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Raízes e desenvolvimento da titularidade do jus gentium

Raízes e desenvolvimento da titularidade do jus gentium

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O século XX e a globalização trouxeram nova dinâmica para o direito internacional, retomando reclames do passado. Conheça as raízes históricas do jus gentium e conheça movimentos de restrição e extensão do rol de suas personalidades jurídicas na nova realidade mundial.

RESUMO: A imputação do fenômeno jurídico, possível a toda a sociabilidade humana, permite definir um conjunto de garantias que seja comum aos indivíduos: o Direito das Gentes. O caráter diferencial desse direito é a sua universalidade, contrastando com o jus civile dos Estados. Esta abrangência exigiu a busca por fundamentos em bases naturalistas; todavia, o advento de uma sociedade internacional interestados suscitou o acordo das vontades como base adequada para um direito comum, o que coube ser trabalhado pelo positivismo jurídico. O século XX e a globalização trouxeram uma nova dinâmica para o Direito Internacional, retomando reclames do passado. O presente texto busca resgatar as raízes históricas de jus gentium e ilustrar os movimentos de restrição e extensão do rol de suas personalidades jurídicas. 

Palavras-Chave: Jus Gentium. Direito Internacional. Capacidade Jurídica.


INTRODUÇÃO 

O debate acerca da dimensão do indivíduo está no cerne das questões atuais do Direito Internacional. O contexto histórico de violações de direitos humanos traz a imperiosa necessidade de que se criem instrumentos globais de proteção, que não precisem da disposição egoística dos Estados para efetivar-se.

A descoberta do caminho adequado para tais necessidades não pode deixar de investigar as raízes históricas do Direito Internacional, que em sua forma clássica romana não objetivava regular as relações entre Estados, mas entre indivíduos. A alçada do Direito Internacional contemporâneo a um paradigma mais centrado no indivíduo envolve debater a própria essência do seu fenômeno, e as respostas não podem ser encontradas longe da política ou da Filosofia do Direito.

Como eram, então, reguladas as relações interpessoais por um Direito Cosmopolita na Antiguidade? Como emergiu o atual modelo do Direito Internacional Público, baseado nas convenções interestatais? O presente trabalho, por sua brevidade, não pretende responder à totalidade destas indagações, mas delinear caminhos para a compreensão do fenômeno.


1. JUS GENTIUM: GÊNESE ROMANA

Jus gentium é uma expressão própria da tradição jurídica romana.  É um direito que emana de uma razão natural (naturalis ratio) e aplica-se a todas as gentes. Equivale ao direito natural dos gregos por ser universal e apreensível; não deve, portanto, ser confundido com o termo jus naturale, cunhado posteriormente. Sendo assim, o Direito Internacional da Humanidade surge reconhecendo os indivíduos particulares como sujeitos de direito, estes enquanto alvo da regulamentação produzida (AGRA, 2014, p.142).

No Direito Romano, pode-se destacar dois sistemas de classificação para os sistemas legais: aquela empreendida por Gaio, e, décadas depois, a elaborada por Ulpiano. O primeiro toma uma classificação bipartite do Direito - jus gentium e jus civile. Merece reprodução integral o célebre parágrafo de suas Institutas:

El Derecho, en todos los pueblos regidos por leyes y por costumbres  es en parte propio y peculiar de ellos y en parte comun á todos los hombres. Por eso el derecho que cada pueblo se dá á sí mismo es propio suyo, y se llama derecho civil, cual si dijéramos derecho de la ciudad. Aquel, empero, que la razon natural ha constituido entre los hombres , lo observan igualmente todos los pueblos y se llama derecho de gentes, esto es , derecho comun á todas lás naciones. De consiguiente,' el pueblo romano reconoce á la vez un derecho que le es propio, y un derecho comun á todos los hombres; lo cual espondremos con la debida distincion en los respectivos lugares. (GAIO, 1845, p.11)

O jurisconsulto Ulpiano (150 – 228), por sua vez, é o responsável por introduzir a concepção de jus naturale, que se confundirá e absorverá o sentido de jus gentium ao longo dos séculos posteriores, marcados pela decadência da civilização romana. Todavia, o jus naturale correspondia a uma lei instintiva comum a homens e animais, nula em sentido normativo (MATOS,2008,p.312).

