O costume jurídico enquanto fonte do direito brasileiro (the legal custom as a source of the brazilian law)

27/01/2023 às 13:09
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Reis Friede[1]

 

Resumo: o Direito brasileiro é predominantemente escrito, figurando a lei como a principal fonte do sistema normativo pátrio. Não obstante, a presente constatação não afasta a possibilidade de haver normas costumeiras, cujo processo de criação não se opera de modo institucionalizado, mas através da interferência da própria sociedade.

 

Palavras-chave: fontes do Direito; costume jurídico.

 

Abstract: The Brazilian Law is mainly written, being the law the main source of the national normative system. However, this confirmation does not withdraw the possible existence of customary norms, which creational process does not operate in an institutionalized way, but through the interference of society itself.

 

Keywords: Law Sources; Legal Custom.

 

1. Introdução

2. Definição de Fontes do Direito

3. Classificação das Fontes do Direito

4. Costume Jurídico

4.1. Elementos

4.2. Espécies

4.3. Validade

4.4. Vigência

4.5. Costume Jurídico e Princípio da Legalidade Penal

4.6. A Importância do Costume Jurídico no Direito Internacional

5. Conclusão

6. Referências Bibliográficas

1. Introdução

 

A doutrina alude à existência de dois grandes sistemas jurídicos: o denominado sistema romano-germânico (ou civil law), do qual o Direito brasileiro é um típico exemplo, figurando a lei escrita como a principal fonte, e o sistema anglo-saxão (ou  common law), no qual os precedentes judiciais adquirem status fundamental, cuja força vinculante é reconhecida e aceita.

Conforme explica REALE (2002, p. 97-98), a expressão common law designa a “experiência jurídica da Inglaterra, dos Estados Unidos da América, e de outros países de igual tradição”, caracterizada por “não ser um Direito baseado na lei, mas antes nos usos e costumes consagrados pelos precedentes firmados através das decisões dos tribunais”, configurando, pois, um “Direito costumeiro-jurisprudencial, ao contrário do Direito continental europeu e latino-americano, filiado à tradição romanística, do Direito Romano medieval, no qual prevalece o processo legislativo como fonte por excelência das normas jurídicas”. O trecho em destaque permite inferir a importância da lei para o Estado, mormente para o Estado Democrático de Direito, fonte esta que, na quadra atual, tem adquirido um predomínio cada vez mais crescente, obtendo “amplitude e desenvolvimento que nunca teve em épocas passadas” (DINIZ, 2000, p. 283). Não obstante, a presente constatação não afasta a possibilidade de haver normas costumeiras, cujo processo de criação não se opera de modo institucionalizado, mas através da interferência da própria sociedade.

 

2. Definição de Fontes do Direito

 

Buscar o significado etimológico das palavras é fundamental para compreender melhor os diversos institutos jurídicos contidos no sistema normativo. A palavra fonte, proveniente do latim fontis, quer dizer nascente de água ou manancial de água que brota do solo. Assim, o vocábulo fonte, semanticamente, significa origem, surgimento, princípio de algo. Por conseguinte, a expressão fontes do Direito, atribuída à época de CÍCERO (VENOSA, 2006, p. 119), traduz a origem do Direito, seu nascedouro; onde as normas jurídicas são reveladas e têm seu princípio. Enfim, o modo como uma norma jurídica se estabelece em uma sociedade. Portanto, o termo em questão, juridicamente, seria a origem do Direito, isto é, os modos de formação e revelação das normas jurídicas. REALE, conceituando o termo fonte, assevera que:

 

“Por ‘fonte do direito’ designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa.” (REALE, 2002, p. 140)

 

DINIZ adverte que a expressão fonte do Direito – por ser empregada metaforicamente – apresenta mais de um sentido, concepção semântica assim explicada pela ilustre autora:

 

“‘Fonte jurídica’ seria a origem primária do direito, confundindo-se com o problema da gênese do direito. Trata-se da fonte real ou material do direito, ou seja, dos fatores reais que condicionaram o aparecimento de norma jurídica. KELSEN admite esse sentido do vocábulo, apesar de não o considerar científico-jurídico, quando com esse termo se designam todas as representações que, de fato, influenciam a função criadora e aplicadora do direito, como: princípios morais e políticos, teorias jurídicas, pareceres de especialistas. Fontes essas que, no seu entender, se distinguem das do direito positivo, porque estas são juridicamente vinculantes e aquelas não o serão enquanto uma norma jurídica positiva não as tornar vinculantes, caso em que elas assumem o caráter de uma norma jurídica superior que determina a produção de uma norma jurídica inferior. Emprega-se também o termo ‘fonte do direito’ como equivalente ao fundamento de validade da ordem jurídica. A teoria kelseniana, por postular a pureza metódica da ciência jurídica, libera-a da análise de aspectos fáticos, teleológicos, morais ou políticos que, porventura, estejam ligados ao direito. Portanto, só as normas são suscetíveis, segundo KELSEN, de indagação teórico-científica. Com isso essa doutrina designa como ‘fonte’ o fundamento de validade jurídico-positiva da norma jurídica, confundindo a problemática das fontes jurídicas com a noção de validez das normas de direito.” (DINIZ, 2000, p. 278)

