Violência doméstica e a revitimização durante a elaboração do inquérito policial

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25/11/2020 às 17:59
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Trata-se de estudo sobre o processo de vitimização durante a elaboração do inquérito policial, com foco nas vítimas de violência doméstica. Tem por objetivo demonstrar como a má condução do inquérito pode fortalecer a uma revitimização.

Resumo: O presente trabalho trata-se de um estudo sobre o processo de vitimização durante a elaboração do inquérito policial, com foco na vitimização secundária e vitimização terciária, sofridas pelas vítimas de violência doméstica. Tem por escopo demonstrar como a má condução das investigações somada a inobservância da duração razoável do processo, dentre outros fatores, fortalecem a sensação de impunidade e revitimizam a vítima. Foi utilizada como metodologia para a elaboração deste trabalho, revisão bibliográfica, legislativa e jurisprudencial pertinentes ao tema, bem como análise de dados acerca dos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica. O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise de como a vítima é afetada de forma negativa diante da má condução do inquérito policial. Sendo desenvolvido um diálogo que vise demonstrar como os transtornos causados às vítimas de violência doméstica, podem ser reduzidos através de medidas tomadas pelo Estado, que tem o dever de cuidado e proteção.

Palavras-chave: Vítima; Má condução; Inquérito Policial;

Sumário: 1. Introdução. 2. Violência doméstica e familiar. 2.1. Tipos de violência doméstica e familiar. 3. O inquérito policial nos casos de violência doméstica. 3.1. As regras do inquérito policial. 3.2. Medidas protetivas e sua eficácia. 4. A vítima de violência doméstica no processo penal. 4.1. A participação da vítima no processo penal. 4.2. A importância da vitimização no âmbito penal. 4.2.1. Vitimização primária. 4.2.2. Vitimização secundária. 4.2.3. Vitimização terciária. 5. Reflexos da inobservância da duração razoável do processo e possíveis soluções para o tema. 6. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A ação penal pública tem início através do inquérito policial, que poderá se iniciar pelo Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), de ofício ou por Portaria. O APFD ocorre quando o suposto autor do fato, é autuado em flagrante delito. No segundo caso, uma vez que a autoridade policial tenha conhecimento de um fato delituoso, poderá o inquérito policial ser instaurado de ofício pela autoridade policial. A portaria ocorre quando se tem a notícia do fato criminoso, pela vítima ou qualquer interessado, devendo ser instaurada a portaria para apuração do crime.

O inquérito policial tem por objetivo a apuração do fato criminoso, para que se tenha elementos suficientes para a propositura da ação penal pelo órgão competente. É a fase para a elaboração das provas e indicação da autoria delitiva. Contudo, nota-se a crescente demanda de investigações criminais, em decorrência do aumento da criminalidade, bem como a demora para a conclusão de milhares de investigações.

Essa perspectiva pode ser notada atualmente em nossa sociedade. A morosidade na conclusão do inquérito policial, por vezes, ocasionando o arquivamento em decorrência da prescrição, faz com que a sociedade e as vítimas sintam a sensação de impunidade e reforce ainda mais a vitimização secundária.

Pode-se observar em nossa sociedade um movimento de discussões sobre impunidade e as mudanças necessárias para cessa-la. Nota-se uma crescente onda para mudanças legislativas, discussões acerca do aumento do tempo de prisão, políticas públicas mais severas e menos tolerância com criminosos.

Recentemente, como resposta ao clamor social, foi publicada a Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, intitulada Pacote Anticrimes, que busca aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, com mudanças significativas em legislações como Código Penal, Lei de Execução Penal, Código de Processo Penal, Lei nº 12.850/2013, entre outras.

Contudo, a discussão não pode perpassar por uma questão apenas política e/ou legislativa, ignorando questões procedimentais que afetam demasiadamente a conclusão de investigações. Deve-se observar os altos déficits de servidores nas policiais judiciárias, que trabalham diretamente na elaboração das investigações.

Assim, a discussão não deve buscar combater somente os efeitos e sim a causa, que influenciam para a morosidade. A morosidade na conclusão do inquérito policial, deve ser enxergada como a ponto do iceberg e não ele em sua totalidade, deve se buscar a compreensão de como chegamos ao problema no fator procedimental, para que assim, possamos chegar em soluções mais eficazes e satisfatórias para a sociedade.

