BIOÉTICA E ESPORTE: uma análise da autonomia do atleta de alta performance.

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22/06/2021 às 16:51
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O presente ensaio aborda a temática do esporte e da Bioética, através da análise da autonomia dos atletas de alta performance, a partir das vulnerabilidades e a tomada de decisão.

Resumo

O presente ensaio, de forma objetiva, busca abordar a temática do esporte e da Bioética, através da análise da autonomia dos atletas de alta performance, a partir das vulnerabilidades e a tomada de decisão, sob possíveis influências externas, culminando na existência, (ou não) do consentimento livre e esclarecido.

 

 

Abstract

This essay, objectively, seeks to address the theme of sport and Bioethics, through the analysis of the autonomy of high-performance athletes, based on vulnerabilities and decision-making, under possible external influences, culminating in existence, (or no) of free and informed consent.

 

 

Palavras-chaves: Bioética – Autonomia – Vulnerabilidade – Atleta de alta performance.

 

Key words: Bioethics – Autonomy – Vulnerability – High performance athlete.

 

 

Introdução

 

Nas antigas palavras de Aristóteles, “o homem é um animal político[1], reflete que o homem é um ser social, um animal da polis (por isso político) e que só encontraria as condições necessárias a seu desenvolvimento na polis. Assim, a comunidade política seria requisito para a felicidade e a política desdobramento da própria Ética.

 

Tal fato se mostra de extrema importância para Bioética, eis que o pensamento ético também procura influenciar o processo de socialização, destacando métodos e consequências desejáveis para se atingir o bem.

 

A Bioética surge como corolário do conhecimento biológico, buscando o conhecimento a partir do sistema de valores. Embora se refira, frequentemente, aos problemas éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas, que tiveram grande desenvolvimento na segunda metade do século XX, vale ressaltar que a ciência tem, entre suas preocupações principais, a questão da autonomia do ser humano.

 

Dentro dessas perspectivas, podemos exemplificar com algumas indagações: que poderia dizer a Ética sobre o bem-estar da pessoa humana, sem atentar para a autonomia? Como atentar para os limites da ciência e tecnologia, sem ingressar nas questões da autodeterminação do sujeito?

 

Tais indagações põem na vida concreta os pontos de vista e significados de um corpo fisiológico. Somado a isso, o ser humano caracteriza-se pela sua construção integral e integrante, o que abrange além do aspecto social, as dimensões emocionais, intelectuais, culturais, históricas e antropológicas. Assim, a Bioética abrange tantos as situações do início e fim da vida (como o nascer e o morrer), bem como as infindáveis intervenções no curso da vida humana e não humana, incluindo o meio ambiente.

 

Sua interface com o esporte, principalmente com o atleta de alta performance, incide justamente na avaliação ética do manejo das tecnologias e biotecnologias voltadas ao desenvolvimento e aprimoramento do corpo humano, incluindo o uso da genética, e a autonomia do atleta a partir da análise da vulnerabilidade.

 

 

Histórico da Bioética

 

A preocupação ética com as práticas biológicas é antiga, remontando à origem da Medicina, com tratamento médico-científico.

 

Diego Gracia afirma que a Bioética surgiu por absoluta necessidade, a partir dos anos de 1950, consequência da revolução científica e técnica ocorrida nas ciências biológicas e médicas. O autor cita o descobrimento da biologia molecular durante os anos de 1950-1960 e o descobrimento do código genético durante os anos de 1960, que possibilitou o estabelecimento da recombinação do DNA, gerando a possibilidade de manipular a informação básica da vida.[2]

 

Assim, podes-se dizer que a Bioética surgiu como uma necessidade, eis que os avanços técnicos precisavam de limites e necessitavam ser questionados para compor o conhecimento científico e técnico com o saber moral. Exemplo disso são os dois eventos ocorridos entre os anos de 1930 e 1940, com a utilização bélica da bomba atômica e a experimentação médica nos campos de concentração durante o período nazista.

 

O vocábulo Bioética foi criado pelo filósofo alemão Fritz Jahr, pela junção de duas palavras gregas – bios, vida e ethos, comportamento – em seu artigo Bioethik, publicado na revista Kosmos em 1927. Para o filósofo alemão, a Bioética seria uma disciplina acadêmica, um princípio e uma virtude que, como tal, imporia obrigações morais em relação a todos os seres vivos.