 

3. Classificação das Fontes do Direito

 

De acordo com RAMOS (2014, p. 600), a expressão “fontes do Direito é, antes de tudo, polissêmica”, traduzindo, por um lado, “os modos pelos quais as normas jurídicas são produzidas (fontes formais) e, por outro, os eventos sociais que geram as necessidades a serem reguladas pelas normas jurídicas (fontes materiais)”, afirmação que indica que o tema vertente é objeto de múltiplas classificações doutrinárias, o que explica as diversas perspectivas apresentadas pelos estudiosos do assunto, sendo certo afirmar que inexiste uniformidade nos modos de expressá-las.

REALE (2002, p. 139-140), discordando da distinção levada a efeito por um segmento doutrinário, entre os quais se encontram GUSMÃO e DINIZ, assevera que a “antiga distinção entre fonte formal e fonte material do Direito tem sido fonte de grandes equívocos nos domínios da Ciência Jurídica”, razão pela qual, segundo o mestre REALE, a expressão fonte do Direito deveria ser empregada apenas para designar os “processos de produção de normas jurídicas”, raciocínio realeano que se fundamenta nos seguintes argumentos:

 

“Tais processos pressupõem sempre uma estrutura de poder, desde o poder capaz de assegurar por si mesmo o adimplemento das normas por ele emanadas (como é o caso do poder estatal no processo legislativo) até outras formas subordinadas de poder que estabelecem, de maneira objetiva, relações que permitem seja pretendida a garantia de execução outorgada pelo Estado.

Vejamos o que se tem designado com a expressão fonte material, para demonstrarmos a inconveniência desse termo.

Verificando-se, por exemplo, como aparece uma lei, podemos indagar de suas razões últimas, dos motivos lógicos ou morais que guiaram o legislador em sua tarefa. Estamos, pois, diante de uma pesquisa de natureza filosófica, que diz respeito às condições lógicas e éticas do fenômeno jurídico.

Ao lado dessa questão, que se liga ao próprio problema da justiça, da liberdade, da segurança e da ordem, encontramos outros problemas que já possuem um aspecto sociológico. Indagamos das causas não remotas, mas imediatas da lei. Podemos perguntar, por exemplo, se uma lei é devida a fatores econômicos permanentes ou transitórios, ou se ela é decorrência de exigências demográficas, geográficas, raciais, higiênicas e assim por diante. O problema que gira em torno das causas imediatas ou próximas do fenômeno jurídico pertence ao âmbito da Sociologia e, a rigor, da Sociologia Jurídica.

Como se vê, o que se costuma indicar com a expressão ‘fonte material’ não é outra coisa senão o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos econômicos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras de direito. Fácil é perceber que se trata do problema do fundamento ético ou do fundamento social das normas jurídicas, situando-se, por conseguinte, fora do campo da Ciência do Direito. Melhor é, por conseguinte, que se dê ao termo fonte do direito uma única acepção, circunscrita ao campo do Direito.” (REALE, 2002, p. 139-140)

 

Como se vê, as fontes do Direito, na visão de REALE, estão relacionadas às formas de expressão do poder. Assim, diz o saudoso professor, “quatro são as fontes de Direito, porque quatro são as formas de poder: o processo legislativo, expressão do Poder Legislativo; a jurisdição, que corresponde ao Poder Judiciário; os usos e costumes jurídicos, que exprimem o poder social, ou seja, o poder decisório anônimo do povo; e, finalmente, a fonte negocial, expressão do poder negocial ou da autonomia da vontade” (REALE, 2002, p. 141).

Não obstante a mencionada posição de REALE, observa-se, de um modo geral, uma divisão preambular das fontes do Direito em fontes materiais e fontes formais, justamente o como procede GUSMÃO (2000, p. 101), que define as primeiras como sendo “os dados extraídos da realidade social, das tradições e dos ideais dominantes, com os quais o legislador, resolvendo questões que dele exigem solução, dá conteúdo ou matéria às regras jurídicas”.  Por outro lado, fontes formais, na ótica do aludido autor, “são os meios ou formas pelos quais o Direito Positivo se apresenta na História ou pode ser conhecido”.

