O princípio da fundamentação e o juiz de garantias

28/08/2023 às 11:25
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O PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO E O JUIZ DE GARANTIAS

Francisco Valadares Neto*

RESUMO. Inserido no arcabouço processual penal através da Lei Federal n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime), a figura do juiz das garantias foi criado com o finalidade de assegurar o respeito a direitos fundamentais da pessoa humana e reduzir o risco da parcialidade nos julgamentos. O presente artigo visa analisar a necessidade de implantação, ainda que já reconhecida sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do juiz de garantias no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto será abordado o postulado da fundamentação das decisões judiciais, previsto em sede constitucional e infraconstitucional, como inibidor da parcialidade judicial, um dos fundamentos para a implantação do juiz de garantias. Adotou-se na pesquisa a metodologia referencial bibliográfica e jurisprudencial, utilizando-se de livros, artigos e obras que versam a respeito do tema ora estudado e da legislação brasileira.

Palavras-chave: Juiz de garantias. Fundamentação das decisões. Desnecessidade de implantação.

ABSTRACT Inserted in the procedural criminal framework through Federal Law n. 13,964, of December 24, 2019 (Anti-Crime Package), the figure of the judge of guarantees was created with the aim of guaranteeing respect for the fundamental rights of the human person and reducing the risk of partiality in judgments. This article aims to analyze the need for implementation, even though its constitutionality has already been recognized by the Federal Supreme Court (STF), the judge of guarantees in the Brazilian legal system. To do so, the postulate of the reasoning of judicial decisions, provided for in constitutional and infraconstitutional terms, as an inhibitor of judicial partiality, one of the foundations for the implementation of the guarantees judge, will be addressed. The bibliographical and jurisprudential referential methodology was adopted in the research, using books, articles and works that deal with the theme now trained and the Brazilian legislation.

Keywords: Judge of guarantees. Grounds for decisions. No need for deployment.

* Advogado. Graduado em Direito (ILES/ULBRA - 2001. Pós graduado em Direito Público Constitucional (FACIP – 2005). Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA – 2015). Palestrante. Escritor. Professor.

O PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO E O JUIZ DE GARANTIAS

Inserido no arcabouço processual penal brasileiro através da Lei Federal n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime), a figura do juiz das garantias foi criado com o fim de controlar a legalidade da investigação criminal e proteger e garantir direitos individuais da pessoa (art. 3-B, CPP).

Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (...). (Grifos e omissões nossos).

A implementação dos juiz das garantias, para seus defensores - em síntese, irá privilegiar a celeridade e qualidade das investigações e, sobremodos, preservará a imparcialidade do magistrado julgador da causa.

Os opositores do juiz de garantidas, por sua vez e sem embargo de outras considerações, sustentam que o instituto impactará expressivamente no orçamento público brasileiro e que insuficiente o número de magistrados para cumprir com os objetivos do instituto.

Todos os argumentos são válidos e sólidos.

Fato é que a figura do juiz das garantias é uma realidade jurídica brasileira.

O juiz das garantias foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, nos julgamentos das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, determinou a obrigatoriedade de sua instalação em todo o território brasileiro em até 12 (doze) meses, podendo esse prazo ser prorrogado por igual período.

Para a maioria dos ministros da Excelsa Corte, a instituição do juiz de garantias assegurará o respeito a direitos fundamentais da pessoa humana e reduzirá sensivelmente o risco da parcialidade nos julgamentos.

Ainda que já decidida sua instituição pela Corte Maior, algumas ponderações devem ser realizadas sobre a figura do juiz das garantias, em especial no que diz respeito a existência de mecanismos jurídicos inibidores da tão propalada parcialidade judicial, um dos sustentáculos para a implementação do instituto no ordenamento jurídico pátrio.

O dever de motivar as decisões é um desses mecanismos.

Antes do enfrentamento do tema propriamente dito - existência de mecanismos legais inibidores da parcialidade judicial, imperiosa algumas considerações sobre imparcialidade, subjetividade e neutralidade.

