A nova Lei de Licitações - incongruências no controle

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Novo regime jurídico para licitações e contratos estatui normas que limitam o controle dos Tribunais de Contas, em desconformidade com a Constituição da República

A nova Lei de Licitações - incongruências no controle*



 

* Alcindo Antonio Amorim. B. Belo (Graduação em Administração e em Direito, ambos pela UFPE, Advogado licenciado OAB, Pós-Graduação em Administração Pública e Controle Externo - FCAP/UPE e Auditor de Controle Externo do TCE-PE)


 

Nesta breve análise, evidencia-se que há disposições inconstitucionais, no que se relaciona ao controle de atos administrativos, no Projeto nº 4.253/2020, que institui a nova Lei Licitações e Contratos. Profícuo mencionar tais proposições: 

 

 

Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contratações em que a Administração:

… XII – órgão de controle externo poderá acompanhar e monitorar os diálogos competitivos, opinando, no prazo máximo de 40 (quarenta) dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do contrato.

Art. 171. Na fiscalização de controle será observado o seguinte:

… § 1o Ao suspender cautelarmente o processo licitatório, o tribunal de contas deverá pronunciar-se definitivamente sobre o mérito da irregularidade que tenha dado causa à suspensão no prazo de 25 (vinte e cinco) dias úteis, contado da data do recebimento das informações a que se refere o § 2o deste artigo, prorrogável por igual período uma única vez, e definirá objetivamente:

… § 3o A decisão que examinar o mérito da medida cautelar a que se refere o § 1o deste artigo deverá definir as medidas necessárias e adequadas, em face das alternativas possíveis, para o saneamento do processo licitatório, ou determinar a sua anulação.

§ 4o O descumprimento do disposto no § 2o deste artigo ensejará a apuração de responsabilidade e a obrigação de reparação do prejuízo causado ao erário.

Art. 172. Os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados.

Parágrafo único. A decisão que não acompanhar a orientação a que se refere o caput deste artigo deverá apresentar motivos relevantes devidamente justificados.

 

Art. 173. Os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas,

promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas.

 

 

 

Conforme esse plano do novo regime jurídico das Licitações e Contratos, há afronta à ordem legal ao tornar as Súmulas do TCU referências de interpretação para os Tribunais de Contas - TCs por manifesta ofensa ao pacto federativo e autonomia desses Órgãos constitucionais, artigos 1º e 71 da Carta Magna.

 

O Constituinte Originário atribuiu aos TCs independência funcional, e não apenas autonomia administrativa, orçamentária e financeira, nos termos do 71, CR, embora estabelecida semelhança entre os Tribunais de Contas e Judiciário na questão de autonomia de organização e orçamentária-financeira, artigo 73 combinado com 96, CR.

 

Dessa forma, por preceito da Lei Fundamental da República, cada Tribunal de Contas do País - dos Estados, da União, do Distrito Federal e os Municipais, onde houver -, forma o juízo de valor motivado e decide com independência sobre matérias da respectiva competência. 

 

Decerto que importante a uniformidade de entendimento para a segurança jurídica, todavia, há de se mudar por proposta de emenda constitucional o modelo dos TCs, nesse sentido tramitam algumas PECs no Congresso, podendo-se destacar a PEC 28/2017, de autoria do então Senador Cássio Cunha Lima e que teve gênese na Associação dos TCs, Atricon. Propõe-se, entre outros importantes aprimoramentos, criar um Conselho integrado por vários Tribunais para conferir interpretação uniforme em temas sensíveis, de repercussão nacional. 

 

Portanto, os TCs não se submetem ao princípio da jurisdição una. Não têm um Órgão de cúpula, diferente do Judiciário, que a Carta Política de 88 instituiu o Superior Tribunal de Justiça com a missão de dirimir questões, em geral, infraconstitucionais e em grau de recurso, e o Supremo Tribunal Federal, questões relativas à Carta Magna e outras matérias recursais, decidindo em definitivo. Relevante mencionar sedimentada posição do STF:

 

“Os tribunais de contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos tribunais de contas … traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República.” (ADI 4.190 MC-REF, Rel. Min. Celso de Mello, DJE de 11/06/2010)

 

“As cortes de contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional, administrativa e financeira, das quais decorre, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e funcionamento, conforme interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, II, d, da CF.” (ADI 4.418, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 3-3-2017)

 

 

Vale frisar também que, nada obstante o preceito constitucional de que os processos administrativos e judiciais devem se desenvolver em período razoável, artigo 5º, LXXVIII, CR, os prazos para julgamento são impróprios. Por consequência, não se pode revogar decisão por decurso de prazo nem limitar prazo para controle de atos sob pena de ferir interesse público na tutela provisória promovida por uma cautelar nem presumir legal um ato se não analisado no tempo preceituado pela nova Lei. 

 

Isso em face dos TCs estarem a tutelar o ordenamento jurídico e os cofres públicos, bem como tornará tábula rasa termos da Carta Magna que conferem a efetividade das decisões emanadas das Cortes de Contas e o poder dever do controle sobre atos administrativos. 

 

Ademais, a Constituição da República preconiza aos TCs a competência de exercício de controle amplo tanto o preventivo, ao estar em curso o ato, quanto a posteriori. A amostragem constitui um dos princípios universais de qualquer fiscalização, porém não impede que se possa exercer o controle sobre demais atos e sem delimitar prazos. 

