O Direito à Cidade como Direito Humano Coletivo

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Resumo: A erradicação da pobreza, marginalização e a redução das desigualdades sociais, bem como a promoção do bem de todos, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade são vértices axiológicos de interpretação constitucional e núcleos centrais que emanam e validam os direitos fundamentais. O direito à cidade assimila idênticos propósitos, é desdobramento destes princípios e deles retira validade. A Constituição da República alterou o status jurídico das cidades brasileiras, sendo acompanhada pelo Estatuto da Cidade, ao tornar o planejamento urbano dos municípios obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes e determinar que o objetivo da política de desenvolvimento urbano, bem como, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A Constituição de 1988 reconhece pela primeira vez que as cidades, apesar de não fazerem parte da Federação, são espaços de poder político do Estado de Direito brasileiro, ao anuir esse poder político, a Constituição da República atribui força normativa vinculante a qualidade de vida urbana para seus habitantes, desta forma, seria possível afirmar que o direito à cidade é um direito humano coletivo? Haja visto, que o direito à cidade é titularizado por um grupo de pessoas, destacando-se que em relação a eles a ideia de grupo prepondera sobre a dos indivíduos que a compõem. Configura-se, pois, como direito indivisível vez que não há como repartir a satisfação do interesse grupal em quinhões atribuíveis aos indivíduos interessados (Lei número 8.078, de 11/09/90 – Código de Defesa do Consumidor, art. 81, parágrafo único), o desenvolvimento das funções sociais da cidade é de interesse de todos os seus habitantes, constituindo-se enquanto um interesse transindividual, uma vez que todos os munícipes são afetados pelas atividades, funções e impactos desempenhados em seu território, portanto, a relação que se estabelece entre os sujeitos e a cidade é um bem de vida difuso. O direito à cidade, mesmo não sendo um conceito jurídico positivado, diante do exposto, pode ser vislumbrado em várias partes do ordenamento jurídico, mesmo que em termos teóricos, faz-se necessária sua conceituação, para que possa ser posto na prática jurídica, tendo em vista a melhoria de vida de seus habitantes. Outro princípio jurídico a ser preservado ao se titular o direito à cidade, é o da função socioambiental da propriedade urbana, não só para esta, mas também, para as futuras gerações.

Palavras-chave: República Federativa do Brasil, Direito Humano Coletivo; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Abstract: Abstract: The eradication of poverty, marginalization and the reduction of social inequalities, as well as the promotion of the good of all, are fundamental objectives of the Federative Republic of Brazil, the principles of human dignity and solidarity are axiological vertices of constitutional interpretation and central nuclei that emanate and validate fundamental rights. The right to the city assimilates identical purposes, is an unfolding of these principles and derives validity from them. The Constitution of the Republic changed the legal status of Brazilian cities, being accompanied by the City Statute. By making the urban planning of municipalities mandatory for cities with more than 20 thousand inhabitants and determining that the objective of the urban development policy, as well as the full development of the city's social functions and ensuring the well-being of its inhabitants. The 1988 Constitution recognizes for the first time that cities, despite not being part of the Federation, are spaces of political power of the Brazilian Rule of Law. By approving this political power, the Constitution of the Republic attributes binding normative force to the quality of urban life for its inhabitants, in this way, would it be possible to affirm that the right to the city is a collective human right? As you can see, it is held by a group of people, highlighting that in relation to them the idea of a group prevails over that of the individuals that make it up. It is therefore configured as an indivisible right since there is no way to divide the satisfaction of group interest into shares attributable to interested individuals (Law number 8,078, of 11/09/90 – Consumer Protection Code, art. 81, sole paragraph ), the development of the city's social functions is of interest to all its inhabitants, constituting a trans-individual interest, since all citizens are affected by the activities, functions and impacts carried out in their territory, therefore, the relationship that is established between the subjects and the city is a diffuse good of life. The right to the city, even though it is not a positive legal concept, in view of the above, can be glimpsed in various parts of the legal system, even if in theoretical terms, its conceptualization is necessary, so that it can be put into legal practice, having with a view to improving the lives of its inhabitants. Another legal principle to be preserved when holding the right to the city is the socio-environmental function of urban property, not only for this one, but also for future generations.

Keywords: Federative Republic of Brazil, Collective Human Law; Principle of Human Dignity.

