Capa da publicação Era digital e diminuição do controle estatal: nova distribuição do poder
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A diminuição do controle estatal no século XXI.

Uma nova distribuição do poder na era digital

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08/11/2020 às 22:08
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Os Estados nacionais vêm perdendo a capacidade de controle ao longo do tempo em decorrência dos avanços informáticos, frente ao crescente poder das grandes empresas de tecnologia da informação.

1. INTRODUÇÃO

O conceito de Estado é uma construção bastante complexa que assume diferentes características e significados a depender do contexto histórico. Para a finalidade deste artigo abordaremos o conceito de Estado a partir de uma perspectiva sociológica trazida por Max Weber como “aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o ‘território’ faz parte da qualidade característica –, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima (...)”. Essa dimensão do Estado só pode ser compreendida a partir das relações de dominação. Segundo o autor: 

“O Estado, do mesmo modo que as associações políticas historicamente precedentes é uma relação de dominação de homens sobre homens, apoiada no meio da coação legítima (quer dizer, considerada legítima)”.  

Para que este controle se realize, o Estado se organiza a partir de suas instituições que administram e comandam uma nação. Neste sentido é importante trazer a discussão acerca da relação entre Estado e Mercado. A separação que se constrói destas duas categorias não pode ser colocada num campo de contradição. No entanto, longe de querer reduzir os aspectos destes conceitos e compreendendo que muitas vezes eles estão intricados, abordaremos o Estado enquanto instituição que concentra a esfera política pertencendo à coletividade e o mercado enquanto esfera econômica que atende precipuamente interesses privados. Segundo REIS: 

“a compreensão da matriz constitutiva do Estado carece de uma narrativa sobre as relações entre as dinâmicas materiais e relacionais da sociedade, por um lado, e entre estas e as dinâmicas institucionais por outro (...) Acresce que devemos considerar o Estado como a mais complexa entidade institucional- chamar-lhe-ei a instituição das instituições – e que, como tal, dispõe de uma singular espessura organizacional e de uma forte capacidade de retroação sobre as circunstâncias que lhe deram forma e razão de ser. Assim sendo, encontra-se rapidamente uma relação intrínseca entre Estado e mercado, e não a antinomia que frequentemente nos é sugerida”. 

Neste sentido, o artigo da professora e advogada Ana Frazão sobre em que medida a economia depende do direito, ao analisar os processos históricos, demonstra que o surgimento dos mercados estruturados como temos hoje só foi possível a partir da regulação jurídica e dos seus instrumentos indispensáveis para a atividade econômica como os contratos, sociedades, títulos de crédito. Isso mostra o quanto o Estado foi fundamental neste processo, pois segundo Max Weber, o modelo de mercado exigia um direito racional, que pudesse garantir previsibilidade e segurança à atividade econômica. 

Esboçado sobre qual perspectiva estamos abordando o conceito de Estado e a sua relação com o mercado, discutiremos a interferência que as empresas da área de Tecnologia da Informação, por meio da Internet – juntamente com as tecnologias que a usam como plataforma – causam na relação da sociedade com as instituições componentes do Estado, além de trazer reflexões de como a era digital e os novos surgimentos têm possibilitado novas formas de dominação que vai além dos homens sobre os homens, mas também das máquinas sobre os homens. 

Este trabalho tentará fazer uma breve explanação histórica sobre como o Estado possibilitou o surgimento dos computadores e da internet, como essas invenções influenciaram fortemente na formação da sociedade atual e, por fim, como a internet vem sendo usada por corporações e particulares para minar as bases do poder estatal.


2. RELAÇÃO ENTRE ESTADO E MERCADO

O Estado tal qual como concebemos atualmente é resultado de um longo processo histórico marcado por várias disputas que teve como um de seus aspectos principais a frequente redefinição das fronteiras entre as esferas pública e privada. Esses conceitos tiveram diferentes significados ao longo do tempo e na transição do período Medieval para o Moderno não havia uma separação clara entre essas duas dimensões. Segundo Nobert Elias essas palavras só atingem seu significado pleno quando aplicadas a sociedades dotadas de extensas divisões de funções. O autor, ao tratar sobre o processo de formação do Estado, coloca que:

“o desenvolvimento do que hoje chamamos de ‘economia nacional’ desenvolveu-se a partir da ‘economia privada’ das Casas Feudais governantes(...) não havia no princípio distinção entre o que mais tarde foi separado como rendas e despesas ‘públicas’ e ‘privadas’. A renda dos suseranos originava-se principalmente da produção das possessões de sua família ou do domínio; as despesas da corte, tais como caçadas (...) eram custeadas por essa renda, exatamente da mesma maneira que o custo relativamente baixo com a pequena administração que então havia, com soldados mercenários, se necessário (...). A medida que mais e mais terras caíam nas mãos de uma única Casa reinante, o gerenciamento da renda e das despesas, da administração e defesa das propriedades, tornaram-se cada vez mais difíceis para um único indivíduo.” 

