Alienação parental inversa de primeiro e segundo graus

Artigo parcial com publicação na Revista n. 39 do IBDFAM

10/08/2020 às 21:50
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A alienação parental de idosos, também denominada de alienação parental inversa, é uma forma de violência emocional/psicológica que deve ser objeto de repressão estatal, em nome de uma maior proteção e tutela da pessoa idosa.

Patricia Novais Calmon

Advogada especialista em Direito das Famílias, Sucessões e Idoso. Mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Presidente da Comissão da Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES. Membro da International Society of Family Law.

Sumário: 1. Introdução. 2. A alienação parental inversa. 3. A alienação parental inversa de primeiro e segundo graus. 4. As consequências da alienação parental inversa e a teoria dos lugares paralelos interpretativos. 5. Conclusão. 6. Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O tema da alienação parental passou a ser objeto de intenso estudo a partir da sua identificação, em 1985, por Richard Gardner, professor de Psiquiatria Clínica do Departamento de Psiquiatria Infantil da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América. Na oportunidade, o americano cunhou o termo síndrome da alienação parental (SAP) para se referir a um distúrbio infantil provocado por ação deliberada pelo seu genitor guardião, que realiza atos de desqualificação do outro. Para viabilizar o tratamento, denominou tal ato de síndrome para que, a partir daí, pudesse ocorrer a sua inclusão no rol do Manual de Diagnóstico e Estatísticas dos Transtornos Mentais (DMS-IV), organizado pela Associação Psiquiátrica Americana.

No Brasil, a temática passou a ser regulamentada pela Lei n. 12.318/2010, embora tenha se realizado uma opção política e legislativa de não reproduzir a nomenclatura “síndrome”. Por aqui, portanto, fala-se em alienação parental (AP), que não se confundiria tecnicamente com a síndrome da alienação parental (SAP).

Assim, a síndrome se refere “às sequelas emocionais e comportamentais de que vem a padecer a criança vítima daquele alijamento”. Já a alienação parental corresponde aos atos praticados pelo guardião de afastamento da criança do outro genitor, para que esta passe a repudiá-lo, sendo o “processo desencadeado pelo progenitor que intenta arredar o outro genitor da vida do filho”. Por isso, ambas se encontram em uma relação de causalidade, já que a síndrome é consequência da alienação parental.

A lei também não regulamentou a alienação que, eventualmente, pode ser cometida em face de uma pessoa idosa, o que faz com que, corriqueiramente, a doutrina aponte que a Lei de Alienação Parental deva ser aplicada, por analogia, à alienação parental dos indivíduos que possuam essa característica.

Respeitosamente, porém, nesse artigo busca-se trazer a lume outra teoria, que poderá colaborar no debate sobre a temática.

É justamente nesse passo que entra a tese dos “lugares paralelos interpretativos”. Além disso, esse artigo visa estudar a existência da alienação parental de idosos em dois graus.

2 A ALIENAÇÃO PARENTAL INVERSA

A partir da construção da alienação parental de crianças/adolescentes, a doutrina começou a questionar se a alienação parental poderia ocorrer, também, em relação às pessoas idosas. A própria Constituição estabelece o dever de reciprocidade entre pais e filhos, de modo que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 229, CR/88).

Seria o caso, por exemplo, de um dos filhos alienar o seu pai idoso em detrimento do outro irmão, com a finalidade de obter o controle exclusivo sobre o patrimônio do ascendente.

Por conta desses personagens corriqueiros (filhos em relação aos pais idosos), parcela da literatura americana denominou esse tipo de alienação de “adult sibling alienation” (alienação entre irmãos adultos, em tradução livre), situação em que um filho tenta desqualificar o seu próprio irmão para que tenha controle dos cuidados, do patrimônio e da herança dos pais idosos.

Tal figura em muito se aproxima do que aqui no Brasil se convencionou de denominar de alienação parental inversa, situação em que o alienado será um idoso, em vez de uma criança. Invertem-se os papéis, caso em que os filhos poderão ser aqueles que alienam os seus pais idosos. Assim,

Embora a Lei da Alienação Parental ampare especificamente o menor de idade, as pessoas idosas, efetivamente, não estão livres dos atos de alienação daqueles que sobre elas exercem alguma autoridade, guarda ou vigilância, especialmente quando o abuso parte de estranhos ou parentes que, por vezes, se beneficiam das vantagens proporcionadas pelos recursos e reservas financeiras dos idosos.