A intenção de imparcialidade de qualquer pessoa é louvável, contudo, de difícil efetividade: o ser humano, em sua vida privada e profissional, sofre influências diversificadas (cultural, familiar, pessoal, educacional, sociais, etc.) que, inevitavelmente, são formadoras de sentimentos diversos na pessoa (emoções, convicções, preferencias, compaixão, amor, etc.).

Quando submetido a qualquer situação, o homem, em razão de suas influências e sentimentos, possui conceitos preestabelecidos e opiniões sobre questões a ele submetidas, demonstrando, inevitavelmente, suas preferências, empatias e antipatias, grau de aceitação e reprovação de condutas.

Não se mostra crível, pois, a admissão de neutralidade incondicional da pessoa.

Se a premissa anterior é verdadeira – acredita-se que seja -, a toda evidência, cai por terra o fundamento de que a criação e instalação do juiz de garantias elidirá a parcialidade de qualquer magistrado na aplicação da lei penal.

A imparcialidade de magistrados (de garantia ou de instrução), em linhas gerais, deve se caracterizar pela aplicação do direito frente a prova a ele destinada, abstraindo-se de qualquer motivação interna ou externa no exercício de suas funções.

O juiz, ainda que tenha pontos de vistas pessoais sobre determinado assunto, somente poderá dizer o direito e a justiça levando em consideração a prova a ele submetida, aplicando a lei ao caso analisado e fundamentando (motivando) suas decisões.

A fundamentação das decisões elide a parcialidade.

O dever de fundamentação encontra-se inserido na Constituição Federal de 1988 (art. 93, IX) que expressamente declara que todos as decisões do Poder Judiciário serão motivadas, pena de nulidade processual:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) 

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (...). (Grifos e omissões nossos).

Fundamentar uma decisão judicial significa dizer que o juiz deve analisar todas as questões fáticas e jurídicas postas para julgamento (art. 381, CPP c/c art. 489, CPC), devendo demonstrar a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação do ato (art. 20, LINDB):

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Art. 381.  A sentença conterá:

I - os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

II - a exposição sucinta da acusação e da defesa;

III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

IV - a indicação dos artigos de lei aplicados;

V - o dispositivo;

VI - a data e a assinatura do juiz. (Grifos nossos).

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

I – O relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II – Os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III – O dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. (Grifos nossos).

LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DE DIREITO BRASILEIRO

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.                

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Grifos nossos).       

Além de expressar o significado de fundamentação de uma decisão judicial, o arcabouço jurídico pátrio assinala não ser motivada, dentre outras hipóteses, o decisum que não explicar a sua relação com a causa ou a questão decidida, que não explicar o motivo concreto de incidência ao caso analisado e que for em desconformidade com súmulas ou precedentes jurisprudenciais.

Na seara criminal, isto o estampado no comando legal do §2º do artigo 315 do Código de Processo Penal:

Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.

(...)

§2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:      

I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;  

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;   

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;  

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; 

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (...). (Grifos e omissões nossos).

Em mesmo sentido, o Código de Processo Civil – de aplicação subsidiária ao processo penal -, consagra também o postulado da motivação das decisões, assinalando que, dentre outras hipóteses, não se considera fundamentada a decisão que não explicar a sua relação com a causa ou a questão decidida e que não explicar o motivo concreto de incidência ao caso analisado:

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. (Grifos nossos). 

Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. (...). (Grifos e omissões nossos).

Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. (...). (Grifos e omissões nossos).

Art. 489. São elementos essenciais da sentença

(...) 

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito

(...) 

§1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; 

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; 

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; 

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; 

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; 

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (...). (Grifos e omissões nossos).

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Extirpando quaisquer dúvidas sobre o dever de motivação das decisões judiciais, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral, expressou que exigente a fundamentação de qualquer decisão judicial, ainda que não seja necessário o exame pormenorizado das questões avultadas pelas partes:

Tema 339. STF. O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou a decisão sejam fundamentadas, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas.

Como se colhe das argumentações precedentes, sem quaisquer dúvidas, tem-se que a imparcialidade de qualquer magistrado (de garantia ou de instrução) é assegurada através de seu dever de motivação das decisões.

