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A responsabilidade civil por danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais

A responsabilidade civil por danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais

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A convivência com os filhos não é apenas direito; é dever, obrigação. Quando isso não se dá, as consequências podem ir além de eventuais sequelas emocionais nos filhos, gerando responsabilidade civil e indenização.

RESUMO: O presente artigo apresenta o instituto da responsabilidade civil aplicável no direito de família, mais especificamente nos casos de abandono afetivo. Destarte, buscou-se analisar os principais conceitos do ramo do direito de família junto aos pressupostos e requisitos elementares qualificadores da responsabilidade civil no ordenamento jurídico pátrio, de modo a estabelecer tal responsabilização sem que se comprometa a segurança jurídica essencial em um Estado democrático de direito.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil, Dano Moral, Abandono Afetivo, Família


INTRODUÇÃO

É premissa básica que o primeiro contato do indivíduo com um sistema de organização social é desenvolvido no âmbito familiar. Assim, pode-se dizer que a família é uma das mais antigas bases de formação, desenvolvimento e inserção social do indivíduo. Cumprindo relevante papel, o apoio afetivo dos pais é elo fundamental para a socialização do ser, seu desenvolvimento e consequentemente da sociedade.

Desde os primórdios da civilização, a sociedade já reconhecia a importância da família e os direitos e deveres de todos os membros que a formam. A Constituição Federal corrobora esta importância quando dispõe que esta é a base da sociedade e possui especial proteção do Estado. Além disso, outros valores e princípios fundamentais de grande relevância como a dignidade da pessoa humana, isonomia, solidariedade social, e neste contexto a afetividade ocupa lugar de relevância, foram abarcados pela carta magna.

A dissolução da família e o distanciamento entre pais e filhos podem comprometer o desenvolvimento do indivíduo e produzir seqüelas emocionais causando sérios danos a evolução psicológica e a inserção social dos filhos.

Haja vista que o Código Civil de 2002 estabelece as regras da responsabilização por danos causados a outrem, ainda que morais, seria possível imputar aos pais a responsabilidade civil por danos morais decorrentes do abandono afetivo? 

Não obstante os sentimentos sejam abstratos, não sendo possível agregar-lhes valores pecuniários, o abandono afetivo pode causar prejuízos palpáveis? Quais seriam os limites desses prejuízos?

O estudo da disciplina de direito de família pode ter a faculdade de despertar o interesse por uma analise mais profunda do tema. Além disso, observa-se que o assunto faz parte do cotidiano de diversos grupos familiares, o que pode ser comprovado pelo aumento significativo de processos judiciais propostos no poder judiciário pleiteando indenizações pecuniárias por abandono afetivo.

Na busca por aporte para o desenvolvimento do predito trabalho deparou-se com um tema extremamente controverso nos tribunais brasileiros demonstrando ser uma questão que faz parte do cotidiano de inúmeras famílias. Percebe-se um aumento considerável de ações ajuizadas nos tribunais brasileiros pleiteando uma indenização pecuniária que repare o dano moral sofrido pelos filhos em razão do abandono pelos genitores.

O tema, ora apresentado, reverte-se de elevada importância social e jurídica, haja vista a necessidade de uniformização de uma questão que surge no seio da sociedade contemporânea e que vislumbra a afetividade como elemento fundamental do novo modelo de família apregoada na Constituição Federal.

Destarte, se faz necessário uma análise crítica das teorias da responsabilidade civil e os limites para a responsabilização por danos morais motivados pelo abandono afetivo, fazendo com que o direito de fato contribua para a tutela de crianças e adolescentes.


2 DOS PRINCÍPIOS CONSTITUICIONAIS E O ABANDONO AFETIVO

A Constituição Federal de 1988 consolidou-se como um marco histórico para evolução do atual conceito de família. As relações familiares ganharam amplitude, amparadas pelos princípios norteadores trazidos pelo texto constitucional.

Conforme observa Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2008), a família não é campo apenas para o desenvolvimento biológico, mas também para fenômenos culturais que vão desde a escolha profissional até a afetiva. Pode ser observado ainda que esta é uma das formas que diferem o homem dos demais animais por ser ele suscetível a escolhas e, assim, formar grupos que desenvolverão sua personalidade. A família é local de inserção e desenvolvimento do homem sendo também responsável por moldar seu caráter e personalidade por meio das experiências vividas.

A definição de família passa por uma analise importante do contexto histórico e cultural. Ao longo dos séculos a entidade familiar passou por diversas e significativas mudanças até chegar ao que hoje se denomina família eudemonista. 