 

A difusão do tema, entretanto, se deu através de Van Rensselaer Potter, com a obra Bioethic: Bridge to the Future, publicada em 1971. Potter propõe a construção de uma ponte, capaz de mediar as relações entre as Ciências e as Humanidades, e voltada para os problemas ambientais e as questões de saúde.

 

Ainda, em 1974, nos Estados Unidos, foi criada a Comissão Nacional para a Proteção dos Interesses Humanos de Biomédica e Pesquisa Comportamental que, quatro anos mais tarde, apresentou o relatório Belmont, com os princípios éticos básicos que norteiam a experimentação com seres humanos.

 

Assim, o termo Bioética adentrou em nosso vocabulário e nas práticas científicas, passando a ser obrigatório os comitês de ética em pesquisa, nas instituições de ensino e em institutos médicos, quando as pesquisas envolverem seres humanos[3], somado às questões de ética ecológica, com a relação entre o homem e o meio ambiente.

 

Bioética, portanto, que nasceu como a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da Biologia, avaliando suas implicações na sociedade e relações entre os homens e entre esses e outros seres vivos, ampliou sua esfera e abrange, hoje, dinâmicas que congregam estudos éticos na sua dimensão complexa[4], ultrapassando uma visão antropocêntrica, reducionista e linear.

 

Bioética, como forma de conhecimento aberto, permite investigação ampla, tendo sempre em consideração os valores éticos e servindo como instrumento intelectual de reflexão, de elaboração de critérios de orientação, bem como ponto de partida para a tomada de decisão.

 

Muitas vezes, partindo de análise de casos concretos pontuais e específicos, perpassa pelo papel da autonomia, responsabilidade e dignidade do ser humano, assim como se ocupa de questões como o avanço das biotecnologias e a interferência na vida humana e não humana.

 

 

Os aspectos do Esporte

 

Esporte é toda atividade física competitiva com regras e objetivos bem definidos. Os esportes podem ser praticados de forma individual ou coletiva, profissionalmente, de maneira recreativa ou para a melhoria da saúde. Os praticantes de esportes são chamados de esportistas, desportistas ou atletas.

 

O presente trabalho tem seu foco nos atletas de alta performance, que, de forma bastante objetiva, significa ter um condicionamento e preparo físico acima de qualquer média, por isso o condicionamento físico é determinante para o sucesso ou fracasso desse profissional.

 

Há que se ter em mente que os atletas – pessoas que buscam a realização pessoal e profissional no esporte – iniciam a carreia em tenra idade, haja vista que a sua formação se dá ainda quando na idade infantil.

 

Tal fato se mostra importante pelo fato de que, as crianças, por si só, são seres vulneráveis, eis que estão na fase de desenvolvimento físico, emocional, social e intelectual. Assim, já merecem uma proteção e um olhar diferenciado e cauteloso, recebedor, inclusive, de Proteção Integral pelas normas internacionais e internas do país.

 

Assim, quando inseridas no mundo do esporte, onde a busca pela excelência e perfeição parece não ter limites, há de se atentar para as pressões que são investidas sobre o atleta, seja através dos treinadores, da equipe, dos profissionais da saúde do esporte ou dos próprios pais.

 

Dentro desse contexto vale destacar os aportes financeiros que estão envolvidos em muitas modalidades esportivas, somado aos investimentos tecnológicos para melhoramento da performance e aprimoramento do corpo humano que, de igual forma, são causas de pressão externa não só para os jovens, mas sobre todos os atletas.

 

Na Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, surgiu a ideia do corpo perfeito conquistado por meio da atividade física. Assim, os homens - só eles tinham esse direito - corriam atrás de um corpo ágil, capaz de alcançar cada vez mais velocidade, força e destreza.

 

O surgimento da filosofia, no final do século 7 a.C., colocou as crenças religiosas tradicionais em segundo plano e enfatizou a importância da construção de um corpo perfeito. O modelo era o próprio homem, qualificado como "medida de todas as coisas". Platão sustentava que "ginástica e música, uma intercalada com a outra", eram a fórmula do equilíbrio entre corpo e espírito.

 

Assim, a excelência pela perfeição e obstinação pelo aprimoramento físico do corpo é uma cultura que atravessou séculos, incorporada ao esporte, assim como a longínqua trajetória dos Jogos Olímpicos.

 

De lá pra cá, além do treinamento exaustivo surgiram inúmeros avanços na ciência e na tecnologia capazes de modificar completamente a dinâmica do esporte.