Ocorre que nem sempre esse papel será exercido pelos filhos. Da mesma forma que na alienação parental de filhos, onde não necessariamente o ato é praticado pelos pais, na alienação parental inversa também não existe essa necessária identidade de personagens. É plenamente possível, portanto, que o alienador seja um cuidador, empregado, porteiro ou enfermeiro contratado para cuidar do idoso.

Esse entendimento pode ser detectado tanto na literatura, quanto na jurisprudência.

Ana Carolina Carpes Madeleno e Rolf Madaleno, por exemplo, esclarecem que a alienação parental inversa pode

[...] partir também daquele que tem o idoso sob a sua responsabilidade direta, como no caso de curadores, ou sob seus cuidados especiais, como acontece com os cuidadores profissionais, ou enfermeiros especialmente contratados para atender a pessoa idosa, não se mostrando incomum verificar que eles acabam sendo isolados e estigmatizadas por seus filhos e parentes próximos, sendo, por vezes, negligenciados ou explorados por seus curadores e cuidadores.

No mesmo sentido é o posicionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o qual, em paradigmático julgado, reputou que “os atos de alienação parental, conforme inteligência da Lei n. 12.318/2010, não se restringem somente àqueles que tenham vínculo de parentesco com a vítima”.

Essa situação faz com que a própria nomenclatura “alienação parental” seja objeto de crítica por parte da doutrina especializada. Bruna Barbieri Waquim, é uma dessas vozes. Segundo seu ponto de vista, haveria um paralelo entre os atos de alienação parental de crianças e adolescentes com a alienação de pessoas idosas, sugerindo que a nomenclatura conferida ao instituto se adapte para “alienação familiar”. A autora aduz, ainda, que o referido paralelo poderia ocorrer por meio de três perspectivas:

1. aproximando-se a característica de "pessoa em desenvolvimento" à senilidade; 2. aproximando-se os bens jurídicos lesionados pela prática da Alienação Parental e pela prática da alienação familiar; 3. aproximando-se os mecanismos de prática de alienação parental com os de prática de alienação familiar.

Não obstante a inadequação do nome do instituto quando aplicado aos idosos (que se pauta igualmente na tradução do termo americano cunhado por Richard Gardner), para os fins desse texto haverá a utilização do termo alienação parental inversa, por se tratar de denominação já consagrada pela doutrina brasileira, muito embora acredite-se que o termo “alienação psicológica/moral” pareça ser mais abrangente e adequado ao caso.

O principal fundamento para a alienação parental contra o idoso repousa na similitude da sua vulnerabilidade com a de uma criança ou adolescente. Não por outro motivo, a Constituição da República garantiu a ambos o princípio da prioridade integral, bem como uma tutela específica e protetiva (arts. 227 e 229).

Por certo, "a análise psicológica do termo ‘alienação’ traduz a diminuição da capacidade dos indivíduos em pensar ou agir por si próprios", o que precisa ser objeto de uma tutela protetiva estatal.

Contudo, falar em vulnerabilidades similares não pode, sequer de longe, remeter o intérprete a uma análise infantilizada da pessoa idosa, como se existisse uma presunção de incapacidade de pessoas mais velhas. Afinal, “o idoso não é individualmente incapaz, porém compõe um grupo vulnerável. A incapacidade é um estado da pessoa que presume a sua vulnerabilidade, mas a recíproca não é válida”.

Por isso, o tratamento, embora semelhante, terá que ser adaptado para as necessidades da pessoa idosa, que nada mais é do que um indivíduo adulto, com independência e autonomia para todos os atos da sua vida. Situações de incapacidade devem ser objeto de curatela ou da tomada de decisão apoiada e, mesmo em tais casos, via de regra não haverá influência sobre as decisões existenciais da sua vida (art. 85, § 1º, EPD).

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Por isso, embora o tratamento da alienação parental de idosos siga um padrão semelhante ao das crianças/adolescentes, deverá sempre levar em consideração as peculiaridades das pessoas envolvidas nessa equação. Ademais, existem distinções de relevo que devem sempre ser aferidas pelo intérprete, como é o caso da ocorrência da alienação parental em dois graus, como se passa a discorrer.