Para Carlos Alberto Maluf e Adriana Caldas do Rego F. Maluf (2016), os primeiros grupos que se formaram com aspecto de família tiveram suas bases no instinto sexual e a presença posterior de uma prole aliada à expansão do universo cultural obrigou a implantação de uma estrutura social mais complexa a fim de garantir a continuidade da espécie.

Apontam os autores que o cerne da família sustentava-se na autoridade marital consagrada em crenças religiosas, sendo sua formação mais religiosa que natural. O casamento religioso teria suas raízes nessas características sendo a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica com capacidade de dar legitimidade à prole e à manutenção da própria entidade familiar. (MALUF; MALUF, 2016)

Observam ainda os autores que, na atualidade, vigoram diversas formas de família que são variações do modelo familiar tradicional.  Enquanto a família tradicional é formada pelo pai, mãe e filhos, situações diversas podem formar a família monoparental composta por apenas um dos genitores e os filhos. Há também a família comunitária onde todos os membros adultos, que estruturam o seio familiar, são responsáveis pela educação das crianças. Tem-se ainda a família composta por um casal ou uma pessoa homoafetiva com uma ou mais crianças sob sua responsabilidade. Outro modelo a ser citado seria o contemporâneo onde a mulher é o chefe de família abarcando também a família monoparental ou aquela em que a mãe é solteira ou divorciada. (MALUF; MALUF, 2016)

No direito civil contemporâneo, surge a família denominada eudemonista cuja formação decorre do afeto, ou seja, o cerne de sua formação é gerar felicidade em seus componentes, bem absoluto da existência humana. (MALUF; MALUF, 2016)

Dos modelos de família existentes, aduz-se que certos princípios permeiam todos. Dentre eles, destacam-se princípios como a dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade e afetividade.

A Constituição Federal de 1988 comporta diversos princípios aplicáveis ao direito de família. No art. 1º, III da CF/88 tem-se a previsão do princípio da dignidade humana que possui um significado amplo sendo à base de todos os demais princípios. A dignidade da pessoa humana é inerente ao ser humano e nas palavras de Maria Berenice Dias é assim definida:

O princípio da dignidade da pessoa humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação passiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-e de praticar atos que atentem contra a dignidade da pessoa humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. (DIAS, 2011, p. 63)

O princípio da igualdade, previsto no art. 5º, I, da CF/88, sendo entendido como direto fundamental, produziu importante mudança no direito de família, particularmente no tocante aos entes familiares.  Se antes a figura paterna era o foco das atenções e direitos, agora todos os entes familiares devem ser vistos com igualdade de direitos e obrigações superando as desigualdades entre os entes familiares. (MALUF; MALUF, 2016)

No art. 3º, I do mesmo diploma tem-se a previsão do princípio da liberdade que concedeu ao direito de família um caráter democrático e possibilitou a existência dos modelos de família atuais (MALUF, 2016 pag. 69)

Conforme expressa Maluf (pag. 66), a CF/88 em seu art. 226 caput e parágrafos traz importantes princípios ao direito de família. Trata este artigo da tutela especial da família, do pluralismo dos tipos de família, da igualdade entre os cônjuges entre outros princípios.  

A Constituição Federal, em seu artigo 227, Caput, faz importante previsão sobre o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, ao lazer, à educação, à alimentação, dentre outros. (BRASIL, 1988).

O artigo 229 do mesmo diploma legal impõe que “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” (BRASIL, 1988).

Tem-se ainda os deveres impostos aos pais estabelecidos pelo Código Civil Brasileiro, Lei 10.406 de 11 de janeiro de 2002, que estabelece deveres dos genitores na mesma linha dos deveres tratados na CR/88 e no ECA.

Os dispositivos legais supracitados constituem o rol de deveres juridicamente exigíveis dos pais em decorrência do estado de paternidade ou maternidade, os quais, se não observados, podem gerar a responsabilização civil e consequentemente o dever de indenizar.


3 RESPONSABILIDAE CIVIL E ABANDONO AFETIVO PATERNO-FILIAL

Conforme estabelece o Código Civil de 2002, em seu artigo 927, a obrigação de reparar o dano cabe àquele que, por ato ilícito, o causar. Por sua vez, a definição de ato ilícito está prevista no artigo 186, do mesmo diploma legal, estabelecendo que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (CÓDIGO CIVIL, 2002). 