1 INTRODUÇÃO

Quando a propriedade privada assume sua função social, chega-se à segunda geração de direitos fundamentais. Para uma tentativa de conceituação do direito à cidade é de fundamental importância uma varredura do direito de propriedade até chegar ao ponto em que ele alcança sua função coletiva. A mudança de paradigma evoluiu e se consolidou, sendo o direito brasileiro um exemplo internacional de aceitação e regulação jurídica da ideia de direitos coletivos, a partir da Lei n. 7.347/85, a chamada Lei da Ação Civil Pública, o direito brasileiro institucionalizou o conceito de direitos coletivos em sentido amplo, a Constituição da República de 1988 elevou esta nova categoria ao status de direitos fundamentais no Título II da Carta Magna. Por fim o art. 81 da Lei 8.078/90 organizou definitivamente a estrutura conceitual dos direitos coletivos.

A nova ordem constitucional deflagrada em 1988 com o advento da Lei 10257/2001, autodenominada Estatuto da Cidade, reconhece o poder político das cidades e suas funções sociais, bem como o direito de se viver em uma cidade sustentável. Para a garantia desse, os princípios de Direito Urbanístico, ramo do direito público, devem ser aplicados de maneira a viabilizar o processo de urbanização e desenvolvimento das cidades, notadamente, no que tange ao planejamento e gestão das políticas urbanas, inviabilizando, desta forma, a redução do seu potencial por conta de uma leitura civilista de normas de Direito Público, uma leitura individualista de direitos coletivos (FERNANDES, 2006).

A devida compreensão da dimensão jurídica do processo de desenvolvimento urbano requer uma mudança paradigmática no tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária urbana no âmbito individualista do Direito Civil para colocá-lo no âmbito social do Direito urbanístico, de forma que o direito coletivo ao planejamento das cidades, criado pela constituição Federal de 1988, seja materializado.

Para tentativa de uma conceituação do direito à cidade como direito humano coletivo, serão desenvolvidos apontamentos históricos, sociais e políticos sobre o direito de propriedade, sua função social, bem como sua correlação com os Direitos Fundamentais. Em seguida, será feita uma análise dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, que regulamentam o Estatuto, o qual veio a constitucionalizar o Direito Urbanístico, assim como, a função social da cidade e da propriedade urbana, além de ressaltar a importância do direito à cidade; enquadrando-a entre os direitos coletivos, para a garantia da sua efetividade, bem como para ressaltar a importância da preservação do princípio da função socioambiental do Direito Urbanístico. Ao final, serão apresentadas as conclusões.

2 APONTAMENTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E JURÍDICOS

Abordar a história da propriedade, é falar sobre a história da humanidade. A propriedade é a razão pela qual evoluímos ou involuímos em direção aos direitos fundamentais. Propriedade é sinônimo de poder econômico e político. Não existe Estado sem território, não existe território sem proteção do Estado.

Primitivamente, a propriedade era coletiva, as terras e os instrumentos de defesa e produção pertenciam à coletividade. Na Antiguidade Clássica surgem os primeiros traços individualistas da propriedade. A propriedade romana passou por três distintos estágios: coletiva, familial e individual sendo que esta última prevaleceu no tempo e influenciou sobremaneira o direito de propriedade no Ocidente.

Na primeira fase da Idade Média, notadamente com o pensamento de São Tomás, tem-se ideias acerca do influxo de interesses coletivos sobre a propriedade individual, bem comum que era definido pelo clero e pela nobreza. Contudo, é a gênese do que adiante se consolidou como função social da propriedade.

A Revolução Francesa é a ruptura com os regimes antecedentes e a propriedade foi uma questão central. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 apresenta rol de direitos individuais do homem, entre eles uma propriedade inviolável e sagrada. É a primeira geração de direitos fundamentais.

O paradigma liberal implicava no distanciamento do Estado da economia, omisso frente aos problemas sociais e econômicos. A lei visava proteger cidadão frente ao Estado, o Direito tinha como função estabelecer um mínimo de normas que define os limites de atuação do Estado (BARACHO JUNIOR, 2000:54).

As Constituições dessa tradição estatal declararam os direitos individuais, cujo único limite era o direito do outro. Nesse contexto, a propriedade era vista como um direito absoluto no qual o interesse do privado se sobrepunha ao público, inatingível por interferências estatais. Os Códigos Civis Francês (1804) e o Brasileiro (1916) espelham esses conceitos e essa visão absolutista da propriedade, mas existiam algumas restrições, principalmente no direito de vizinhança.