3 A ALIENAÇÃO PARENTAL INVERSA DE PRIMEIRO E SEGUNDO GRAUS

Com a alienação parental, tanto a criança quanto o idoso são privados do seu direito à convivência familiar e comunitária, sendo tais atos essencialmente vulneradores desse direito fundamental. Além disso, a alienação viola o direito à integridade psíquica da pessoa, consistindo esse abuso moral em uma violência emocional/psicológica que deve ser reprimida pelo Estado.

Assim, “os mesmos bens jurídicos considerados violados pelo artigo 3º da Lei n.º 12.318/2010 quanto às crianças e adolescentes, são direitos garantidos aos idosos”, , razão pela qual se sustenta que os idosos devem ser igualmente protegidos em situações de alienação parental.

Não obstante existam essas semelhanças, também deve se reforçar a existência de distinções entre a alienação parental de crianças/adolescentes e da alienação parental inversa.

Uma delas consiste na corriqueira motivação na realização dos atos alienantes e da existência de uma alienação parental em dois graus.

Isso porque, via de regra, a alienação parental inversa é realizada para que (a) haja o afastamento de um terceiro da convivência daquela pessoa idosa e que, com isso, seja possível (b) obter algum benefício da própria vítima alienada.

O idoso é, de certo modo, vítima em duplo aspecto, tanto nos atos de alienação quanto nos atos que se derivam desse ato inicial, como, por exemplo, na manipulação da sua vontade para a realização de negócios jurídicos gratuitos em benefício do alienante. Portanto, se em um primeiro momento haveria uma violência emocional/psicológica, em um segundo ocorreria uma violência patrimonial, derivada do ato inicial.

Fala-se, então, que o idoso é vítima de alienação parental em primeiro e segundo graus. A alienação parental inversa em primeiro grau consistiria nos atos de alienação propriamente ditos. Já a alienação parental em segundo grau versaria sobre os atos decorrentes dessa alienação inicialmente praticada e apenas perpetrada como derivação do ato de primeiro grau.

Embora a alienação parental em segundo grau possa existir acidentalmente quando o alienado é uma criança/adolescente, esta não costuma se apresentar de forma corriqueira. O que é comum é a utilização da criança alienada como instrumento de manipulação para a satisfação dos anseios emocionais e psíquicos mal resolvidos do próprio alienador em relação ao outro genitor. Não se costuma buscar um benefício adicional, derivado dos atos de alienação, em detrimento da criança.

Portanto, o idoso é muitas vezes utilizado como instrumento de si mesmo, já que tais atos de manipulação podem ser realizados para afastar uma pessoa que poderia bloquear atos malfeitores pretendidos pelo alienador.

Na apuração do suposto ato de alienação, é imprescindível que ambos os graus sejam detidamente analisados pela autoridade judicial, já que,

[...] assim como uma criança, o idoso dá sinais de que está sendo alienado. Basta analisar, por exemplo, se o idoso apresenta tristeza, irritabilidade quando está perto de um dos filhos que antes nutria empatia e amor e que agora demonstra repúdio. Saber se há uma disputa de herança ou provável elaboração de testamento também é importante.

Ainda diante desse cenário, deve-se recordar que a alienação deve ser interpretada a partir dos contemporâneos conceitos do direito dos idosos, em que a preservação da autonomia, independência e capacidade da pessoa incluída nessa faixa etária são as tônicas interpretativas de todos os direitos fundamentais titularizados pelos indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos. Aliás, o direito à autonomia e à autodeterminação, além de serem derivados de preceitos legais e constitucionais, também são extraídos de um consenso em âmbito internacional, por estarem incluídos nos Princípios das Nações Unidas para o Idoso.

Por isso, a alegação de alienação parental inversa deverá ser apurada e analisada sempre sob o prisma do direito fundamental à autonomia da pessoa idosa. É imprescindível, ainda, que a situação seja detidamente verificada pela autoridade judicial, avaliando-se a existência conjugada dos atos de alienação parental de primeiro e de segundo graus.

 

Para ler o artigo completo, acesse: https://www.academia.edu/43701120/A_teoria_dos_lugares_paralelos_interpretativos_na_aliena%C3%A7%C3%A3o_parental_inversa_de_primeiro_e_segundo_graus

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