propiciaram a introdução, naquele País, do princípio da fé pública nos negócios imobiliários (891 e 892).

Para o Código anterior, Soriano Neto (Publicidade material do direito imobiliário, 1940, n. 86, pág. 173) já ensinava já ensinava que os direitos inscritos é que gozem da presunção de pertencerem àqueles em cujo nome se acham no livro. Essa presunção constitui verdadeira cidadela que somente pode ser destruída por meio de ação contenciosa e ordinária, não se deixando abalar nem pelo assento preventivo da propositura dela, o chamado assento da contradita. O assento da contradita exclui a fé pública da inscrição, mas não destrói a presunção.

Assim se lê do Código Civil de 2002:

Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo. [...]

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.

Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.

O Projeto do Código Civil de 1965 já salientava que a inscrição gera a presunção da existência e o cancelamento da inexistência do direito, com a ressalva de ser destruível por prova contrária.

Com o princípio da boa-fé o prejudicado deixará de ter ação contra o terceiro de boa-fé que adquiriu o imóvel do proprietário putativo a título oneroso.

A fé pública tem a sua incidência limitada aos negócios jurídicos, vale dizer, aos acordos de vontade ajustados entre partes, os quais constituem o que chamam de tráfico imobiliário. Fora desse círculo negocial, a fé pública não opera, o que equivale a dizer que não protege as aquisições de direitos advindos de atos negociais que ficam a descoberto. Daí porque se diz que é mais segura a aquisição onerosa por escritura pública outorgada pelo proprietário do imóvel do que por arrematação judicial em execução que lhe for movida.

A fé pública cinge-se a amparar os direitos que eles conduzem à inscrição, não os fatos carreados simultaneamente, com eles, como a limitação geodésica do imóvel, sua extensão, sua exploração econômica, suas construções, seu preço. A fé púbica protege a inscrição dos direitos, não dos fatos a ele ligados, de sorte que a eventual inexatidão destes não se convalida em favor do titular inscrito por ficar fora do abrigo do princípio, como ensinou Afrânio de Carvalho(Registro de Imóveis, 2ª edição, pág. 186) na linha de Wolff, Nussbaum e Hedemann, dentre outros.

O princípio da boa fé quer dizer, no Direito Imobiliário, que declarando-se que a existência do direito inscrito e a inexistência do direito cancelado prevalecem absolutamente em relação ao terceiro de boa-fé, que, confiado no assento de uma ou de outro, negociou a título oneroso com o titular aparente. Assim essa declaração limita a destrutibilidade da presunção por prova contrária, em favor de quem, desconhecendo a inexatidão do registro, ao qual se opusera oportuna contradita, adquirir o direito a título oneroso.

Anote-se que embora a infidelidade da inscrição, isto é, a desconformidade entre a situação registral e a real, continue a facultar amplamente a ação de retificação do prejudicado, esta deixará de ser operante contra quem, na ignorância de ser a inscrição infiel, desembolsar o seu dinheiro e adquirir o direito de quem figurar indevidamente no registro como titular do imóvel.

Esse terceiro de boa-fé se achará a coberto da reivindicação do prejudicado, cujo direito se converterá no de obter indenização do indevido alienante.

Do que se tem da doutrina vinda do direito alemão, a fórmula geral da proteção de terceiro de boa-fé compreende todos os atos que se apoiem em dados constantes do Registro, entre os quais: a) a aquisição de propriedade derivada de não-proprietário; b) a aquisição de hipoteca ou outro direito real derivada de não-proprietário; c) a aquisição de hipoteca ou outro direito real, por cessão feita por não-credor; d) a aquisição de um imóvel livre de ônus quando estes não aparecem no Registro; e) o pagamento de prestações ao titular inscrito com plena liberdade do pagante, como acentuou Afrânio de Carvalho(obra citada, pág. 189), à luz de Wolff e Hedemann, quando analisaram a fé pública do registro, alcance da proteção da boa-fé.