No que se refere às fontes formais do Direito, GUSMÃO concebe as seguintes categorias: fontes estatais (lei, regulamento, decreto, decreto-lei, medida provisória, etc), fontes infraestatais (costume jurídico, doutrina, contrato coletivo de trabalho, jurisprudência) e fontes supraestatais (tratados internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de Direito dos povos civilizados).

Ademais, GUSMÃO classifica as fontes formais em: fontes de Direito Interno ou de Direito Nacional (lei, regulamento, decreto-lei, jurisprudência dos tribunais estatais, Direito Interno consuetudinário, contrato coletivo de trabalho, doutrina), fontes de Direito Comunitário (fontes do Direito da União Europeia) e fontes de Direito Internacional (tratados, costumes internacionais, princípios gerais de Direito dos povos civilizados, jurisprudência da Corte Internacional de Justiça e a Ciência do Direito Internacional). Por fim, as fontes formais, na visão do mesmo autor, podem ainda ser catalogadas em: fontes legislativas (lei, regulamento, decreto-lei, etc), fontes consuetudinárias (costumes), fontes jurisprudenciais (jurisprudências dos tribunais estatais e da Corte Internacional de Justiça), fontes convencionais (tratados internacionais, contratos coletivos de trabalho) e fontes doutrinárias (doutrinas nacional e internacional).

VENOSA (2006, p. 119), no mesmo raciocínio classificatório, admite a existência de fontes materiais (“que têm o Estado como poder emanador”), além das fontes formais, estas subdivididas em fontes formais primárias/diretas/imediatas (a lei e o costume jurídico) e fontes formais secundárias/indiretas/mediatas (a doutrina e a jurisprudência), reconhecendo, porém, outras figuras, tais como a analogia e os princípios gerais de Direito, conforme previstos no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42).

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Ainda no que concerne à classificação das fontes do Direito, DINIZ (2000, p. 279) assevera que “o jurista deve ater-se tanto às fontes materiais como às formais, preconizando a supressão da distinção, preferindo falar em fonte formal-material, já que toda fonte formal contém, de modo implícito, uma valoração, que só pode ser compreendida como fonte do Direito no sentido de fonte material”.

Com efeito, seguindo a orientação doutrinária de DINIZ e outros autores, adotaremos a classificação que desdobra as fontes do Direito em fontes materiais (reais ou de produção) e fontes formais (ou de conhecimento), estas últimas subdivididas em fontes formais estatais e fontes formais não-estatais. Fontes materiais são os fatores (sociais, políticos, históricos, econômicos, culturais, etc) que determinam a elaboração do Direito. Por seu turno, fontes formais são os meios através dos quais o Direito torna-se conhecido, revelado, podendo ser subdivididas em: fontes formais estatais (a lei, os tratados internacionais e a jurisprudência) e fontes formais não-estatais (o costume, a doutrina, os princípios gerais de Direito, a analogia e o contrato).

Com efeito, o presente texto limitar-se-á a analisar o costume jurídico enquanto fonte formal do Direito brasileiro.

 

4. Costume Jurídico

 

É cediço que o Direito brasileiro, por razões históricas, é predominantemente escrito, figurando a lei (em sentido amplo) como a principal fonte do sistema normativo pátrio. Não obstante tal realidade, a presente constatação não afasta a possibilidade de haver normas jurídicas não escritas (normas costumeiras ou consuetudinárias), cujo processo de criação, diferentemente das normas escritas, não se opera de modo institucionalizado, mas, ao revés, pela interferência da própria sociedade. Assim, o costume jurídico, uma das mais antigas fontes do Direito, tendo mesmo precedido a própria lei escrita, atua contemporaneamente como uma autêntica fonte formal subsidiária (secundária, mediata ou indireta) do Direito brasileiro, conforme amplamente reconhecido pela doutrina.

Cumpre destacar que o costume jurídico não se confunde com as regras de trato social (regras de boa educação, de cortesia, de higiene, usos sociais, etc.), residindo a distinção fundamental na força obrigatória e necessidade jurídica, aspectos encontrados apenas no costume, o qual pode ser definido como a norma jurídica não escrita, criada espontaneamente pela sociedade, sendo oriunda da prática constante, reiterada e uniforme de determinado comportamento, tudo aliado à convicção social acerca de sua necessidade jurídica.

Diferentemente da lei escrita, cuja elaboração é sempre certa e predeterminada, sendo decorrente da atividade do Poder Público, que a elabora segundo os procedimentos previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional, o surgimento de um costume jurídico, conforme leciona o insigne REALE, não tem origem certa, nem se localiza ou é suscetível de localizar-se de maneira predeterminada.