As lutas contra a exploração, pelo direito de associação, por direitos sociais, econômicos e pelo amparo estatal na regulação da economia foram significativas na ruptura do paradigma Liberal e tiveram expressão máxima na Revolução Russa e na Constituição Mexicana, ambas datadas de 1917.

A noção de um certo grau de intervenção estatal na economia tem por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais de vida mínimas para uma existência digna.

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Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se no âmbito dos assim denominados direitos de segunda geração (ou dimensão), correspondendo à evolução do Estado de Direito, na sua matriz liberal burguesa, para o Estado democrático e social de Direito, consagrando-se principalmente após a Segunda Guerra Mundial.

O paradigma estatal social consolidou os direitos fundamentais de segunda geração (sociais e econômicos) e caracterizou-se pela prevalência do direito público sobre o privado. É reconhecido aos cidadãos direitos como moradia e trabalho.

A propriedade perde seu cunho absolutista e é direcionada aos interesses coletivos, surge aqui o instituto da desapropriação, com a finalidade de adequar a propriedade particular a interesses comuns. A propriedade privada não tem mais caráter absoluto, mas funcional, à medida que deve se voltar para sua função social (BARACHO JUNIOR, 2000:58).

Ao longo do século XX o Estado Social de Direito entre em crise e surge uma nova tradição estatal: o Estado Democrático de Direito. Esse paradigma é marcado pela concretização dos direitos de terceira geração pertencentes não ao indivíduo, mas à sociedade como um todo e por isso são denominados de direitos difusos. A propriedade também é revista e repensada e só faz sentido se atender ao bem da coletividade, se apresentar em conformidade com o direito do outro e o da coletividade, eis uma nova ordem de limitações à propriedade.

No Brasil, início da década de 60 iniciaram-se os movimentos para reformas estruturais da questão fundiária na zona rural e urbana. Todavia, o golpe militar (1964-1984) suprimiu a democracia e a realização de tais reformas foi abortada. Os temas da reforma urbana reapareceram nos anos 70 e 80, numa época em que os movimentos sociais aos poucos ganhavam mais visibilidade e relevância política. Albergavam como importante dimensão: a politização da questão urbana, compreendida como elemento fundamental para o processo de democratização da sociedade brasileira.

A efetiva mudança deste paradigma teve aspiração popular com a apresentação de uma proposta de emenda popular à Assembléia Nacional Constituinte, com vistas de introduzir a reforma urbana. A Constituição da República ganhou, então, um capítulo sobre a política urbana, inserido dentro do título destinado à ordem econômica e financeira.

Entre os anos de 1940 e 1991 o êxodo rural fez com que a população das cidades crescesse de 31,2% para 75% do total. O despojamento de pessoas do território onde moravam em razão das construções de barragens hidroelétricas foi significativo fator para esta urbanização. Já em 2000, da população total de 170 milhões, 81,2% se encontravam em áreas urbanas.

O crescimento rápido das cidades brasileiras ocorreu sem uma base jurídica adequada, assim, como, a falta de implementação de qualquer política pública específica, provocou, então, mudanças drásticas na sociedade brasileira, de ordem socioeconômica, territorial, cultural e ambiental. Todo o processo se deu sob o paradigma jurídico do civilismo clássico, que não correspondia às necessidades de enfrentamento desse fenômeno multidimensional, complexo e com tantas implicações profundas que levou à transformação de um país de base agrária exportadora em um país de base urbano-industrial.

Os artigos 182 e 183, alteraram o status jurídico das cidades, reconheceram a plena urbanização do Brasil e adotaram organização socioeconômica e político-territorial diversas dos institutos civilistas de 1916. Mais de dez anos depois, foi promulgada lei regulamentadora desses dispositivos constitucionais. Este marco fundamental intitulado Estatuto da Cidade (2005) foi a razão pela qual o Brasil recebeu inúmeros prêmios internacionais.

A ordem urbanística passou a ser tutelada por meio da ação civil pública em razão de alterações legais trazidas pelo Estatuto da Cidade. Este instrumento de proteção aos interesses difusos dos habitantes da cidade tem como papel buscar o efetivo cumprimento das normas de direito urbanístico e das funções socioambientais das cidades. Deve ser conferida legitimidade de ação na esfera administrativa e judicial a qualquer habitante ou grupo de moradores para atuar da defesa dessas funções sociais e da ordem urbanística (OSÓRIO, 2006).