De acordo com os preceitos legais, o instituto da responsabilidade civil possui normas próprias e se constitui no dever de se reparar o dano, moral ou material, causado à vítima em decorrência de uma conduta do agente, sendo necessário que se verifique nesta conduta os elementos essenciais do instituto, quais sejam o ato ilícito, a conduta do agente, a culpa lato sensu, o nexo causal e o dano propriamente dito. (GONÇALVES, 2014, p.19).

Destarte, tema controverso surge ao se analisar o instituto da responsabilidade civil no âmbito familiar. Tem-se a afetividade como princípio implícito na CF/88 derivando da dignidade da pessoa humana. Surge então, os deveres dos entes familiares uns para com os outros.

Maria Berenice Dias (2011, p. 460) esclarece que faz parte dos deveres dos pais terem os filhos em sua companhia e que a Constituição e o ECA acolheram a doutrina da proteção integral colocando a prole a salvo de toda forma de negligência. Aduz ainda que o conceito atual de família é centrado no afeto exigindo dos pais o dever de criação e educação não podendo lhes negar o carinho necessário ao pleno desenvolvimento de sua personalidade. Este modelo trouxe à tona a chamada paternidade responsável. A convivência com os filhos deixa de ser um direito e passa a ser vista como uma obrigação e ao não fazê-lo causa-se sequelas emocionais comprometendo o desenvolvimento. O pai, segundo a autora, é o responsável pela primeira ruptura da intimidade entre mãe e filho e, consequente, introdução do filho no mundo transpessoal dos irmãos e da sociedade.  Assim, a omissão do genitor produz danos emocionais que são merecedores de reparação. (DIAS, 2011)

A renomada autora observa, ainda, que o cuidado com os filhos é uma imposição legal e a inobservância deste preceito normativo, que se caracteriza pelo abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos e também o princípio da solidariedade familiar. Destarte, quem causa o dano fica obrigado a indenizar em valor suficiente ao necessário para amenizar as sequelas psicofísicas do filho. Mister se faz destacar que a nobre autora aponta ser também cabível penalizar a genitora ao pagamento de indenização, tanto ao pai quanto ao filho, quando ocultar do outro a existência do filho, privando-os do convívio mútuo. (DIAS, 2011)

Noutro giro há autores que entendem que os sentimentos são pessoais e doados a outrem de forma cabal e única, e não por uma obrigação legal. A concessão de indenização por falta destes sentimentos resultaria em patrimonialização daquilo que não possui valor econômico. Destarte, não seria admissível o uso das regras atinentes à responsabilidade civil no âmbito do direito de família visto que isto implicaria na desagregação do núcleo familiar de sua essência. A falta de afeto e cuidado entres pai e filho já possui efeitos jurídicos, como destituição do poder familiar ou imposição da obrigação alimentícia, e uma indenização pecuniária poderia intensificar um desgaste ainda maior da relação familiar (FARIA, ROSENVALD, 2008, p. 77).

Esclarecem ainda os renomados autores que o abandono afetivo é um conceito outorgado à ausência de afeto entre pais e filhos, porém o princípio da afetividade não abarca o dever de amar ou demonstra afeto (MALUF, MALUF, 2016)

No entendimento de Paulo Lôbo:

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar. (LÔBO, 2011, p. 71)

Verifica-se, assim, que em nenhum dos dispositivos legais apresentados encontra-se expressamente a obrigação do afeto nas relações familiares em que seu descumprimento pudesse gerar a expectativa de direito indenizatório.


4 Projeto de Lei do Senado 700/2007

Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012) afirmam que em razão do grande número de ações com pretensões indenizatórias relacionadas ao abandono afetivo nas relações paterno-filiais, que começaram a chegar ao Poder Judiciário no início da década passada, em 2007 o Senador carioca Marcelo Crivella apresentou Projeto de Lei (PLS 700/2007), no qual o congressista pretende introduzir alterações na lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) para caracterizar como ilícito cível e criminal a conduta do genitor que abandonar moralmente o próprio filho.

O referido Projeto de Lei 700/2007 visa a introduzir os parágrafos 2º e 3º ao artigo 4º da lei 8.069, criando assim a obrigação jurídica dos genitores de prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento (Crivella, 2007)

O Projeto de Lei traz ainda a previsão de alteração dos artigos 5º, 22º, 24º, 56º, 58º, 129º e 130º do ECA. Seria acrescentado o parágrafo único ao artigo 5° fazendo previsão de conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções, a ação ou omissão que ofenda o direito fundamental da criança, incluindo o abandono moral (Crivella, 2007).