A Roma Antiga desenvolveu-se agrícola, patriarcal e militarista. A unidade da Monarquia Romana deriva das conquistas empreendidas por esta cidade-estado (“civitas”) às tribos da Península Itálica, sem, contudo, absorver um arbítrio absoluto sobre elas. Ao direito vigente nas relações entre os patriarcas que compunham as diversas comunidades gentílicas da Itália, denominava-se “jus gentilicum’. O costume reconhecia obrigações comuns aos chefes locais de poder, emanadas dos laços sanguíneos ali comungados.

Face ao contexto histórico, a questão que se suscita é a seguinte: como uma sociedade tão xenófoba e militarista como a romana foi capaz de proclamar um Direito universal e que lhes igualava a outros povos, em termos de objetivar a regulação? Aduzem-se aqui dois fatores: a necessidade de e normatizar as complexas relações de Roma com os povos vencidos e a penetração da filosofia estoica entre as mentes mais influentes do Estado.

Apesar do “orgulho” característico daquela sociedade, houve uma época na história do povo romano (fins da República) em que uma postura prático-pragmática e relacional substituiu a moral rígida (BURNS, 1976). A expansão inédita exigiu - e a ausência de inimigos externos à altura em influência e complexidade organizacional permitiu - um apaziguamento na relação entre os itálicos e os conquistados a partir da adoção de um critério comum e “justo” para as suas relações jurídicas, critério este independente das arbitrariedades do legislador.

O jus gentium operou entre os cidadãos da República e do Império baseado em três princípios: a boa-fé das relações jurídicas (bona fide), a equidade entre as partes (aequitas) e a prevalência do consenso entre as vontades num contrato. Trata-se de uma oposição radical à rigidez e ao formalismo do jus civile, imperioso nas relações entre cives e entre agentes públicos. O jus gentium, por sua vez, valia para os contratos entre cives e peregrini (estrangeiros) e para os peregrini entre si. (BORGES DE MACEDO, 2010, p.5).

O papel da filosofia nesta construção jurídica cabe ao estoicismo, corrente própria do Helenismo. Preocupa-se com a questão da felicidade, lançada por Aristóteles ainda na tradição filosófica anterior, a antropológica[1]. Para tal, os estoicos determinam uma conexão entre a natureza das coisas (physis) e as atitudes humanas, estabelecendo um ethos de proposta bem semelhante à do direito natural; professam ainda a liberdade de pensamento e a igualdade entre os homens, esta última fundamental para entender a aceitação do jus gentium (MORRISSON, 2006, p.61) (MATOS, 2008, p.320). Os estoicos (do grego stoa, “portal” ou “pórtico”, onde comumente reuniam-se os pensadores e seus discípulos) não são dualistas; é a partir da unidade apontada entre natureza e vida prática que pode a práxis humana orientar-se até o equilíbrio e a tranquilidade. Suas ideias atingem Roma após a desintegração da Macedônia de Alexandre e a subsequente conquista de seus domínios pelos latinos; são expoentes do estoicismo nesta cultura Cícero (106-43 a.C) Sêneca (4a.C – 65 d.C), o imperador Marco Aurélio (161-180 ) e o jurisconsulto Ulpiano .

Passa-se agora a investigar, entre os autores e na história das ideias jurídicas, quais etapas levaram o conceito romano de jus gentium a ser substituído pela concepção moderna de direito internacional. Para Borges de Macedo (2015), “o direito internacional surge somente quando se torna autônomo do direito natural (ainda que embasado nele) e versa sobre institutos verdadeiramente internacionais (não institutos de direito interno que existem em diversos países)”.

Durante a Idade Média, o advento de uma forte tradição jusnaturalista de base teológica não impediu que Isidoro de Sevilha (560 – 636), Doutor da Igreja, definisse jus gentium como direito restrito aos príncipes. Não é universal e é particularizável, abrindo caminho para a autonomia deste ramo do direito em relação à ratio naturalis. Seu parágrafo é tão célebre quanto o de Gaio:

O direito das gentes trata da ocupação, da edificação e da fortificação de castelos e cidades, da guerra, dos cativos de guerra, da escravidão, da recuperação de direitos pelo postliminium, dos acordos de paz, das tréguas, da inviolabilidade das embaixadas, e da proibição do casamento entre pessoas de religiões diferentes. E é assim o direito das gentes, pois é a lei dos usos de todas as gentes.