No presente trabalho, se visa fazer uma análise dos procedimentos do inquérito policial, os tipos de vitimização e como a má condução das investigações, despreparo dos agentes da força social, Ministério Público, Poder Judiciário e Delegado de Policial, contribuem de forma significativa para a revitimização secundária.

Faz uma abordagem de como a demora para a conclusão do inquérito policial e consequência demora para o deslinde da ação penal, pode reforçar a vitimização secundária, trazendo prejuízos psicológicos à vítima. É dever do Estado garantir a proteção à vítima, tendo como foco as vítimas no âmbito da violência doméstica e familiar.

No âmbito da violência doméstica serão tratados os crimes de lesão corporal e ameaça, que são os crimes mais comuns cometidos contra a mulher ou no âmbito familiar.

Ademais, visa demonstrar como a má condução do inquérito policial contribui de forma significativa para reforçar a vitimização secundária, haja vista que a vítima desses crimes, em vários casos, convivem com seu agressor, demonstrando que pode ser causado uma maior insegurança na vítima, quanto não consegue vislumbrar o deslinde da causa, vendo seu agressor responder pelas consequências de seus atos.


2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

A Lei nº 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha), não tipifica crimes, ela cria mecanismos a fim de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Conquanto haja a previsão de que os crimes abrangidos por essa lei sejam contra a mulher, deve se ressaltar que poderão ser vítimas de violência doméstica e familiar qualquer pessoa que tenha relação afetiva e familiar com seu agressor.

A violência doméstica é entendida como a violação dos direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal, conforme dispõe o art. 2º da Lei Maria da Penha que, in verbis

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (BRASIL, 2006).

O artigo 7º, do mesmo diploma legal, prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, que são a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Conforme dados apresentados pelo Senado Federal, em pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Datasenado, em 2019, os crimes mais comuns contra as mulheres são a violência física e a violência psicológica (SENADO FEDERAL, p. 5, 2019).

2.1 Tipos de Violência Doméstica e Familiar

A violência física é qualquer conduta que ofenda a integridade física ou saúde corporal da mulher (art. 7º, I, LMP), esse tipo de violência é uma das mais comuns cometidas, trata-se do uso da força para afetar a integridade física da mulher, através de agressões (BRASIL, 2006). A violência física é aquela que configura o crime de lesão corporal, previsto no art. 129, §9º, do Código Penal (CP), crime de tortura, que além de tratar-se de violência física poderá configurar, ainda, violência psicológica.

A violência psicológica é qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar as ações da mulher (art. 7º, II, LMP), pode ser observado tal conduta no crime de ameaça (art. 147, CP), que é o segundo crime mais comum no âmbito da violência doméstica.

A violência sexual, prevista no art. 7º, III, da Lei Maria da Penha é qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso de forma, é a pratica dos crimes tipificados nos artigos 213 a 228-C, do CP.

A violência patrimonial é qualquer conduta pratica contra a mulher que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades da vítima (art. 7º, IV, LMP).

Por fim, a violência moral é a pratica de qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria, que são os crimes tipificados no CP, nos seus artigos 138, 139 e 140, no capítulo que trata sobre os crimes contra a honra.


3. O INQUÉRITO POLICIAL NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A Lei Maria da Penha prevê que a apuração dos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica deverão ser apurados por inquérito policial, que deverá ser remetido ao Ministério Público. O art. 13 da Lei Maria da Penha, prevê que serão adotadas as normas do Código Penal, ao processo, ao julgamento e à execução para a apuração dos crimes.

No art. 12 do mesmo diploma legal, está previsto uma série de diligências que a autoridade policial deverá tomar em todos dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Dentre elas, estão a remessa dos autos ao juízo competente para a concessão de medidas protetivas, verificar se o agressor possui registro de porte ou posse de arma de fogo, informações sobre a condição de a ofendida ser pessoa com deficiência e, se da violência sofrida, resultou deficiência ou agravamento de deficiência preexistente (art. 12, III, VI-A e IV, LMP). As demais diligências serão abordadas em capítulo pertinente.

3.1. As regras do Inquérito Policial

O inquérito policial é a fase preparatória para a ação penal, tem por objetivo a investigação de autoria e circunstâncias de um fato delituoso aparente, com o fim de justiçar a propositura ou não da ação penal.

O inquérito policial trata-se de procedimento administrativo inquisitório e preparatório que antecede a fase processual. Sua natureza administrativa dar-se-á pelo fato de ser instaurada por autoridade policial competente. Assim, de acordo com o art. 4º do Código de Processo Penal (CPP), será realizado pela polícia judiciária, com o fim de apurar as infrações penais e sua autoria. Tem por objetivo a formação da convicção do representante do Ministério Público (MP).