O Estatuto da Cidade originou-se do Projeto de Lei n.º 2.191, de 1989, que recebeu o n.º 181/89 no Senado Federal e na Câmara dos Deputados o n.º 5.788/90. Em 18 de junho de 2001, foi aprovado no Congresso e, finalmente, sancionado em 10 de julho deste mesmo ano pelo Presidente da República como a Lei 10257/01.

O Estatuto inovou o direito urbanístico ao disciplinar o uso da propriedade urbana com vistas a assegurar o bem-estar dos cidadãos, o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade urbana, visando garantir o direito às cidades sustentáveis.

Entre as inovações podem-se mencionar os institutos políticos e jurídicos previstos no inciso V, do artigo 4°: concessão de uso especial para fins de moradia; parcelamento do solo; edificação ou utilização compulsória; usucapião especial de imóvel urbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; transferência do direito de construir; operações urbanas consorciadas; e consórcio imobiliário (art. 46).

O Estatuto da Cidade define o direito às cidades sustentáveis como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I). Institui, de forma inovadora, a gestão democrática e participativa da cidade, colocando em primeiro plano a democracia direta.

3 O DIREITO À CIDADE COMO DIREITO HUMANO COLETIVO

A trajetória das lutas sociais pela reforma urbana sedimenta a aurora do direito à cidade sustentável como direito fundamental emergente no sistema jurídico nacional, ganhando forma e tratamento jurídico recentes, ou seja, perpassa o campo político e alcança o jurídico.

A Constituição da República vale-se da expressão “cidade(s)” em poucas oportunidades: arts. 29, XIII; 182, caput; 182, § 1º; 182 § 2º; e 242 § 2º. A última é uma menção específica à cidade do Rio de Janeiro, diferente da indeterminação adotada nas demais. Já na primeira, o constituinte expressa distintamente a existência de interesses específicos do Município e da cidade, o que deixa entrever o reconhecimento das cidades como participantes do espaço político do Estado de Direito brasileiro.

É no artigo 182 e seus parágrafos que esse poder político é efetivamente reconhecido. Com efeito, quando a Lei Maior determina que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, o planejamento urbano torna-se obrigatório para cidades com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes; e condiciona a função social da propriedade urbana ao atendimento das exigências fundamentais de ordenação da cidade.

Muito embora não se encontre formal e institucionalmente entre as unidades federadas que formam a República Federativa do Brasil (art. 1º, caput, CR/88), a cidade, na nova ordem constitucional, abandona seu caráter meramente físico e deixa de ser unicamente sede administrativa. Agora, materialmente ocupa espaço político como um conjunto de instituições e atores que intervêm na sua gestão e na implementação e desenvolvimento das políticas urbanas (CARTA, 2005).

A cidade assume a condição de espaço coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a todos os seus habitantes, onde o usufruto coletivo da riqueza, bens e conhecimentos são garantidos a todos. O seu território é lugar de exercício e cumprimento dos direitos difusos e a sua gestão se dá de forma democrática e coletiva.

O planejamento urbano pertence à cidade e tem por objetivo atender a uma função social que apresenta como componentes essenciais: moradia, meio ambiente equilibrado, equipamentos e serviços urbanos, saneamento básico, transporte público, cultura e lazer.

À toda a pessoa, sem discriminação de qualquer ordem, deve ser assegurado o direito de se vivem em uma cidade que tenha como princípios norteadores a sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. A qualidade de vida urbana recebe influxos constitucionais.

O direito à cidade como direito humano coletivo, visa garantir às pessoas que nela habitam – e para as futuras gerações – condições dignas de vida, de exercitar plenamente a cidadania e os direitos fundamentais (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais), de participar da gestão da cidade, de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Com o Estatuto da Cidade, o direito à cidade sustentável se transforma num novo direito fundamental, instituído em decorrência do princípio constitucional das funções sociais da cidade (SAULE, 2007).

A função socioambiental é elemento inerente e estruturante das cidades e da propriedade urbana, essência da qual eles não se dissociam. Logo, a função social não se restringe à condição de limite, vai além, exige que a coletividade seja beneficiada, impondo ao particular e ao poder público comportamentos positivos.