A conquista do continente Americano e a exploração de sua população nativa pelos hispânicos foi o pano de fundo que despertou, entre os catedráticos de teologia de Salamanca, um retorno às discussões acerca do antigo jus gentium romano. Notadamente a filosofia de São Tomás de Aquino, e, secundariamente, o nominalismo de Ockham compõem a base ideológica sobre a qual Francisco de Vitoria e Francisco Suárez edificarão o resgate histórico do Direito das Gentes (BUCCI, 2014, p.53-56).

Truyol y Serra (2007, p.86) afirma que Francisco de Vitoria (1483-1546) desempenhou, no mundo jurídico-internacional, papel análogo ao de Tomás de Aquino no mundo jurídico-político: promover uma secularização e humanização ao admitir e trabalhar uma filosofia distinta da teologia. A concepção-chave na teoria de Vitoria é o totus orbis, a existência de uma comunidade global que supera os limites da Cristandade. Ele recupera o sentido atribuído por Gaio ao jus gentium, contudo, antecipa, junto com o seu discípulo Francisco Suárez, a ideia de um jus inter gentes, em que os sujeitos de Direito podem ser agrupamentos e não indivíduos singulares.

Deste núcleo axiológico tomista, derivam duas ideias: a prescrição daquele direito sobre todas as gentes e governos, em suma um jus cogens, e o direito natural de interação derivado do contato natural entre os povos, jus communicationis. Pelo primeiro conceito, Vitoria reconhece a igualdade entre espanhóis e indígenas e as garantias destes últimos como sujeitos de jus gentium, lança as bases para o princípio de que o Direito das Gentes deve prevalecer sobre a vontade dos Estados; todavia, legitima, pelo jus communicationis, várias ações empreendidas pelo projeto metropolitano (BUCCI, 2014,p.57) .

Francisco Suárez (1548 – 1617), granadino e escolástico voluntarista, é discípulo de Francisco de Vitoria. Deve-se a ele a distinção no seio do jus gentium entre jus intra gentes e jus inter gentes. Este último deve ser o direito internacional por excelência, cuja única fonte reside no costume internacional[2]. É o “ordenamento jurídico que regula as relações dos Estados como tais entre si” (TRUYOL Y SERRA, 2007, p.180), enquanto a outra categoria é bem mais abstrata. O jus intra gentes de Suárez é uma comunidade coincidente de direitos entre os ordenamentos jurídicos dos variados estados.

Cabe aqui uma ressalva com relação à teoria de Suárez e à concepção romana. O jus gentium romano era, de fato, um direito civil cosmopolita, fundamentado e aplicável para, e entre, os mais diferentes povos. O jus intra gentes de Suárez, todavia, é uma coincidência não vinculativa, sujeita a alteração parcial pela vontade de cada Estado, enquanto o jus inter gentes (passemos a chamar simplesmente de jus gentium) é positivo, vinculativo, histórico e só se altera totalmente por um “novo consenso entre povos” (BORGES DE MACEDO, 2014, p.21).

Roma teria sido, portanto, uma escola de jus intra gentes? De fato, a tradição romana toma jus gentium como um Direito Privado (desse modo, englobando diretamente os indivíduos). Contudo, a peculiaridade daquela civilização, única em seu tempo em abrangência política e em sistema jurídico, tornou os seus institutos praticamente universais sobre o mundo conhecido, constituindo um ordenamento muito mais concreto que o jus intra gentes suareziano.


2. O DIREITO DAS NAÇÕES

A ausência de propriedade normativa do jus intra gentes[3] em Suárez não pode ser compreendida à parte do processo político do século XVII. O Doutor Exímio vivia no mais poderoso reino do sistema de Estados europeus que ascendia. A Respublica Christiana - ou qualquer ideia de monismo político semelhante - estava em claro declínio diante da raison d’état do Cardeal Richelieu (BORGES DE MACEDO, 2014, p.8)[4]. A tradição jurídica romana que cunhou jus gentium não vislumbrava, e logo não precisou pensar sobre, povos com instituições análogas ao Estado da coisa romana e capaz de equiparar seu poder. Henry Kissinger define este processo de secularização e racionalização da política interestatal nos seguintes termos:

“Europe was thrown into balance-of-power politics when its first choice, the medieval dream of universal empire, collapsed and a host of states of more or less equal strenght arose from the ashes of that ancient aspiration” (KISSINGER, 1994, p.20)

Os juristas, a partir da Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648) e dos acordos de paz da Westphalia (1648), adaptaram-se ao modelo de sociedade internacional anárquica que se evidenciava, com Estados reconhecendo uma horizontalidade entre suas soberanias e buscando a consecução de seus interesses:

“In the world inaugurated by Richelieu, states were no longer restrained by the pretense of a moral code. If the good of the state was the highest value, the duty od the ruler was the aggrandizement and promotion of his glory.” (KISSINGER, 1994, p.66)

Um pensador alinhado a essa nova disposição da sociedade internacional foi o inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679). Como nenhum de seus predecessores, rompe claramente com a tradição escolástica e grociana, ao restringir pela expressão britânica Law of Nations o direito à dinâmica interestatal, distanciando sensivelmente de jus gentium. Todavia, o Direito das Nações não deixa de ser equacionado ao direito natural[5]. Hobbes é o pai da ideia de “anarquia internacional” - os Estados atuam na liberdade de suas vontades - oriunda da ausência de um poder superior às sociedades políticas.

Hugo Grócio (1583 – 1645), holandês radicado na França, é contemporâneo a Thomas Hobbes. O debate entre as visões de ambos acerca da sociedade internacional faz com que muitos os enquadrem como os percursores do idealismo e do realismo, respectivamente, como paradigmas para as relações internacionais. Grócio foi responsável por secularizar o direito natural em meio às guerras religiosas europeias do século XVII.

O jurista de Delft edificou sua teoria da sociedade internacional sobre a base do estoicismo e sob a influência de Suárez. Do Pórtico depreende-se sua visão da igualdade entre os homens, solidificada na existência de fato de uma grande comunidade internacional. Do Doutor Exímio, observa-se a enfim consolidação da concepção de sistema internacional como o conjunto de Estados soberanos (summa potestas)[6]. Todavia, esses Estados necessitam estar em consonância a princípios da “justa razão”, emanados da raiz natural do jus gentium.

Grócio enxerga o pacta sunt servanda[7] como o eixo sustentador de todo o Direito Internacional Positivo. Considera, para além dos costumes, os tratados como fonte de jus gentium – é o reconhecimento do direito que se fundamenta pelo consenso entre as vontades das gentes[8].   

Ele foi o compilador de institutos que seriam aplicados na Europa por toda uma era, e seus discípulos buscaram conciliar o Direito Natural à vontade e ao consenso entre a “Família das Nações”. Estes dois últimos elementos, por sua vez, são também base da doutrina positivista no Direito Internacional, que apesar de surgir ainda no século XVII, consolida-se apenas na metade final do XIX.

Os dois séculos que sucederam a Paz de Westphalia (1648) marcaram a conquista da monopolização da força pelo Estado soberano, dentro de um sistema internacional horizontalizado. A restrição da titularidade do Direito das Nações (expressão originalmente britânica) aos Estados é fruto deste processo e antecedeu a própria consolidação do positivismo jurídico, vide a cunhagem do termo International Law por Jeremy Bentham ainda em 1779.

O desenvolvimento da sociedade interestatal reforçou o papel prático da Diplomacia; para Daniel Mangabeira Dantas (2014), “a diplomacia se aproximava mais do Direito Positivo enquanto os acadêmicos inclinavam-se mais para o Direito Natural”. Esta última tendência - vista aqui em Vitoria, Suarez, Hobbes e Grócio mas também representada por Samuel von Pufendorf (1632 – 1694) é revertida pelo trabalho dos positivistas: Samuel Rachel (1628 – 1691), Cornelius van Bynkershoek (1673 – 1743), Christian Wolff (1679-1754) e Georg Friedrich von Martens (1756-1821), entre outros.