Para a formação do inquérito policial é necessária a realização de diligências à fim de produzir provas e colher elementos para a informação de autoria e materialidade delitiva, assim, possibilitando que o titular da ação possa ingressar em juízo.

Dessa forma, o inquérito policial visa inibir a atuação temerária e infundada de instauração de processo penal, evitando imputações infundadas e levianas, visando resguardar a liberdade do inocente, visando evitar, ainda, custos desnecessários ao Estado. Além desse caráter preservador, tem-se o caráter preparatório, que consiste em fornecer elementos de informação para que a parte legitimada possa ingressar com a competente ação penal, visando preservar, ainda, provas que poderiam se perder com o decurso do tempo.

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Nessa fase, não está resguardo o direito de ampla defesa e do contraditório ao investigado, haja vista sua natureza inquisitória. Ausentes as garantias fundamentais referidas, o inquérito policial tem valor probante relativa, ou seja, necessário se faz para a formação da convicção do juiz, que as provas produzidas durante o inquérito policial, se confirmem em juízo, durante a fase processual. Assim disciplina o art. 155 do CPP:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (BRASIL, 1941)

Os atos de iniciação do inquérito policial estão previstos no art. 5º do CPP, que estabelece que o inquérito policial poderá ser iniciado de ofício ou mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de seu representante.

Ocorrerá sua iniciação de ofício quando a autoridade policial deverá agir de ofício, instaurando o inquérito policial, devendo o delito ter ocorrido em sua jurisdição territorial, sendo de sua competência a matéria a ser averiguada.

No caso de requisição pela autoridade judicial ou por requisição do Ministério Público, do mesmo modo que ocorre com a autoridade policial, quando se chega à qualquer desses órgãos a notícia da prática de um fato delituoso, deverão diligenciar para a sua apuração, observados as formalidades procedimentais para tanto, haja vista o dever de contribuir para a apuração de delitos dessa natureza.

A requisição feita pelo ofendido, ou seu representante legal, trata-se de notícia-crime qualificada, tendo em vista a exigência da condição especial do sujeito, ou seja, ser a vítima do fato delituoso. Há a possibilidade da vítima realizar a notícia-crime simples, bastando que não faça nenhum requerimento à autoridade policial, visando apenas noticiar o fato.

Pontua-se que a notícia-crime simples poderá ser realizada por qualquer pessoa do povo, podendo realizar a comunicação oral ou escrita de delito de ação penal pública. Não é necessária o interesse jurídico específico, basta que a comunicação seja realizada à autoridade policial sobre a ocorrência de fato punível, ou aparente.

3.2. Medidas Protetivas e sua eficácia

Conforme previsão do art. 12, III, da Lei Maria da Penha, a autoridade policial deverá remeter os autos no prazo de 48 horas ao juiz competente para concessão de medidas protetivas de urgência, em todos os casos de violência doméstica e familiar.

Tal diligência tem como escopo proteger a vítima de seu agressor, podendo o juiz aplicar de imediato medidas protetivas de urgência, conforme prevê art. 22 da Lei Maria da Penha, in verbis:

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. (BRASIL, 2006)

Além das medidas protetivas referidas acima, o juiz poderá aplicar outras medidas visando sempre a segurança da vítima. Para que se torne efetiva a aplicação das medidas protetivas, poderá o juiz, se necessário, requisitar o auxílio da força policial (art. 22, §§ 1º e 3º, LMP).

No que concerne a diligência de verificação de registro de porte ou posse de arma de fogo, tal previsão foi incluída na redação do art. 12 da Lei Maria da Penha, pela Lei nº 13.880/2019, podendo o juiz determinar a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, devendo comunicar ao órgão, corporação ou instituição competente, sobre a aplicação da medidas protetiva de urgência, observados os termos da Lei nº 10.826 de 2003.

Essa medida tem como finalidade evitar que arma de fogo seja utilizado pelo agressor com a finalidade de violar a integridade física da vítima, cometer um crime fatal contra a vítima. Dessa forma poderá ser suspenso o porte ou posse de arma de fogo do agressor de forma imediata, devendo a autoridade policial determinar a apreensão da arma de fogo de forma imediata, para a realização de perícias.

As medidas protetivas de urgência previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha, tem como objetivo proteger a vítima de forma imediata, sem a necessidade de ulterior apuração sobre a prática delitiva.