O que entendemos como máquina governamental surgiu a “partir do que conhecemos como corte privada” (ELIAS, pg.102) . O Estado Moderno, que é marcado por um processo de despersonalização em decorrência da complexificação e aumento das relações sociais, do desenvolvimento técnico científico e das necessidades que surgiram, passou a atender as demandas não de interesses individuais, mas dos interesses de muitos associados interdependentes.

Contemporaneamente, as formas de cooperação entre o mercado e o poder público mais representativas são as concessões de serviços públicos, onde o Estado concede a um ente privado a capacidade de realizar uma atividade que seria primariamente uma de suas atribuições, com uma contrapartida financeira para a empresa concessionária. O exercício dessa modalidade de cooperação público-privada remonta a períodos remotos. Como exemplo, podemos nomear as companhias de exploração das terras recém descobertas do Novo Mundo . No Brasil esse tipo de parceria está regulada por vasto regramento derivado do artigo 175 da Constituição Federal, que estabelece que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. A Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, regulamentou o dispositivo constitucional deixando claro que o Estado mantém o seu poder sobre o serviço concedido. Esse desequilíbrio de poder a favor do Estado pode ser depreendido a partir da leitura dos trechos da Lei destacados abaixo:

“Art. 29. Incumbe ao poder concedente: I - regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação; Art. 30. No exercício da fiscalização, o poder concedente terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária. Art. 35. Extingue-se a concessão por: II - encampação;” 

De uma forma mais ampla a Lei 12.529 de 30 de novembro de 2011 em seu artigo 1º “dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso de poder econômico.” Interessante notar a preocupação com a territorialidade para aplicação da Lei, conforme estabelece o Art. 2º: 

“Art. 2º Aplica-se esta Lei, sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos. § 1º Reputa-se domiciliada no território nacional a empresa estrangeira que opere ou tenha no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante.”

A regulamentação estatal não é exercida como um meio de limitar a atividade empresarial, mas principalmente para fomentar uma justa competição e o benefício da sociedade, já que a busca pela otimização dos resultados das empresas nem sempre coincide com os valores de “liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso de poder econômico”.

Várias invenções que causaram grande impacto na vida das pessoas só se tornaram realidade a partir do exercício do poder estatal para a canalização de verbas, recursos materiais e humanos. O economista William H. Janeway explica que, no contexto norteamericano, “o governo exerce um papel crítico na inovação provendo recursos para a pesquisa por meio de instituições como DARPA [Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa] e NIH [Institutos Nacionais de Saúde], pela alavancagem do poder de compra pelo tesouro nacional e pela criação de políticas que encorajam o investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento.” Na prática, seria como se houvesse um processo de socialização do investimento e dos riscos por meio do Estado cujos resultados podem ser utilizados pela iniciativa privada. 


3. DESENVOLVIMENTO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: BREVE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA

A internet surge a partir de pesquisas militares que foram desenvolvidas durante a Guerra Fria. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, o mundo passou por um processo de polarização marcado pela divisão antagônica de ideologias completamente diferentes. Por um lado, os Estados Unidos exerciam controle e influência sobre os países capitalistas e do outro a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas exerciam domínio sobre os países socialistas. Era uma verdadeira disputa sobre o domínio e controle dos países significando a imposição ideológica política e econômica. 

Na década de 1960, os dois blocos sabiam que um ponto fundamental para esse processo de conquista e dominação era a necessidade de controle dos meios de comunicação. Por esse motivo, e temendo que ataques russos às bases militares pudessem trazer a público informações sigilosas, as forças armadas dos Estados Unidos idealizaram um modelo de troca e compartilhamento de informações que permitiam de forma descentralizada. A primeira rede de computadores ficou conhecida como “Advanced Research Projects Agency Network” (ARPANET) e funcionava como um sistema conhecido como chaveamento de pacotes, que é um sistema de transmissão de dados em rede de computadores no qual as informações são divididas em pequenos pacotes, que por sua vez contém trechos dos dados e endereços do destinatário e informações que permitiam a remontagem remota da mensagem original.

Ou seja, a internet é o resultado de uma fusão singular de estratégia militar, grande cooperação científica, iniciativa tecnológica e inovação contracultural. A partir do momento que se tornou possível o empacotamento de todos os tipos de mensagens, inclusive de som, imagens e dados, criou-se uma rede que era capaz de comunicar sem utilizar centros e controle (CASTELL, pg. 82). 