Para John Austin (1790 – 1859), aquilo que naturalistas e grocianos chamaram de “Direito das Gentes” é, na verdade, “moral internacional positiva” (MORRISSON, 2006, p.283). Retoma-se o argumento hobbesiano da inexistência de coação externa capaz de consolidar um “direito” no plano interestatal. Este ceticismo, incorporado também por Kant[9], é a base para a escola positivista clássica do século XIX. Nesse diapasão, Lassa F. L. Oppenheim (1858 – 1919) foi um grande sistematizador do Direito Internacional Público, que junto aos seus numerosos seguidores (Braz de Sousa Arruda, no Brasil) são inflexíveis quanto à admissão de um sujeito ativo de Direito Internacional que não fosse o Estado soberano.


3. SUPRANACIONALIDADE: TENDÊNCIA CONTEMPORÂNEA

Assim como a Paz de Westphalia (1648) pontuou uma era de transformações que reconheceram apenas aos Estados a capacidade legal no plano internacional, os eventos da primeira metade do século XX constituem um segundo momento-chave na história deste ramo do Direito. Notadamente, dois fatores trarão a noção de supranacionalidade e arranjos para coesão em meio a um sistema interestatal descentralizado: as tragédias humanitárias das duas Guerras Mundiais e o advento dos organismos internacionais.

Estes esforços primários, contudo, ainda não seriam capazes de cessar a catástrofe da civilização conduzida por Estados movidos a ideologias. As Nações Unidas vieram para corrigir os erros políticos de suas antecessoras, e proclamaram, entre outras célebres, a Declaração Internacional dos Direitos do Homem. Deu-se exatos três séculos depois dos acordos da Westphalia: enquanto estes arranjaram um mundo movido pela vontade dos soberanos, aquela formulou princípios supranacionais fundamentados, como defende Bobbio, no consenso entre os povos.  

O positivismo legalista - vigente como concepção majoritária acerca do Direito - assistiu a soberanos legítimos desencadearem agressões inéditas à civilização, tudo isto fruto de um sistema horizontal baseado na livre-vontade dos Estados. Nesse diapasão, apelou-se para a construção de organismos capazes de limitar a ação desses Estados; concedeu-se, portanto, obrigações aos entes e direitos aos indivíduos no seio da recém-criada Sociedade das Nações. O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, predecessor da Corte Internacional de Justiça, foi criado já em 1921. Estes esforços primários não foram capazes de cessar a catástrofe da civilização conduzida por Estados: todo o drama do nazi-fascismo se deu em conformidade estrita às leis positivas.

 As Nações Unidas vieram para corrigir os erros políticos das instituições análogas, e proclamaram, entre outras célebres, a Declaração Internacional dos Direitos do Homem. Isto se deu exatos três séculos após da paz de 1648: enquanto esta arranjou um mundo movido pela vontade dos soberanos, aquela estabeleceu princípios supranacionais fundamentados no consenso entre os povos (BOBBIO, 2004, p.24). O Direito Natural, universalista, predominante de modo esmagador na trajetória humana, decaiu com a ascensão do sistema internacional europeu e deu lugar a um Direito Positivo Estatalista. A partir dos anos 1940, a tendência é produzir e efetivar um Direito Positivo Universal. Este descarta a incerteza jusnaturalista e  tenta uma fundamentação no acordo de vontades – redenção grociana.

Apesar do lançamento desta tendência, que a despeito de todos os percalços do processo político parece irreversível, muitas entidades não-Estatais não conseguiram ainda se consolidar como sujeitos ativos de Direito Internacional. Grandes corporações e indivíduos, por exemplo, tornaram-se depositários de normas legais internacionais; todavia, estes sujeitos não são plenamente capazes de desempenhar um papel ativo na regulação mundial por meio desta personalidade jurídica, a não ser através de institutos como a Arbitragem, quando na resolução de disputas entre Estados e investidores estrangeiros.

O Direito Positivo Universal, parâmetro para um jus gentium contemporâneo, restringe-se aos Estados e àquilo criado por eles para exercer o trabalho normativo: as convenções, o costume e as organizações internacionais.  A dinâmica do sistema internacional, antes vista e aqui retratada sob a ótica de célebres autores, agora é declarada pelos seus principais atores.