4. A VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO PROCESSO PENAL

4.1. A participação da vítima no Processo Penal

A vítima ou ofendido é aquele que sofreu diretamente a ação penal, tendo algum direito violado e lesado. Encontra-se prevista no art. 201 do CPP, que sofreu significativas alterações com o advento da Lei nº 11.690/2008, no que concerne ao tratamento conferido à vítima.

Há distinção no tratamento da vítima em relação ao da testemunha. Isso porque “a vítima não presta compromisso de dizer a verdade e tampouco pode ser responsabilizada pelo delito de falso testemunho (mas sim pelo crime de denunciação caluniosa, art. 339 do CP, conforme o caso). Também não é computada no limite numérico das testemunhas” (LOPES JR., 2016, E-book).

Conforme prevê o §1º do art. 201 do CPP, a vítima não poderá negar-se a comparecer para prestar declarações, sob pena de ser conduzida coercitivamente. Mas, ressalta-se que para evitar maior constrangimento à vítima e causar-lhe menor mal possível, é concedido o direito de prestar declarações sem estar o seu algoz presente. Contudo, poderá o defensor do acusado fazer-lhe perguntas.

Para conferir maior proteção à vítima é possível que haja a ocultação da sua qualificação no autos, assim, o investigado não terá acesso às informações relativas à endereço, telefone, nome, etc., por exemplo, da vítima. Dessa forma, se visa proteger à vítima de possíveis retaliações por parte do investigado e preservar sua intimidade, previsto no §6º do art. 201 do CPP.

Conforme estabelece o §2º do art. 201 do CPP “o ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem” (BRASIL, 1941).

Nos crimes no âmbito da Lei Maria da Penha, para conferir maior proteção à vítima, as ações referentes à lesão corporal serão públicas incondicionadas à representação, conforme estabelece a Súmula nº 542 do STJ, uma vez que a vítima de violência por vezes deixa de denunciar às agressões ou quando o fazia, se retratava, ocasionando uma reiteração por parte do agressor.

Nos crimes de lesão corporal, tratando-se de crime que deixa vestígio, caso a vítima se submeta, imediatamente à delegacia para denunciar às lesões, deverá ela ser submetida ao exame de corpo de delito, para elaboração de laudo pericial, que trata-se de prova material do cometimento do crime.

No âmbito do processo criminal, a vítima é de suma importância para a identificação do agressor, podendo fazer a indicação de forma uníssona da autoria delitiva, principalmente naqueles crimes cometidos no âmbito da violência doméstica. Contudo, deve ser ressaltado que a palavra da vítima não pode ser utilizada de forma isolada para a persecução penal, haja vista que por vezes pode ser levada por sentimentos de medo, raiva, vingança, em relação à seu agressor, sendo totalmente parciais.

Deve ser ressaltado que nos crimes cometidos na clandestinidade, como nos casos de crimes sexuais, de roubo, extorsão, furto, sequestro, dentre outros, há uma exceção quanto ao uso da palavra isolada da vítima, se corroborado com eventuais apreensões objetos ou identificação de material genético, conforme ensina Aury Lopes Jr (2016).

No concerne ao tratamento da vítima no âmbito da violência doméstica, várias foram as alterações legislativas visando a melhor adequação ao cenário atual, bem como visando melhor atendido à mulher.

A Lei nº 13.505/2017, trouxe significativas alterações na Lei Maria Penha, introduzindo ao texto, como por exemplo, o §2º, incisos I e II do art. 10-A da Lei Maria da Penha, que determina que o atendimento realizado à mulher deverá ser realizado em ambiente adequado e sendo realizada a inquirição por profissional especializado em violência doméstica e familiar, para que assim, resguarde a integridade psicológica da vítima.

Outro ponto de grande relevância é que não há a possibilidade de oferecimento de medidas despenalizadoras, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstos, respectivamente, nos artigos 76 e 89 da Lei nº 9.099/95, bem como a oferta de não persecução penal, introduzida pelo Pacote Anticrimes no CPP, no seu art. 28-A, nos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica e familiar, conforme determina o art. 41 da Lei Maria da Penha, uma vez que tais crimes não podem ser considerados de menor potencial ofensivo, haja vista a abrangência que decorre do se cometimento.

Conforme previsto pela Lei Maria da Penha, todo caso envolvendo violência doméstica e familiar, é crime, devendo ser apurado através de inquérito policial. Tal previsão tem como espoco punir de forma mais severas, em tese, sendo vedada a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, buscando evitar, ainda, que os crimes sejam tratados como de menor potencial ofensivo, não sendo possível medidas despenalizadores, conforme abordado acima.