Não se desprezam os benefícios gerados através dos avanços das pesquisas e das tecnologias, que trabalham para atingir melhores resultados, com redução de esforço. Porém, a linha tênue entre os benefícios e a objetificação do corpo e do atleta é o espaço de atuação da Bioética.

 

As engenharias genéticas, ou mesmo as tecnologias de suplementos alimentares e/ou itens de vestuários não podem colocar a saúde em segundo plano. Não há que se permitir que o corpo do atleta se torne campo de experimentação fisiológica, principalmente de pesquisa biomédica e testes de produtos para consumo (como roupas e acessórios, p ex.).

 

Esse é o exato momento em que se deve observar as possíveis relações de poder sobre o atleta, haja vista que a medicina do esporte deve ser utilizada para melhora na performance através da ciência do esporte, das substâncias químicas  e das tecnologias genéticas para o aprimoramento do atleta e não para manipulação genética, essa caracterizada como dooping genético[5].

 

Outro aspecto é a formação dos super atletas e o surgimento da eugenia[6] no esporte, ante a tamanha manipulação genética e “possibilidade” da criação de atletas desde sua concepção in vitro.

 

Ainda, o poder econômico de determinadas nações e patrocinadores, que aportam altos valores nas modalidades, são pontos de obstáculos para garantia da acessibilidade tecnológica, em igualdade de condições, haja vista a ausência de equiparação de investimentos no esporte. Fato que, por si só, gera um descompasso e necessária intervenção de discussões éticas que possibilitem a aproximação entre as nações e os atletas.

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A ética tem como sentido a condução da vida e tem seu propósito maior na conquista da felicidade. Já o esporte tem seu sentido na saúde e bem-estar, e, para o seu propósito, a formação do sujeito ético.

 

Olhando dessa forma, ética e esporte são extremamente ligados. O esporte é realmente um potente construtor do caminho ético.

 

O Brasil ratificou a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte em 18 de dezembro de 2007, integrando-se com isso ao seleto grupo de 138 países unidos em um esforço supranacional para promover o fair play  – o jogo limpo e justo – e o direito a competições transparentes e honestas.

 

De igual modo, as balizas éticas à medicina do esporte não podem se afastar de que a atividade médica é pautada por valores morais, como confidencialidade, confiança e cuidado, somado aos princípios como respeito à autonomia, não maleficiência e beneficiência.

 

 

Vulnerabilidade, Autonomia e Consentimento do atleta

 

O ser humano é considerado ser vulnerável, embora possa estar ou não em estado de vulneração[7]. Trata-se de condição latente que pode se tornar manifesta, uma possibilidade que pode se concretizar a depender das circunstâncias.

 

Há três tipos de vulnerabilidade: existencial, social e moral. As situações de vulnerabilidade existencial são marcadas por sofrimento, doença e morte, e atingem a todos independentemente das condições sociais. A vulnerabilidade social, por sua vez, está associada a estruturas políticas e econômicas desiguais e diz respeito a diversas injustiças cuja superação não depende apenas da boa vontade individual. Por fim, a vulnerabilidade moral surge da cultura (religião, costumes, arte) e da percepção de valores, e por isso é mais difícil de ser percebida.

 

Os considerados moralmente vulneráveis, por serem diferentes, sofrem com discriminação, indiferença e até mesmo ódio, e a superação desse estado não depende apenas dos sujeitos atingidos, mas de transformações culturais.

 

Como explica Schramm[8], a vulnerabilidade é uma possibilidade; a vulneração é situação concreta relacionada a classe social, etnia, gênero ou condições específicas de saúde. No esporte, a vulnerabilidade é caracterizada por relações de poder, isto é, alguém está vulnerável a algo ou a alguém.

 

No meio esportivo, o termo “vulnerabilidade” é pouco utilizado, mas uma análise atenta encontra diversos fatores e cenários em que essa condição se apresenta: excesso de treinamento, lesões, doping , abandono e transição de carreira, assédio moral e/ou sexual, corrupção, racismo, discriminação de gênero, abuso emocional, culto à imagem corporal e hiperexposição nas mídias sociais.