A despeito da ascensão das Nações Unidas e dos sistemas internacionais de Justiça, violações aos direitos humanos persistem, muitas vezes ao arrepio das diretivas destas organizações internacionais. Este é o argumento daqueles que buscam estender aos indivíduos o caráter de sujeito de Direito Internacional. Todavia, este paradigma parece mais um “dever ser” do que um fato empírico, pois até quando pessoas e empresas podem promover ações nos tribunais internacionais, isto ocorre “em virtude de um compromisso estatal tópico”. (REZEK, 2002, p.147). Do mesmo modo, os deveres impostos pelo Direito Internacional Humanitário, por exemplo, somente constituem “direito” (norma e sanção vinculante) quando são vigentes no ordenamento interno, ou, como no caso do Direito Penal Internacional, subsidiários a este.

Entre os doutrinadores nacionais, Valério Mazzuoli entende que o debate contemporâneo não deve ser acerca do rol das pessoas no Direito Internacional. Indivíduos, corporações e entidades não-governamentais possuem personalidade jurídica, pois outra não é a finalidade do Direito senão abrange-las para regulá-las (MAZZUOLI, 2015, p.471). O cerne da questão está em sua capacidade jurídica, sendo esta, conforme a doutrina civil, a medida da personalidade. Francisco Rezek já não reconhece “personalidade” propriamente dita nessas entidades:

“Não têm personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas. A proposição, hoje frequente, do indivíduo como sujeito de direito das gentes pretende fundar-se na assertiva de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas comuns, ou lhes impõem deveres. É preciso lembrar, porém, que os indivíduos – diversamente dos Estados e das organizações – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional (...)”. (REZEK, 2002, p.146).

A globalização econômica suscitou alguma mudança no âmbito da capacidade jurídica das empresas. Merece destaque a instauração de juízos arbitrais entre empresas e Estados, nos litígios decorrentes de investimentos. A ascensão da capacidade legal destas evidencia a consolidação de uma supranacionalidade frente à soberania dos Estados, sancionando-os por um sistema que os próprios optaram por integrar. Ressalte-se ainda que o sistema da comunidade internacional atingiu um grau de abrangência que quase insta os Estados a, no mínimo, justificar suas decisões num Direito Universal Positivo, impondo-se este quase como um soft power. 

Outro fenômeno a observar-se ainda é a incorporação dos ditames do direito internacional no âmbito dos ordenamentos internos, efetivando, por exemplo, o acesso dos indivíduos não a uma justiça internacional propriamente dita, mas ao conteúdo material desta através dos instrumentos domésticos. A Jurisdição Universal, à parte dos sistemas de extradição, pode ser vista como o mais próximo existente de um sistema de jus gentium: ela é adotada em países como a Alemanha, França, Bélgica e Canadá, para crimes tipificados internacionalmente, sob o auspício do Estatuto de Roma. Na Alemanha, desde 2002 existe o “Völkerstrafgesetzbuch”, cuja tradução mais próxima seria a de “Código Criminal do Direito dos Povos”. Proclama o Artigo 1º deste diploma: “Esta lei aplica-se a todas as infracções penais contra o direito internacional descritas neste Ato e às infracções penais graves designadas no mesmo, mesmo quando a infracção for cometida no estrangeiro e não guarde qualquer relação com a Alemanha.”.


CONCLUSÃO

A multiplicação de institutos de jurisdição universal, ou mesmo de reconhecimento interno da eficácia de convenções internacionais, caso do Brasil, não pode ser vista como um fortalecimento do sistema autônomo do Direito Internacional. O dualismo ainda não foi superado como paradigma predominante na permeabilidade entre normas internas e internacionais, e este impasse guarda nexo com o próprio processo de legitimação destas últimas - o paradigma hobbesiano resiste imperioso. No Direito Internacional Privado, há avanços sensíveis no tocante à capacidade jurídica das empresas, mas a regulação efetiva entre entes privados, sem acesso a mecanismos como a arbitragem, encontra ainda óbices importantes nas fronteiras jurídicas. Todavia, em linha à profecia Cançado Trindade, parece-se caminhar para a construção de um novo jus gentium – a descoberta dos métodos adequados para tal será a árdua tarefa da doutrina e dos atores internacionais no século XXI.


REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BORGES DE MACEDO, Paulo Emílio V. O fundamento do Direito Internacional em Francisco Suárez. In: MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional Clássico e seu Fundamento. Belo Horizonte: Arraes, p. 8-28, 2014.

BORGES DE MACEDO, Paulo Emilio Vauthier. A Genealogia da Noção de Direito Internacional. Revistas da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro, n.18, p.1-35, 2010.