4.2. A importância da vitimização no âmbito penal

A vitimização é a condição de vítima diante da prática de uma infração penal. Conforme ensina Christiano Gonzaga (2018), são três as espécies de vitimização recorrentes na sociedade: a primária, a secundária e a terciária. Pontua-se que a Lei Maria Penha prevê em seu texto a necessidade de não revitimização da vítima, ao prestar suas declarações (art. 10-A, §1º, III, LMP).

4.2.1. Vitimização primária

A vitimização primária é a que é ocorre no momento da prática do crime, são os danos sofridos pela vítima, seja físicos, psíquicos e materiais. A vítima de violência doméstica, que sofre lesão corporal, na prática do crime, ela sofrerá diversos danos por uma única ação do agressor, havendo a violação à sua integridade física, material e psíquica, haja vista necessitar de tratamento nas lesões ocasionalmente geradas e gastos com tratamento psicológico, remédios, etc.

Trata-se do “primeiro contato da vítima com o crime, em que ela sofre a violação direta ao seu bem jurídico” (GONZAGA, 2018). A vitimização primária, no âmbito da violência doméstica, poderá sempre ocasionar em danos psicológicos, haja vista o constrangimento gerado pelo agressor à vítima, seja nos crimes de ameaça, quando gera o medo dela se concretizar, nos crimes de lesão corporal ou crimes sexuais, quando ocasiona o medo da reiteração do ato, o constrangimento gerado pela vulnerabilidade frente ao agressor e o constrangimento perante à sociedade e o medo do julgamento.

4.2.2. Vitimização secundária

Também denominada de sobrevitimização, objeto do presente estudo, a vitimização secundária é aquela ocasionada pelas instâncias formais de controle social. A vitimização secundária ocorre quando a vítima resolve procurar a ajuda estatal diante da prática da infração penal sofrida. Geralmente ocorre durante às investigações, podendo se estender durante o processo penal.

Para a não ocorrência da vitimização secundária, prevê a Lei nº 13.344 de 2016, em seu art. 6º, in verbis:

Art. 6º A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem:

I - assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde;

II - acolhimento e abrigo provisório;

III - atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status ;

IV - preservação da intimidade e da identidade;

V - prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais;

VI - atendimento humanizado;

VII - informação sobre procedimentos administrativos e judiciais.

§ 1º A atenção às vítimas dar-se-á com a interrupção da situação de exploração ou violência, a sua reinserção social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção familiar e comunitária.

§ 2º No exterior, a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da rede consular brasileira e será prestada independentemente de sua situação migratória, ocupação ou outro status .

§ 3º A assistência à saúde prevista no inciso I deste artigo deve compreender os aspectos de recuperação física e psicológica da vítima (BRASIL, 2016)

Mesmo que a previsão seja para os crimes de tráfico de pessoas, não há impedimento da aplicação aos demais crimes.

Contudo, durante a elaboração do inquérito policial a vitimização secundária poderá ocorrer diante do despreparado dos agentes públicos da Delegacia de Polícia, perante a vítima. Nos crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha, pode ver facilmente observados a vitimização secundária, quando a vítima ao procurar a delegacia de polícia é tratada como apenas mais uma vítima, não sendo observados que a falta de acolhimento inicial, gera maiores danos psicológicos à vítima.

Conquanto haja previsão legal para a não ocorrência da vitimização secundária, não se pode dizer que ela não ocorre. Ademais, não há previsão para eventuais punições para àqueles que de alguma forma reforçam essa vitimização.

Conforme ensina Christiano Gonzaga é comum que os controles sociais formais, como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário, vitimizem a pessoa que sofreu um ataque no seu bem jurídico.

Uma forma comum, cometida pelo Delegado de Polícia, pode ser observando quando, no contato direto com a vítima, nos crimes de lesão corporal resultante de violência doméstica, direciona a vítima ao Instituto Médico-Legal, para elaboração de exame de corpo de delito, com peritos despreparados e em ambientes precários.

Outra forma de reforçar a vitimização secundária pode ser observado na má condução das investigações e na demora para as conclusões. Deve ser observado que a má condução das investigações pelo Delegado de Polícia pode acarretar em perdas de provas, a reiteração da prestação de declarações da vítima durante o inquérito policial, o que faz com que ela tenha que reviver mais o fato.