 

Vide que o Legislador ordinário não fez qualquer proposição de prazo quando a interrupção de uma licitação ocorrer por força de liminar emitida pelo Judiciário, princípio da inafastabilidade da jurisdição, artigo 5º, XXXV. Isso denota se tratar de preceito tanto irrazoável quanto anti-isonômico. Para um Órgão de controle institui prazos resolutivos para decisões e análises, mas lacônico para um Poder que também exerce controle externo sobre atos administrativos.

 

O controle externo na apreciação de atos administrativos, há de se assinalar, não corresponde à prerrogativa exclusiva dos TCs. O Poder Legislativo, Ministério Público e Poder Judiciário - quando provocado, vez que esse Poder submetido ao postulado da inércia da jurisdição - também o exercem por competência constitucional.  

 

Porém, o que se observa no multi referido Projeto são preceitos desprovidos de interesse público e que afrontam a efetividade constitucional do controle externo dos TCs e de forma anti-isonômica. Muito provável que o Legislativo, ciente da inconstitucionalidade dessas disposições, não buscou afrontar também as competências constitucionais dos demais atores do controle externo caso propusesse restringir a validade de decisões e delimitar o tempo para exercerem o controle. 

 

Salutar por esse prisma citar precedente de jurisprudência do Pretório Excelso:

 

“... a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público. ... É por isso que entendo revestir-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao TCU, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição da República. (MS 24.510, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19-3-2004.)

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Vale registrar também descaber aos Tribunais de Contas, ao Legislativo, Ministério Público ou Tribunais do Poder Judiciário indicarem os atos administrativos que a Administração Pública deve adotar. Aos gestores compete privativamente tomar tais decisões. O controle externo apenas atua quando há elementos de convencimento, pelo menos por meio de indícios plausíveis, de um ato irregular. Aos gestores cabe sanar a irregularidade e adotar medidas compatíveis com a ordem legal para continuar execução das políticas públicas de forma regular 

 

Portanto, não compete aos Tribunais, quer de natureza administrativa ou judicial, definir as políticas públicas, e sim aos Gestores dos Poderes e Órgãos dos Estados, Municípios, Distrito Federal e União. 

 

Ainda há de se comentar não se revelar razoável atribuir apenas aos Tribunais de Contas a capacitação de todos servidores públicos do País, disposição desproporcional. Isso porque a Lei Maior, artigo 39, § 2º, desde o advento da Emenda Constitucional 19/1998, determinou os Entes da Federação instituírem Escolas de Governo para capacitar e tornar aptos os respectivos servidores públicos. 

 

Os Tribunais de Contas promovem de forma permanente a capacitação do quadro próprio e dos gestores públicos, porém cada Órgão e Poder dos Entes da Federação também devem instituir Escolas de Governo e aprimorar o respectivo quadro de servidores.

 

Assim, nesta breve análise, demonstra-se que não se pode, sem alteração da Lei Fundamental da República Federativa, uma legislação infraconstitucional inovar no ordenamento jurídico quer para submeter um Tribunal de Contas a outros quer limitar a eficácia das decisões por decurso de prazo, limitar prazo para exercer o controle, determinar quais medidas administrativas devem os gestores adotar ou tornar o único Órgão que promove capacitação sobre a nova Lei. Nesse ínterim, vale se reportar a precedente de jurisprudência do STF:

 

“A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da CF à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos "pesos e contrapesos" no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional – aí incluída, em relação à federal, a constituição dos Estados-membros –, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. …” (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28-5-2004)

 

Impende assim que, caso o Chefe do Executivo não vete esses preceitos da nova Lei de Licitações e Contratos, a Procuradoria Geral da República e outros legitimados para propor Ação de Inconstitucionalidade questionem no Supremo Tribunal Federal tais disposições com pedido de liminar para os suspender de imediato.

   

  

 

Referências:

 

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998. Brasil, Congresso Nacional, [1988]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso 21 mar.21.

 

SENADO. Projeto de Lei n° 4253, de 2020. Administrativo - Licitação e contratos [2020]. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/145636>. Acesso em 20 mar. 2021.

 

STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI 4.190, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 11/06/2010. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur179251/false>. Acesso em 20. mar. 2021.

 

STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI 4.418, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 03/03/2017. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3887732>. Acesso em 20. mar. 2021.

 

STF. MANDADO DE SEGURANÇA. MS 24.510. Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19/03/2004. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2115148>. Acesso em 26.10.2020.

 

STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJE: 28/05/2004. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2182399>. Acesso em 22. mar. 2021.


 

Sobre o autor
Alcindo Antonio Amorim Batista Belo

Bacharel em Direito e Administração pela UFPE. Pós-graduação em Administração Pública e Controle Externo pela FCAP/UPE. Advogado OAB-PE licenciado. Auditor de Controle Externo do TCE-PE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O Legislador ordinário de forma irrazoável e anti-isonômica restringe apenas o controle externo dos Tribunais de Contas, o que além de contrariar a Carta Magna, trata-se de tratamento discriminatório à medida que não tolhe qualquer competência do Poder Judiciário, Poder Legislativo e Ministério Público, que também exercem o controle externo sobre a Administração Pública

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