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O desenvolvimento da rede mundial de computadores ocorreu de forma paralela ao desenvolvimento dos próprios computadores. Manuel Castell em sua obra A sociedade em rede realiza um resgate histórico e trás quais foram as experiências e criações mais marcantes e que revolucionaram o mundo tecnológico. Não negligenciando os antecessores industriais e científicos da tecnologia da informação com base em microeletrônica antes de 1940, foi durante a II Guerra Mundial e posteriormente que se deram as principais descobertas tecnológicas em eletrônica: o primeiro computador programável e o transistor, fonte da microeletrônica que possibilitou o processamento de impulsos elétricos em velocidade rápida e que conhecemos como chip. Em 1957 surge o primeiro circuito integrado que foi inventado por Jack Kilby que se juntou ao empresário Bob Noyce, fundador da Fairchild e que fabricou pela primeira vez estes circuitos. Esta iniciativa ocasionou uma explosão tecnológica e em apenas três anos os preços dos semicondutores caíram 85% e nos dez anos seguintes a produção aumentou 20% sendo que 50% da produção teve fins militares. O avanço gigantesco na microeletrônica em todas as máquinas ocorreu em 1971 quando o engenheiro da Intel Ted Hoff inventou um microprocessador, que é o computador com um único chip. Esta descoberta levou em 1975 o engenheiro Ed Roberts a construir uma caixa de computação nomeada como “Altair” que foi um computador de pequena escala construído com um microprocessador. O “Altair” serviu de base para o Apple 1 e o Apple 2 que foi o primeiro microcomputador de sucesso comercial idealizado por Steve Wozniak e Steve Jobs. 

A partir disso surgem as principais empresas da área de tecnologia da informação que só aumentaram seu capital ao longo dos anos. Em 1976 com três sócios e um capital de US$ 91 mil dólares, a Apple Computers alcançou em 1982 a marca de US$ 583 milhões de vendas, anunciando a era da difusão do computador. A reação da IBM foi rápida, em 1981 ela introduziu no mercado sua versão do microcomputador com o nome de computador pessoal. Uma condição fundamental para o surgimento dos microcomputadores foi preenchida com o desenvolvimento de um novo software adaptado que adaptaram o BASIC para operar a máquina Altair, desenvolvido por Bill Gates e Paul Allen, criadores da Microsoft. 

Toda a capacidade de desenvolvimento de redes só se tornou possível aos grandes e importantes avanços na área de telecomunicações e das tecnologias de integração de computadores em rede que ocorreram ao longo da década de 70. As telecomunicações foram revolucionadas pela combinação das tecnologias de “nós” (roteadores e comutadores eletrônicos) e novas conexões (tecnologias de transmissão). Além disso, avanços importantes em optoeletrônica (transmissão por fibra ótica e laser) e a tecnologia por pacotes digitais promoveram um aumento surpreendente da capacidade das linhas de transmissão. Em 1956 os primeiros cabos transatlânticos podiam transportar cinquenta circuitos de voz compactada. Já em 1995 os cabos de fibras óticas podiam transportar 85 mil destes circuitos. Esta capacidade de transmissão com base em optoeletrônica, combinadas com arquiteturas avançadas de comutação e roteamento, como ATM (modo de transmissão assíncrono) TCP/IP (protocolo de controle de transmissão/ protocolo de interconexão) é a base da Internet e foram as condições que possibilitaram o acesso maior de cada vez mais pessoas à rede mundial de computadores.

O atual estado do desenvolvimento tecnológico permite a conexão à internet a partir de quase todo o território nacional e virtualmente toda a área urbana do Brasil. Os computadores hoje se apresentam de diversas formas, mais notadamente como smartphones, que, no fim de 2017, existem em quantidade equivalente à própria população do país. Além disso, estamos vivendo a aurora da era dos computadores pulverizados, que já podem ser encontrados também em eletrodomésticos, carros, roupas, brinquedos etc. Ainda em 1991, Mark Weiser previu a vindoura onipresença dos computadores, que já é realidade, em seu artigo “The computer for the 21st century”:

“Hundreds of computers in a room could seem intimidating at first, just as hundreds of volts coursing through wires in the walls did at one time. But like the wires in the walls, these hundreds of computers will come to be invisible to common awareness. People will simply use them unconsciously to accomplish everyday tasks.” 

Tal estado de competência tecnológica permitiu a implantação de ideias que já eram desenvolvidas nos departamentos de matemática e ciências de computação das universidades há algumas décadas, tais como a inteligência artificial, big data e internet das coisas. 

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