Outra alteração seria no sentido de incluir entre os deveres dos pais a convivência e a assistência material e moral, além dos já previsto no texto original do art. 22 do ECA (Crivella, 2007).

O art. 24 da Lei 8069/90, embora previsto no Projeto de Lei 700/2007, não sofreria alteração substancial, cabendo ressalva apenas quanto ao termo utilizado no Projeto, que se refere ainda ao “pátrio poder”, tendo sido este termo superado e substituído no texto do art. 24 pelo termo “poder familiar” por força da alteração promovida pela lei 12.010/2009. (CRIVELLA, 2007).

Ao artigo 56 do ECA seria acrescentado o inciso IV com a imposição aos dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental o dever de comunicar aos Conselhos Tutelares todos os casos de negligência, abuso ou abandono na forma prevista nos artigos 4º e 5º do mencionado Estatuto que tomassem conhecimento. (CRIVELLA, 2007).

Quanto ao artigo 58, a alteração prevista seria o acréscimo do dever de respeitar os valores morais e éticos próprios do contexto social da criança e do adolescente, além dos valores já previstos neste artigo (Crivella, 2007)

No artigo 129 do ECA, são elencadas medidas aplicáveis aos pais e responsáveis, estabelecendo o parágrafo único do mesmo artigo que nos casos de aplicação das medidas previstas no incisos IX e X, que tratam da destituição de tutela e suspensão ou destituição do poder familiar, observar-se-ão as previsões dos artigos 23 e 24. Com a alteração planejada pelo Projeto de Lei 700/2007 o mencionado parágrafo único passaria a impor também a previsão do artigo 22 da Lei 8.069/90. (CRIVELLA, 2007).  

No que tange ao artigo 130 da Lei 8069/90, a alteração pretendida pelo Projeto de Lei 700/2007 introduziria a possibilidade de a autoridade judiciária poder, como medida cautelar, determinar o afastamento do agressor ou responsável da moradia comum em razão da negligência. No texto original do artigo 130 prevê a possibilidade de tal medida apenas em casos de maus-tratos, opressão ou abuso sexual. (CRIVELLA, 2007).

Finalmente, o Projeto de Lei 700/2007 pretende alterar o ECA no sentido de acrescentar o artigo 232-A na referida lei. Este artigo viria criminalizar a conduta dos pais que, sem justa causa, deixassem de prestar assistência moral ao filho menor de dezoito anos, nos termos dos parágrafos 2º e 3º do art. 4º da Lei 8.069/90. Tal conduta seria punida com pena cominada de detenção de um a seis meses. (CRIVELLA, 2007).


5 JURISPRUDÊNCIAS A RESPEITO DO TEMA

Considerando-se a ausência de uma previsão legal expressa quanto à obrigação do afeto nas relações familiares e diante às inúmeras ações pleiteando indenização em razão do abandono afetivo, verifica-se a complexidade do tema encontrando-se julgados tanto que reconhecem a possibilidade de responsabilização civil desta natureza quanto que refutam tal responsabilidade.

Entre as primeiras decisões sobre o tema encontra-se a proferida em 2003, na Comarca de Capão da Canoa, no Estado do Rio Grande do Sul, pelo juiz Mario Romano Maggioni, que condenou um réu ao pagamento de uma indenização no valor de 200 salários mínimos (R$ 48.000,00 à época) para a filha que alegava ter sido abandonada afetiva e moralmente. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul processo cível nº 1030012032-0 (RIO GRANDE DO SUL, 2003).   

A decisão foi fundamentada com base nos deveres inerentes aos genitores, os quais estão previstos no artigo 22 do ECA (Lei 8.069/90), alegando que incumbe aos genitores o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. Pondera ainda o magistrado:

A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul processo cível nº 1030012032-0 (RIO GRANDE DO SUL, 2003).

Nesse segmento, a decisão da ministra do STJ Nancy Andrighi no recurso especial n° 1.159242 foi também pela possibilidade da indenização como pode ser visto na ementa:

EMENTA CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP 2009/0193701-9)

Segundo a relatora do Recurso Especial, Ministra Nancy Andrighi, “Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família” (ANDRIGHI, 2012, RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242)

Assevera, ainda, a ministra Andrighi (2012), que comprovar o descumprimento do dever legal de cuidado com os filhos é assumir que um ato ilícito foi praticado por omissão e que essa situação gera a possibilidade de se pleitear indenização por danos morais. Além disso, aponta a existência de um núcleo mínimo de cuidados que garantem aos filhos uma formação psicológica e uma inserção social.