 

Conforme Tatiana Tavares da Silva[9], em um mundo em que se valoriza excessivamente o corpo e o capital, diversos abusos ocorrem na busca por rentabilidade e poder. Nesse contexto, desde cedo – pois ingressam no esporte ainda em fase escolar – os atletas estão vulneráveis a imposições de terceiros, sem poder gozar de sua autonomia. Além disso, a vida profissional desses atletas é curta, devido ao desgaste precoce do corpo. A maturidade profissional é atingida ainda na juventude, quando se pode aproveitar ao máximo a potencialidade do corpo para buscar resultados.

 

Presente a vulnerabilidade e havendo interferência externa, surge sensível redução na autonomia do atleta, que em muitas situações não encontra outra alternativa senão a prática sugestionada por terceiros.

 

A autonomia é a liberdade conferida às pessoas para se regerem e vincularem a si próprias, uma perante as outras, de prometerem e de se comprometerem, excedendo inclusive no âmbito do Direito.

 

Cabe destacar que o contraponto da autonomia é a heteronomia, podendo ser definida como a sujeição a um direito criado por outrem que não aqueles a que se destina. A autonomia e a heteronomia relacionam-se numa série polar em que, entre a pura autonomia e a pura heteronomia, podem existir situações e regulações intermediárias mais autônomas ou mais heterônimas.

 

Pela análise do presente estudo, percebe-se que a autonomia do atleta está, em muitas situações, sob influência, demonstrando que a liberdade nem sempre é absoluta – culminando no consentimento viciado do atleta que, se em algumas situações não recebe todas as informações necessárias para a tomada de decisão, em outras acaba cedendo às pressões externas.

 

A partir disso, se sobressai a importância de profissionais com uma formação mais sensível e humanizada, os quais poderiam agir de forma diferente, atuando na troca de informações preventivas e de cuidado – informações estas que seriam sementes para futuras melhorias na condição física e psicológica dos atletas.

 

Nesse momento é que ingressa a Bioética, como ciência capaz de observar o todo e preservar os aspectos éticos das tomadas de decisões, buscando impedir que avanços científicos e tecnológicos estejam a serviço de práticas estigmatizantes e discriminatórias, que reforçam o comportamento de poder e perpetuem condutas heterônomas.  

 

A Bioética, assim, avaliando pontualmente as situações experimentadas vai guiar o olhar e firmar seu parecer para assegurar a autonomia e dignidade do ser humano, assim como ponderar a utilização da biotecnologia e a interferência na vida do atleta, para o fim de torná-lo integral e integrante na sua humanidade

 

 

Conclusão

 

O presente estudo teve como objetivo demonstrar a interface da Bioética e o esporte, através da análise da autonomia do atleta de alta performance.

 

Teceu breves considerações quanto à Bioética, bem como ao esporte e a incidência dos avanços científicos e tecnológicos na vida dos atletas, somado aos fatores externos de pressão e de poder que permeiam a carreira.

 

Por fim, trouxe elementos da vulnerabilidade e da autonomia que, submetidos às pressões e aos interesses econômicos que permeiam o mundo do desporto, acabam por refletir consentimentos viciados.

 

Nessa dinâmica, a ciência da Bioética é o caminho adequado para dialogar entre os fatores externos existentes e a manutenção da dignidade e autonomia do atleta, proporcionando efetiva comunicação para melhoria no cuidado e na percepção integral e integrante do ser humano na sua humanidade.

 

 

Referências

 

ARISTÓTELES. Política. 3 ed. Tradução de Mario da gama Kury. Brasília: UnB, 1997. 1253ª. [Título I, Cap. 2].

 

GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: São Camilo; Loyola, 2010.

 

MORAN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo, 1991.

 

SCHRAMM, Fermin Roland. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Disponível em » https://bit.ly/36j4UkL. Acesso em 09 de junho de 2021.

 

SILVA, Tatiana Tavares. Questões éticas na prática da medicina do esporte na contemporaneidade. Disponível em https://www.scielo.br/j/bioet/a/TsZhY5GkgKtYM5KRMNj4K3R/?lang=pt. Acesso em 09 de junho de 2021.

Sobre a autora
Laura Affonso da Costa Levy

Mestre em Bioética pela UMSA/AR; Especialista em Bioética pela PUC/RS; Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade IDC; Consultora em Biodireito na Complex Consultoria Jurídica Integral e Integrada; Professora Universitária na UCS e Verbo Jurídico; Secretária-Geral e Fundadora do Instituto Proteger; Diretora Estadual do IBDFAM/RS; Diretora de Educação do Centro Integrare; Membro do Departamento de Bioética do IARGS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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