O desenvolvimento das funções sociais da cidade é de interesse de todos os seus habitantes, constituindo-se enquanto um interesse difuso, uma vez que todos os munícipes são afetados pelas atividades, funções e impactos desempenhados no seu território. Portanto, a relação que se estabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem de vida difuso (OSÓRIO, 2006), configurando-se como um direito humano coletivo.

Como princípio que busca a construção de uma nova ética urbana, a função social da cidade almeja o bem-estar dos cidadãos e o desenvolvimento urbano sustentável, isto é, o desenvolvimento econômico que alia harmonia ambiental e inclusão social, que não desconsidere o valor humano para o desenvolvimento das cidades.

O direito à cidade é concebido com objetivos e elementos próprios, integrando a categoria dos direitos coletivos e difusos, ou seja, é transindividual, de natureza indisponível, cujos titulares são pessoas indeterminadas ligadas pela circunstância fática de habitarem o mesmo espaço físico e político (art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei 8078/90).

O próprio Estatuto da Cidade assinala que suas normas são de interesse social e destinadas a regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (parágrafo único art. 1º).

O interesse social que permeia o Estatuto da Cidade e serve de base interpretativa é detectado quando o Estado encontra-se diante dos interesses diretamente ligados às camadas mais pobres da população e ao povo em geral, quando atua visando a melhoria da condição de vida, distribuição de riqueza, atenuação das desigualdades (FAGUNDES, 1984).

O direito à cidade como direito humano coletivo, além de consubstanciar em garantia contra a intervenção indevida do poder público e controlar medidas restritivas, impõe uma postura ativa do Estado, obrigando-o a disponibilizar prestações de natureza jurídica e material, a criar pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados (prestações positivas).

Estas ideias configuram o que se chama de direitos fundamentais de segunda geração (ou dimensão), também denominados de direitos sociais. As categorias de direitos humanos fundamentais integram-se em um todo harmônico, mediante influências recíprocas, até porque os direitos individuais estão contaminados de dimensão social, de tal sorte que os direitos sociais lhes quebram o formalismo e o sentido abstrato (SILVA, 2006).

A integração entre os direitos individuais e sociais extirpa dúvidas quanto a se enquadrarem os segundos como direitos fundamentais, o que também pode ser compreendido pela simples constatação de que eles vêm decantados no art. 6º da Carta Magna que se encontra sob o título II: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

O direito à cidade como direito humano coletivo, incorpora-se ao patrimônio da sociedade urbana brasileira, sendo defeso ao Estado tolher esta conquista, seja pela sua titulação de cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, CR/88) seja em decorrência do princípio da proibição de retrocesso.

Introduzida e positivada em grau máximo de intangibilidade no §4º do art. 60, deve se entender que a rigidez formal de proteção estabelecida em favor dos conteúdos ali introduzidos não abrange apenas o teor material dos direitos da primeira geração, herdados pelo constitucionalismo contemporâneo, senão que se estende por igual aos direitos da segunda dimensão, a saber, os direitos sociais (BONAVIDES, 2007).

Os direitos de segunda geração atravessaram período de juridicidade questionada, sujeitados à condição de normas programáticas em virtude de lhes carecer as habituais garantias conferidas aos direitos da primeira geração. Logo, deixaram de ser observados e executados, situação que se alterou com a previsão constitucional de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, que, por óbvio, estende-se ao direito à cidade justa e sustentável.

Recorde-se o sentido fundamental desta aplicabilidade imediata: os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e atuais, por via direta da Constituição. Isto é, não são normas para produção de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais (CANOTILHO, 2003).

A aplicação e a interpretação do direito à cidade como direito humano coletivo, deve sempre galgar a sua máxima efetividade pois, as normas jurídicas devem desempenhar função útil no ordenamento. Veda-se uma interpretação que lhe retire ou subtraia a sua razão de existir. Com efeito, a interpretação está diretamente ligada à aplicação do Direito, não se presta a enunciar abstratamente conceitos.

A uma norma fundamental deve ser atribuída o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional – mormente quando se trate de norma de direitos fundamentais – é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação e de realização (MIRANDA, 2003)

A par de gozar da máxima efetividade e aplicabilidade imediata, o direito à cidade, para assegurar seu caráter de direito humano coletivo, características próprias dos direitos fundamentais: a indisponibilidade, a imprescritibilidade e a universalidade. A primeira, em seu sentido amplo, inviabiliza sua alienação, transferência e renúncia; ao passo que a segunda determina que ele nunca deixe de ser exigível.