BUCCI, Daniela. O Direito Natural e o Universalismo para Francisco de Vitoria: Contribuições para a Construção do Direito Internacional Moderno. In: MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional Clássico e seu Fundamento. Belo Horizonte: Arraes, p. 47-61, 2014.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Humanização do Direito Internacional. 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

GAIO. Gaii Institutionem. La Instituta de Gayo. Madrid: Imprenta de la Sociedad Literaria y Tipografica, 1845.

GROCIO; Del derecho de la guerra y de la paz. Trad. Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid: Editorial Reus, 1925.

HOBBES. Elementos de Derecho natural y politico.Trad. D. Negro Pavón. Madrid: 1979.

KISSINGER, Henry. Diplomacy. 1st ed.New York: Simon & Schuster, 1994.

 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. O Pórtico e o Fórum: Diálogos e confluências entre o estoicismo e o Direito Romano Clássico. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v.98, p.295 – 336, jul. 2008.

MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

MORRISSON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao Pós-modernismo. 1ª ed. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso elementar. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia de la Filosofía del Derecho y del Estado: Del Renacimiento a Kant. 4ª ed. Madrid: Alianza Editorial S.A, 2007, v.2. 


Notas

[1] Sócrates inaugurou uma filosofia centrada nas questões humanas. O período de ouro da Filosofia - tempo dos sofistas, Platão e Aristóteles - coincide com o século de Péricles em Atenas, auge da democracia direta. Esta tradição clássica é, por isso, também chamada de “antropológica” ou “antropocêntrica”.

[2] “o autor não eleva o tratado À condição de fonte, porque, provavelmente, não estava familiarizado com a ideia de uma convenção multilateral. Os tratados, à época de Suárez, eram bilaterais e não se distinguiam, com muita clareza, dos contratos. Aos seus olhos, a única maneira possível de vincular todos – ou quase todos – os povos resumia-se ao costume.”. (BORGES DE MACEDO, 2014, p.19)

[3] Para Borges de Macedo (2008), “o direito internacional surge somente quando se torna autônomo do direito natural (ainda que embasado nele) e versa sobre institutos verdadeiramente internacionais (não institutos de direito interno que existem em diversos países)”.

[4] Primeiro-ministro de Luís XIII e autor do Testamento Político, estadista francês durante a Guerra dos Trinta Anos e um racionalista influenciado por Maquiavel. Apesar de ser um membro da Igreja Católica, compôs com nações protestantes para derrotar a Casa da Áustria (católica), evidenciando um novo paradigma nas relações internacionais: raison d’état.

[5] “lo que el derecho natural es entre hombre y hombre antes de constituirse la república, es después el derecho de gentes entre soberano y soberano”(HOBBES. Elementos de Derecho natural y politico.Trad. D. Negro Pavón, Madrid, 1979. In: TRUYOL Y SERRA, 2007, p.226)

[6] Também foi assinalada na obra final de Grócio a concepção suareziana de jus gentium como Direito Civil Cosmopolita (jus intra gentes): “Y civil-amplio es el derecho de gentes, esto es, el que recibió la fuerza ,de obligar de la voluntad de todos o de muchos pueblos. (...) Y se prueba este derecho de gentes de la misma manera que el civil no escrito, por el uso continuo y por el testimonio de los sabios.” (GROCIO,1925, p.60).

[7] Brocardo que designa o princípio da força obrigatória dos contratos.

[8] Norberto Bobbio afirma que a tradição jusnaturalista reconhece valores de três modos: pelo apelo à universalidade (natureza humana), pela autoevidência daquele juízo ou pelo consenso geral e amplo (consensum omnium gentium). (BOBBIO,2004, p.46)

[9] O filósofo antevê a consecução futura de um Estado universal (Volkerstaat, civitas gentium) acompanhado por uma Paz Perpétua entre os homens. Os povos, enquanto organizados em Estados, vivem livres e sujeitos sempre à guerra pela deficiência que caracteriza o Direito das Gentes (Volkerrecht). (TRUYOL Y SERRA, 2007, p.406)


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONDIM, Lucas. Raízes e desenvolvimento da titularidade do jus gentium. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5589, 20 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63458. Acesso em: 15 maio 2024.