A demora na conclusão das investigações poderá ocasionar na duração por demasiado tempo na sensação de impunidade e medo sofridas pela vítima, quando não consegue vislumbrar o seu agressor sofrendo as devidas punições pelos seus atos. Por vezes a demora na conclusão das investigações poderá ocasionar a prescrição da pretensão punitiva estatal.

Deveria o poder público ter maior preocupação para uma melhor estruturação e preparação daqueles que atuam diretamente com as vítimas de crimes, deveria haver uma maior responsabilização do Estado e dos órgãos que atuam diretamente com as vítimas, não observando os devidos cuidados, gerando, uma revitimização secundária, com a prática de atos sem observação dos sofrimentos já causados pelo ato infracional.

Além dos atos que podem ser praticados pelo Delegado de Polícia, não dever ser esquecidos os praticados pelos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário que reforçam esse tipo de vitimização.

Aos membros do Ministério Público, “pode querer falar com o membro do Ministério Público para dar a ele informações relevantes d caso, mas quer guardar o devido sigilo e conversar com ele reservadamente, o que é dever do Promotor de Justiça atender tal vítima” (GONZAGA, 2018, E-book). Deve ser observado que por vezes os membros do MP se recusam a atender vítimas, mostrando total despreparado na tratativa com o outro. Dessa forma, não se consegue observar as consequências causadas diretamente à sociedade de forma efetiva, haja vista a falta de comunicação com a vítima.

Pontua-se é dever do Promotor de Justiça essa tratativa, que por vezes, sequer é observada na prática jurídica, sendo ignorado os problemas causados na sociedade.

Os membros do Poder Judiciário, representados pelos magistrados, que tem contato direto com as vítimas durante a realização de audiência, devem, também, ter maiores preparações na sua tratativa. Isso porque, conquanto o juiz deve manter sua imparcialidade, deve ser observados os questionamento realizados à vítima, para que não lhe cause maiores exposições sociais e constrangimentos.

A observância para a não realização da vitimização secundária é de suma importância para que não se gere uma descrença no poder judiciário e resistência para denunciar o fato criminoso.

4.2.3. Vitimização terciária

A vitimização terciária ocorre pela omissão do Estado e da sociedade. Pode ser definida pela “falta de amparo dos órgãos públicos às vítimas; nesse contexto, a própria sociedade não acolhe a vítima, e muitas vezes a incentiva a não denunciar o delito às autoridades, ocorrendo o que se chama de cifra negra” (PENTEADO FILHO, 2012, E-book).

É comum, em certos crimes, que a sociedade vitimize a pessoa, atribuindo a motivação do crime a ela. Nos crimes de violência doméstica é comum a ocorrência da vitimização terciária, quando, acontece, por exemplo, o crime de lesão corporal de forma reiterada, após a vítima perdoar seu agressor na primeira vez que ocorreu o cometimento de um crime. É comum que a sociedade julgue, como se a vítima tivesse culpa pelo crime cometido contra ela.

Nos crimes no âmbito da violência doméstica é fácil perceber a vitimização terciária quando por vezes a sociedade ou até mesmo próprios familiares reforçam a culpa da vítima ou desmotivam ela a proceder a denúncia de seu agressor, nos casos em que se deu no âmbito familiar, entre companheiros.

É comum que a sociedade reforce a vitimização terciária nos crimes cometidos, por exemplo, motivados pelo ciúmes do agressor, sendo percebida, também, nos casos em que após sofrer a primeira agressão a vítima perdoa e decide não denunciar, acreditando no arrependimento do agressor, vindo a vítima venha a sofrer novas agressões, sendo por vezes, culpada pelo ocorrido, por ter perdoado da primeira vez.

Ademais, os próprios familiares podem reformar esse tipo de vitimização, quando desestimulam a vítima a proceder a denúncia, justiçando o comportamento do agressor, quando fazem acreditar que a denúncia poderá acarretar em consequências severas à vida do agressor, sendo a vítima responsabilizada, de forma errada, quanto a isso.

Contudo, órgãos públicos devem buscar cada vez maior conscientização da sociedade visando evitar o reforço desse tipo de vitimização, haja vista que a vítima não pode ser vista como a causa do cometimento de qualquer prática delitiva tipificado em nosso ordenamento jurídico.

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Sobre a autora
Paula Silveira Amorim

Aluna graduanda em Direito no Centro Universitário UNA, unidade Contagem/MG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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