Entendimento contrário se verifica no acórdão em apelação proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ano de 2012 (1.0105.05.145297-4/001) tendo como relator o Desembargador Gutemberg da Mota e Silva:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS - ABANONO AFETIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL - REQUISITOS -REQUISITOS - INEXISTÊNCIA - DANOS MATERIAIS - COBRANÇA RETROATIVA - DESCABIMENTO. - Tratando-se de responsabilidade civil, haverá dever de indenizar se comprovados o dano, a culpa e o nexo causal entre eles. - O abandono afetivo dos pais em relação ao filho, embora moralmente condenável, não caracteriza dano passível de reparação pecuniária. - É descabida a cobrança por danos materiais decorrentes de pensão alimentícia relativa a período anterior à data da fixação dos alimentos na ação própria. RECURSO NÃO PROVIDO. APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0105.05.145297-4/001

O relator da decisão observou que não se encontravam presentes os pressupostos da responsabilidade civil. Argumentou ainda, que a ausência paterna é lamentável e causa mágoas e ressentimentos, mas não tem o condão de caracterizar o dever de indenizar (Des. Gutemberg da Mota e Silva, 2012)

Corrobora este entendimento a decisão proferida pela Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, na apelação civil n° 70048544472, conforme se lê na ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABALO EMOCIONAL PELA AUSÊNCIA DO PAI. Incabível a reparação por dano moral, porquanto o mero distanciamento afetivo entre pai e filho não constitui situação capaz de gerar dano moral. Ademais, inexistindo certeza da paternidade até a realização do exame de DNA, não detinha obrigação de amparo moral ao filho, inexistente dano psíquico passível de indenização. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70048544472, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 25/07/2012)

Ao encontro desse entendimento, tem-se a decisão do relator Mário-zam Belmiro, da 2° Cível do Tribunal de Justiça do distrito Federal e Territórios. O voto do relator na EIC 20120110447605-DF foi justificado pelo fato da existência do pouco convívio do filho com o seu genitor não ser suficiente para, sozinho, caracterizar o desamparo e legitimar a pretensão indenizatória. Conforme ementa a seguir:

EMENTA - CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. 1. A indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo somente é viável quando há um descaso, uma rejeição, um desprezo pela pessoa por parte do ascendente, aliado ao fato de acarretar danos psicológicos em razão dessa conduta. 2. O fato de existir pouco convívio com seu genitor não é suficiente, por si só, a caracterizar o desamparo emocional a legitimar a pretensão indenizatória. 3. Embargos desprovidos. (TJ-DF – EIC: 2012110447605, RELATOR: MÁRIO-ZAM BELMIRO, Data de julgamento: 26/01/2015, 2° Cível , Data da publicação no DJE: 10/02/82015. : 98)

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao julgar a apelação cível nº 10647150132155001 decidiu pela impossibilidade da concessão de indenização por dano moral em razão abandono afetivo. A ementa foi assim publicada pelo tribunal:

EMENTA - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANO MORAL – ABANDONO AFETIVO – IMPOSSIBILIDADE- Por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o artigo 486 do CC, que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano possível de reparação. (TJ-MG – AC 10647150132155001 MG – RELATOR: Saldanha da Fonseca, Data do Julgamento: 10/05/2017, Câmaras Cíveis/12ª CÂMARA CÍVEL, Data da Publicação: 15/05/2017)

O voto do Desembargador Domingos Coelho acompanhou o relator e, segundo suas palavras:

Portanto, não pode o Judiciário compelir alguém a um relacionamento afetivo e nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a reparação por dano moral pleiteada. Assim, por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC (art. 159 do CC/16), que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação. No caso de abandono afetivo, como dano passível de reparação, escapa ao Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a reparação por dano moral pleiteada. (FONSECA, DESEMBARGADOR, TJ-MG – AC 10647150132155001)

Ponderou ainda, o referido desembargador que:

É necessário evitar eventual abuso por parte de filhos que, insatisfeitos com episódios específicos de sua criação, pleiteiam indenização por danos supostamente sofridos. Igual premissa vale para ações de filhos menores que apenas retratam o sentimento de um dos pais que preferem cultivar mágoa de um relacionamento desfeito, esquecendo-se de que a vida proporciona outras perspectivas, inclusive em relação ao filho. O apelante, pelo que consta da inicial, apenas se queixa da dificuldade de recebimento da pensão mensal, o que não é o bastante em si para configurar um abandono afetivo. (FONSECA, DESEMBARGADOR, TJ-MG – AC 10647150132155001)

Ao analisar as jurisprudências citadas verifica-se que, embora reconhecida a responsabilidade civil no direito de família, as decisões relativas à possibilidade de indenização por abandono afetivo são muito divergentes. Tal situação emana da complexidade do tema que envolve áreas tão sensíveis como o sentimento humano.