A universalidade seria a marca estrutural desses direitos fundamentais, entendida no sentido puramente lógico ou valorativo de atribuição universal a todos os homens. É o caráter universal a grande forma dos direitos para a maioria dos pensadores, notadamente ocidentais. Universalidade subjetiva e objetiva que, enquanto tal, desconhece fronteiras, etnias, cor, raça, sexo e religiões (SAMPAIO, 2004).

Compreender e garantir o direito à cidade, efetivar suas funções sociais é contribuir para a promoção da justiça social, fomentar o desenvolvimento sustentável e permitir a inclusão social. A eficácia (jurídica e social) do direito à cidade justa e sustentável deve ser objeto de permanente otimização, na medida em que tem como objetivo a constante otimização do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e a redução paulatina das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III CF/88).

O direito à cidade como direito humano coletivo, é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos (CARTA, 2005). Negar o direito à cidade sustentável, bem como, sua condição de direito coletivo, é confrontar a Constituição da República e obrar em sentido diametralmente oposto à dignidade da pessoa humana.

Reconhecido na ordem jurídica como direito fundamental, a não observância do direito às cidades sustentáveis deve acarretar a responsabilidade civil, administrativa e criminal dos agentes públicos ou privados que causarem lesão a este direito. A omissão dos agentes públicos que implique a não aplicação e adoção dos princípios constitucionais na implementação da política urbana também configura violação a este direito (SAULE, 2007).

Para assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade como interesse difuso de todos seus habitantes e permitir a todos o efetivo gozo do direito à cidade sustentável se faz necessário renovar o pensamento jurídico e conferir eficácia aos instrumentos processuais existentes.

É preciso que se entenda que o Direito não é um sistema objetivo, fechado em si próprio ou neutro em relação aos processos sociais. Ë preciso que se reconheça que o Direito brasileiro tem um papel central no processo de exclusão social e nos processos de segregação territorial, para que se possa avançar no sentido de compreender como o Direito pode ser um fator e um processo de transformação social e de reforma urbana (FERNANDES, 2006).

4 CONCLUSÃO

É na cidade que se desenvolve a vida moderna. A urbanização se deu em um processo de degradação ambiental e aviltamento da dignidade humana, desprovido de aparato jurídico adequado e da implementação de políticas públicas.

A noção política e cultural do direito à cidade sustentável, como carro chefe da política urbana, retrata a defesa da construção de uma ética urbana fundamentada na justiça social e cidadania. Afirma-se, assim, a prevalência dos direitos humanos e se estabelecem preceitos, instrumentos e procedimentos para viabilizar as transformações necessárias para a cidade exercer sua função social.

Cidade e cidadania são o mesmo tema. Não há cidadania sem a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades. Não há como promover mudanças significativas e estruturais desse padrão de exclusão social, segregação territorial, degradação ambiental e ilegalidade urbana que caracteriza o processo de urbanização no Brasil, se não for mediante uma reforma do Direito, com o envolvimento sistemático dos operadores do Direito (FERNANDES, 2006).

Ao se tutelar o direito à cidade sustentável, tutela-se o direito à vida, matriz de todos os direitos fundamentais, e ao lhe conferir efetividade resguarda-se todo o plexo de direitos e garantias fundamentais de toda uma coletividade, pois não há existência digna no meio urbano sem uma cidade sustentável e atenta às suas funções sociais.

O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art, 5° §2°, da CF aponta para existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional. Digna de nota é inclusão do Direito à moradia, no art. 6º da CF (dos direitos sociais). Explicitar a possibilidade de reconhecer direitos fundamentais não escritos, implícitos bem como decorrentes dos princípios constitucionais, tende a elucidar à existência de um sistema de direitos fundamentais aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos sujeitos aos influxos do mundo circundante, recepcionando o direito à cidade como direito humano, e sem dúvida, coletivo.

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Sobre os autores
Giuseppe Gazzinelli Silva de Barros

Advogado formado pela UFMG, bacharel em Ciências Contábeis, pós-graduado em Direito Público e Mestrando em Direito nas Relações Econômicas e Sociais da Faculdade de Direito Milton Campos.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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