Alheando-se qualquer magistrado desse comando pétreo, o procedimento judicial deve ser declarado nulo, sendo farto e uníssono, neste sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

HABEAS CORPUS  ACÓRDÃOS PROFERIDOS EM SEDE DE APELAÇÃO E DE EMBARGOS DECLARATÓRIOS  IMPUTAÇÃO DE ROUBO DUPLAMENTE QUALIFICADO  DECISÕES QUE NÃO ANALISARAM OS ARGUMENTOS SUSCITADOS PELA DEFESA DO RÉU  EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE MOTIVAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS  INOBSERVÂNCIA  NULIDADE DO ACÓRDÃO - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUI PRESSUPOSTO DE LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS.  A fundamentação dos atos decisórios qualifica-se como pressuposto constitucional de validade e eficácia das decisões emanadas do Poder Judiciário. A inobservância do dever imposto pelo artigo 93, IX, da Carta Política, precisamente por traduzir grave transgressão de natureza constitucional, afeta a legitimidade jurídica do ato decisório e gera, de maneira irremissível, a consequente nulidade do pronunciamento judicial. Precedentes. A DECISÃO JUDICIAL DEVE ANALISAR TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA DEFESA DO RÉU. — Reveste-se de nulidade o ato decisório, que, descumprindo o mandamento constitucional que impõe a qualquer juiz ou Tribunal o dever de motivar a sentença ou o acórdão, deixa de examinar, com sensível prejuízo para o réu, fundamento relevante em que se apoia a defesa técnica do acusado. (STF. HC 74073, ministro relator CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 20/05/1997). (Grifos nossos).

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO DUPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO. JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO. ACÓRDÃO QUE ADOTA COMO RAZÕES DE DECIDIR MOTIVAÇÃO CONTIDA NA SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU E EM PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FUNDAMENTAÇÃO PER RELATIONEM NÃO CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. NULIDADE ABSOLUTA RECONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A necessidade de motivação das decisões judiciais se justifica na medida em que só podem ser controladas ou impugnadas se as razões que as justificaram forem devidamente apresentadas, razão pela qual, ante a inteligência do art. 93, IX, da Carta Maior, se revelam nulas as decisões judiciais desprovidas de fundamentação autônoma. 2. As Cortes Superiores de Justiça têm consolidado entendimento jurisprudencial no sentido de não se afigurar desprovido de motivação o julgamento colegiado que ratifica as razões de decidir adotadas na sentença de primeiro grau, desde que haja a sua transcrição no acórdão, utilizando-se da denominada fundamentação per relationem. 3. In casu, porém, a simples remissão empreendida pelo Desembargador Relator no voto condutor do acórdão prolatado em sede de apelação, não permite aferir quais foram as razões ou fundamentos da sentença condenatória ou do parecer ministerial incorporados à sua decisão, não se podendo constatar, ainda, se satisfatoriamente rechaçadas todas as alegações formuladas pela defesa no mencionado apelo, exsurgindo, daí, a nulidade do julgado. Precedentes: HC n.º 219572/SP, DJe de 05/11/2012 e HC n.º 210981/SP, DJe de 21/11/2011. 4. Ordem de habeas corpus concedida para, reconhecendo a nulidade do acórdão hostilizado por falta de motivação, determinar que seja realizado novo julgamento da Apelação Criminal n.º 0047834-73.2005.8.26.0050, promovendo-se a devida fundamentação do decisum. (STJ. HC 220.562/SP, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 25/02/2013). (Grifos nossos).

Não fundamentar uma decisão judicial, portanto, é atentar contra o próprio Estado Democrático de Direito fundado, dentre outros, no princípio da legalidade com fins de garantir e proteger os direitos fundamentais da pessoa humana.

A legalidade se materializa através dos postulado do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/1988) e seus consectários, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF/1988):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial e administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (...). (Grifos e omissões nossos).

O princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/1988) estabelece a obrigatoriedade da existência de processo legalmente constituído para privação de direitos ligados a liberdade e a propriedade, ou seja, qualquer agente somente poderá processado e julgado em conformidade com a lei.