6 CONCLUSÃO

A família passou por sensíveis mudanças, abandonando o paradigma patriarcal e chegando ao atual modelo de família eudemonista, ou seja, aquela que busca a realização plena de seus membros.  

A CF/88 ratificou o que de fato já existia na sociedade, ampliando o conceito de família e protegendo, de forma igualitária, todos os seus. Os princípios constitucionais do Direito de Família produziram expressiva evolução ao ordenamento jurídico brasileiro, principalmente ao reconhecer o pluralismo familiar existente no plano real, em virtude das novas espécies de família que se constituíram ao longo do tempo.

A nova concepção do Direito de Família Civil-Constitucional abarca valores e princípios mais holistas, abrangendo direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, isonomia, ao reafirmar a igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher e o tratamento jurídico igualitário dos filhos, a solidariedade social e a afetividade que, nesse cenário, adquire dimensão jurídica.

A afetividade passou a ser a base da relação familiar, possibilitando a consolidação dos laços sentimentais recíprocos e o respeito entre seus membros. A afetividade entre pais e filhos é amparada pelo poder familiar, sendo este o conjunto de deveres impostos aos genitores com o intuito de proteger e garantir pleno desenvolvimento da prole. Cabe aos pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos e o cumprimento desses deveres deve-se revestir do principio da afetividade.

A ausência do afeto nas relações entre pais e filhos propiciou o surgimento das discussões relativas à responsabilidade civil referentes a possíveis danos morais causados pelo abandono afetivo.

Não seria prudente rechaçar completamente a possibilidade da concessão de indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo. Indubitável que o atual conceito de família eudemonista e o reconhecimento dos princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família são de extrema importância na garantia de um desenvolvimento físico e psicológico de todos os membros familiares, em especial das crianças e adolescentes.

Entretanto, não há previsão legal que imponha a um indivíduo manifestar amor por outro. Dessa forma, a não demonstração de afeto não se enquadra como ato ilícito, conforme prevê o artigo 186 do Código Civil, para gerar uma pretensão de indenização.

Como reflexo da omissão dos genitores quanto aos seus deveres previamente estabelecidos em relação aos filhos, já há previsão de suspensão ou perda do poder familiar conforme expresso nos artigos 1.637 e 1.638 do Código Civil.

Há ainda, a probabilidade de um prejuízo maior para a relação pai e filho, com a imposição de um de um sentimento que deve surgir espontaneamente. Outro fator a se considerar seria o possível distanciamento entre esses entes familiares, em razão da precificação do amor nas relações familiares.

Como pôde ser observado no trabalho apresentado, o entendimento jurisprudencial atual é no sentido de não conceder a indenização, tendo por base a não verificação da responsabilidade civil e a preservação de um estreitamento dos laços familiares, ainda que longínquos.  

Faz-se necessária a conscientização dos genitores para uma paternidade responsável e que garanta, efetivamente, o pleno desenvolvimento físico e psicológico, mas que isso aconteça com respeito ao ordenamento jurídico pátrio e com a preservação da liberdade pessoal, não sendo ninguém obrigado a amar outrem ou ser taxado pecuniariamente por não fazê-lo, desde que cumpra com as imposições legalmente previstas.


REFERENCIAS

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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 31 out. 2017.

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, volume 4: Responsabilidade Civil. 16° Ed. São Paulo. Atlas, 2016


Autores

  • Raquel Santana Rabelo

    Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2008). Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009). Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa (2017). Professora na Faculdade Kennedy de Minas Gerais de Direito Econômico, Processo Civil IV , Direitos Humanos e Teoria Geral do Processo. Professora de PIN III no curso de Administração da Faculdade Promove. Professora de Ciências Sociais e Etnia no curso de Engenharia de Produção. Professora orientadora do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Promove e da Faculdade Kennedy de Minas Gerais. Mediadora Voluntária do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

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  • Afrânio Adriano de Souza

    Afrânio Adriano de Souza

    Graduado em Direito pelas Faculdades Kennedy de Minas Gerais.

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