Veja-se o artigo 21 da Lei 6.015/73:

Art. 21. Sempre que houver qualquer alteração posterior ao ato cuja certidão é pedida, deve o Oficial mencioná-la, obrigatoriamente, não obstante as especificações do pedido, sob pena de responsabilidade civil e penal, ressalvado o disposto nos artigos 45 e 95. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1974)

Parágrafo único. A alteração a que se refere este artigo deverá ser anotada na própria certidão, contendo a inscrição de que "a presente certidão envolve elementos de averbação à margem do termo. (Incluído dada pela Lei nº 6.216, de 1974)

A proteção do terceiro de boa-fé, que confia na inscrição ou no cancelamento, pressupõe que ele tome conhecimento do conjunto de assentos relativos ao imóvel, ao invés de ater-se a uma inscrição isolada. Essa proteção frustra-se se o terceiro ler e analisar apenas a inscrição originária do direito, seja a da matrícula do imóvel, seja a de uma hipoteca, sem ler abaixo a inscrição preventiva de uma contradita, de uma penhora ou a cessão de grau de hipoteca referente. Quanto a isso observe-se o artigo 21 da Lei de Registros Públicos já trazida à colação.

Daí porque no intuito de prevenir esse malogro, a atual Lei dos Registros Públicos preceitua que, requerida uma certidão, o serventuário estende-lá-a de sua iniciativa a qualquer alteração posterior, de sorte que, se for concernente a ônus de imóvel, alcançará  aqueles inscritos após o requerimento. 

O Código Civil dispõe que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, salvo se a lei não dispuser em contrário:

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.

Em absoluta consonância com o Código Civil, a Lei 9.514/1997 permite que os atos e contratos decorrentes de sua aplicação sejam firmados por instrumento particular com efeito de escritura pública, sem nenhuma ressalva:
 

“Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública”.


III – A NULIDADE DO REGISTRO PÚBLICO E A BOA-FÉ

Enquanto não declarados nulos os registros das escrituras públicas antecedentes, a propriedade dos imóveis era válida, não competindo à recorrente [instituição financeira] negar fé a ato público, aparentemente legítimo e revestido das formalidades legais. Afastar a presunção de validade dos atos, somente posteriormente anulados, era ato que competia ao Poder Judiciário, imbuído do poder geral de cautela ou mediante provocação por meio de requerimento de antecipação dos efeitos da tutela”, disse o ministro.

Dessa forma, segundo o relator, é impossível responsabilizar o banco, pois apenas exerceu o direito de conceder financiamento a terceiros que comprovaram as condições para a contratação.

O ministro Marco Aurélio Bellizze afirmou que a responsabilização exigiria também que se verificasse a existência de nexo causal entre o dano e o suposto ato ilícito praticado pelo banco. No entanto, insistiu o ministro, não ocorreu ato ilícito por parte da instituição financeira.

Com efeito, a responsabilização civil solidária, tal qual as obrigações solidárias, não se presumem, sendo imprescindível que se demonstre a existência de convenção ou de causa legal (art. 265 do CC/2002 e 896 do CC/1916). Entre as causas legais que impõem a responsabilidade civil é certo que o Código Civil estabelece a solidariedade entre coautores da conduta danosa, situação que já era reconhecida desde o Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos sub judice (art. 1.518 do CC/1916 e 942 do CC/2002). Art. 1.518. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outros ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis como autores os cúmplices e as pessoas designadas do artigo 1.521.

Com efeito, a responsabilização civil solidária, tal qual as obrigações solidárias, não se presumem, sendo imprescindível que se demonstre a existência de convenção ou de causa legal (art. 265 do CC/2002 e 896 do CC/1916). Entre as causas legais que impõem a responsabilidade civil é certo que o Código Civil estabelece a solidariedade entre coautores da conduta danosa, situação que já era reconhecida desde o Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos sub judice (art. 1.518 do CC/1916 e 942 do CC/2002). Art. 1.518. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outros ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis como autores os cúmplices e as pessoas designadas do artigo 1.521.

Bem ilustre o voto vencedor naquele julgado citado:

“O reconhecimento jurídico de que a sociedade moderna é uma sociedade de riscos impôs aos civilistas o avanço da compreensão inicial de imputação vinculada à autoria de uma conduta censurável – ato ilícito –, como fundamento para imposição do dever de retribuição, para uma imputação decorrente do reconhecimento de violação a um dever geral de precaução. A inobservância de um dever difuso de solidariedade, que impõe a todos uma atuação consciente dos riscos decorrentes de seus atos e sempre tendente a minimizá-los, passa a ser fundamento de responsabilização por danos percebidos por terceiros (ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 30). Contudo, a objetivização da responsabilidade civil, mesmo em dias atuais, ainda que se afaste da mera imputação de atos ilícitos, não pode alcançar tamanha abstração, de modo a se desconectar, de forma absoluta, da relação causal estabelecida entre a conduta e o dano, impondo quase que um dever geral de obstar a ocorrência de toda e qualquer fatalidade numa sociedade eminentemente de risco. Nesse sentido, alerta Nelson Rosenvald "se a vitimização é aleatória, sua origem também tende a se tornar aleatória, em virtude do cálculo de probabilidade que situa todas as ocorrências sob o signo do acaso. Tudo se torna fatalidade, que é o exato oposto da responsabilidade. Fatalidade é ninguém; responsabilidade é alguém" (op. cit., p. 31). Na mesma trilha, o entendimento desta Terceira Turma reconhece a necessidade de se buscar uma justificação jurídica para se imputar a responsabilidade civil àquele que não se encontra atrelado ao dano por uma perspectiva tradicionalmente causal (REsp n. 1.606.360/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 30/10/2017). Essa transmudação da imputação meramente causal em normativa se encontra incorporada ao nosso ordenamento jurídico por meio do Código de Defesa do Consumidor (arts. 12 e 14), bem como dos casos legais de aplicação da teoria do risco-proveito estabelecida genericamente no parágrafo único do art. 927 do CC/2002 ("Parágrafo único.

O reconhecimento jurídico de que a sociedade moderna é uma sociedade de riscos impôs aos civilistas o avanço da compreensão inicial de imputação vinculada à autoria de uma conduta censurável – ato ilícito –, como fundamento para imposição do dever de retribuição, para uma imputação decorrente do reconhecimento de violação a um dever geral de precaução. A inobservância de um dever difuso de solidariedade, que impõe a todos uma atuação consciente dos riscos decorrentes de seus atos e sempre tendente a minimizá-los, passa a ser fundamento de responsabilização por danos percebidos por terceiros (ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 30). Contudo, a objetivização da responsabilidade civil, mesmo em dias atuais, ainda que se afaste da mera imputação de atos ilícitos, não pode alcançar tamanha abstração, de modo a se desconectar, de forma absoluta, da relação causal estabelecida entre a conduta e o dano, impondo quase que um dever geral de obstar a ocorrência de toda e qualquer fatalidade numa sociedade eminentemente de risco. Nesse sentido, alerta Nelson Rosenvald "se a vitimização é aleatória, sua origem também tende a se tornar aleatória, em virtude do cálculo de probabilidade que situa todas as ocorrências sob o signo do acaso. Tudo se torna fatalidade, que é o exato oposto da responsabilidade. Fatalidade é ninguém; responsabilidade é alguém" (op. cit., p. 31). Na mesma trilha, o entendimento desta Terceira Turma reconhece a necessidade de se buscar uma justificação jurídica para se imputar a responsabilidade civil àquele que não se encontra atrelado ao dano por uma perspectiva tradicionalmente causal (REsp n. 1.606.360/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 30/10/2017). Essa transmudação da imputação meramente causal em normativa se encontra incorporada ao nosso ordenamento jurídico por meio do Código de Defesa do Consumidor (arts. 12 e 14), bem como dos casos legais de aplicação da teoria do risco-proveito estabelecida genericamente no parágrafo único do art. 927 do CC/2002 ("Parágrafo único).

Porém, essa evolução jurídica da responsabilidade civil ainda não se fazia clara sob a vigência do Código Civil de 1916, o qual adotava o viés eminentemente subjetivo da responsabilização, e impunha a imputação de uma conduta, mais que lesiva, ilícita e culposa, mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil.12ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2015, p. 3-8). Nesse sentido, Ruy Rosado de Aguiar, em voto proferido no julgamento do REsp n. 209.062/RJ, Quarta Turma, julgado em 22/6/1999, DJ 5/8/2002, p. 345, assim se manifestava: Um dos princípios sobre o qual o nosso sistema de responsabilidade civil está construído é o de que o ato lícito não gera indenização. A regra sofre exceções, porém, em algumas situações específicas, como as que decorrem do risco - onde se pode indenizar dano sem conduta ilícita - e a contemplada no art. 160, inc. II, do CCivil, que descreve um comportamento lícito mas, nos termos dos arts. 1519 e 1520 do CCivil, gerador da obrigação de reparar o dano causado pelo necessitado contra terceiro que não provocou o perigo.”

Se o agente financeiro age com boa-fé na negociação de empréstimo, no exercício regular de direito, pratica o negócio jurídico de forma lícita, de forma que cabe aplicar o Código Civil:

Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I - Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.


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