Os postulados do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF/1988) asseguram ao agente o direito de contradizer e defender-se utilizando os meios e recursos a ele colocados à disposição pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Além de ser processado e julgado através de um procedimento legalmente instituído e com o exercício das prerrogativas do contraditório e da ampla defesa, qualquer acusado deve ser julgado por uma autoridade independente e imparcial, conforme consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Art. 10 - toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. (Grifos nossos).

A imparcialidade conduz a uma atuação desinteressada do juiz no julgamento.

A atuação alheia de sentimentos pessoais do juiz - de garantias ou instrutório - no julgamento da causa se dará quando a formação de sua convicção se fundar na apreciação da prova produzida sob o crivo do contraditório judicial, conforme previamente previsto no artigo 155 do Código de Processo Penal:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.                   

Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil. (Grifos nossos).

A fundamentação das decisões, em conclusão, é inibidora da parcialidade.

A concepção de imparcialidade do magistrado, fundamento utilizado para a criação e implantação da figura do juiz de garantia no sistema processual penal brasileiro, não subsiste.

A subjetividade humana está relacionada a sua capacidade de empatia (ou não) que nos permite a percepção de diversas perspectivas, ampliando a compreensão sobre determinado assunto.

O ser humano, em qualquer área de atuação e em sua vida privada, sofre influências diversificadas (cultural, familiar, pessoais, educacionais, sociais, etc.), não sendo crível, pois, admitir-se neutralidade sem a manifestação das particularidades de cada pessoa.

A subjetividade humana, portanto, não conduz a parcialidade, na medida em que

“(...) Convicções pessoais de um magistrado não constituem, per se, uma vulneração à imparcialidade. A opinião e as crenças de um juiz, que são aceitáveis, devem ser distinguidas da parcialidade, que é inaceitável. (...)”. (Nações Unidas. Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. P. 68). (Grifos e omissões nossos).

O que conduz a parcialidade é o julgar em desconformidade com as provas.

Neste particular aspecto e também a corroborar as afirmativas precedentes, certo que a Constituição Federal de 1988 reconhece a instituição do júri, assegurando-lhe a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgar crimes dolosos contra a vida:

Art. 5º. (...)

(...)

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (...). (Grifos e omissões nossos).

Particularmente a soberania das decisões do júri, os tribunais brasileiros têm firmado entendimento de que suas decisões, ainda que não motivadas pelos jurados, não são absolutas e irrevogáveis, podendo as instâncias superiores cassá-las quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, d, DO CPP). NÃO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS. 1. A possibilidade de recurso de apelação, prevista no art. 593, I, “d”, do Código de Processo Penal, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, não é incompatível com a Constituição Federal, uma vez que a nova decisão também será dada pelo Tribunal do Júri. Precedentes 2. O exame do suporte probatório, de forma a infirmar o entendimento do Tribunal de apelação, é providência incompatível com os estreitos limites do habeas corpus. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.” (HC 142621 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 15/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 28-09-2017 PUBLIC 29-09- 2017). (Grifos nossos).

As decisões do júri, portanto, não são absolutas. Pensar de forma diversa é negar vigência ao §3º e alínea “d” do inciso III do artigo 593 do Código de Processo Penal:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: 

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos

(...)

§3o Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação. (...). (Grifos e omissões nossos).

Reafirme-se, a fundamentação das decisões é inibidora da parcialidade.

Para coibir a parcialidade judicial, independentemente de qualquer norma – onde se insere a figura do juízo de garantias -, existem mecanismos postos à disposição dos jurisdicionados para enfrentá-la.

O postulado da fundamentação das decisões judiciais é um deles.

Sobre o autor
Francisco Valadares Neto

Graduado Bacharel em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Ji-Paraná (ILES/ULBRA). Concluiu, em 2004, pós-graduação em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco (FACIP), obtendo o título de Pós-Graduado em Direito Constitucional. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, na cidade de Buenos Aires – Argentina (2016). Atualmente, além das atividades de advogado, exerce o cargo de Procurador Jurídico do Município de Brasiléia – Estado do Acre.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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