 

“O Direito costumeiro [...] não tem origem certa, nem se localiza ou é suscetível de localizar-se de maneira predeterminada. Geralmente não sabemos onde e como surge determinado uso ou hábito social, que, aos poucos, se converte em hábito jurídico, em uso jurídico.

O Direito costumeiro nasce por toda parte, de maneira anônima, ao passo que a lei, desde a sua origem, se reveste de segurança de certeza.” (REALE, 2002, p. 156) 

 

Ademais, importante consignar que, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), o costume, não obstante sua inegável condição de meio de suprimento das lacunas existentes na lei (fonte primária), figura, ainda, como uma genuína fonte subsidiária do Direito pátrio (DINIZ, 2007, p. 186). Neste particular, explica FERRAZ JR. (2015, p. 267) que “a imposição do costume como meio de integração da lei no art. 4º da Lei de Introdução cria uma subordinação daquele a esta”, motivo pelo qual, a princípio, o costume será praeter legem (aquele que tem por objetivo preencher eventuais lacunas), prevalecendo, pois, a lei.

 

4.1. Elementos

 

No que se refere ao aspecto estrutural, assevera FERRAZ JR. (2015, p. 199) que o costume possui em sua composição um elemento substancial (o uso reiterado no tempo) e um elemento relacional (“o processo de institucionalização que explica a formação da convicção da obrigatoriedade e que se explicita em procedimento, rituais ou silêncios presumidamente aprovadores”), dos quais decorrem a validade e a eficácia da regra consuetudinária.

Com efeito, segundo pacífica doutrina, o costume jurídico possui dois elementos constitutivos: o elemento externo (material ou relacional) e o elemento interno (espiritual ou substancial). O primeiro nasce com a constância da repetição (por parte da sociedade) de determinados atos, cuja formação é lenta, longa e sedimentária. O segundo elemento, por sua vez, consiste na convicção, por parte dos membros da comunidade, de que a norma consuetudinária é juridicamente necessária. Neste sentido, adverte BITENCOURT (2011, p. 162) que a ausência de tal convicção reduz o costume a um “simples uso social, sem o caráter de exigibilidade”.

 

4.2. Espécies

 

Os costumes jurídicos, segundo os autores que tratam do tema, admitem três espécies: costume secundum legem, costume praeter legem e costume contra legem.

Costume secundum legem é aquele se encontra em conformidade com a lei, servindo como instrumento de interpretação. Vale dizer, está previsto na própria lei, que reconhece a sua eficácia e aplicabilidade. Tal espécie de costume reveste-se de grande importância quando da interpretação de determinados conceitos e expressões contidos em dispositivos penais que estabelecem condutas criminosas (modelos de comportamentos proibidos), possibilitando, assim, que o intérprete possa ajustá-los à realidade social, razão pela qual é plenamente admitido pela doutrina. A título de exemplo, o art. 155, parágrafo 1º, do Código Penal determina a incidência de uma causa especial de aumento de pena (um terço) quando o furto é cometido durante o repouso noturno, expressão que, a toda evidência, demanda uma análise da ambiência e dos costumes locais. Da mesma forma, o Código Civil de 2002, no seu art. 569, inciso II, estabelece que o locatário é obrigado a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar.

Por sua vez, o costume praeter legem, figura prevista no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), funciona como um mecanismo de suprimento de eventual lacuna, tendo, pois, nítido caráter supletivo.

Por fim, o costume contra legem é aquele que se apresenta contrário à lei, cuja admissibilidade tem suscitado debate na doutrina, mormente diante do primado da lei, conforme dispõe o art. 2º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.

 

“O costume contra legem é o que se opõe, se mostra contrário à lei. Denomina-se costume ab-rogatório, pois coloca a lei à margem. Quando torna uma lei não utilizada, denomina-se desuso. Discute-se se é possível a prevalência de um costume desse jaez, pois a supremacia de um costume sobre a lei deixaria instável o sistema. Embora existam opiniões divergentes, a doutrina se inclina pela rejeição dessa modalidade de costume. Em princípio, somente uma lei pode revogar outra. Esta posição, como tudo em Direito, não pode ser peremptória. Como se nota, a matéria se revolve em torno do chamado desuso da lei.” (VENOSA, 2006, p. 128)

 

De qualquer forma, um segmento minoritário da doutrina, baseando-se no art. 5o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), segundo o qual o juiz, quando da aplicação da lei, “atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, admite possa o magistrado aplicar um costume contrário à própria lei, entendimento que não deve ser aceito como correto, diante da prevalência da lei escrita produzida pelo Estado, uma das principais características do sistema jurídico brasileiro.

 

4.3. Validade

 

Quanto à validade do costume, em contraste com a validade das leis, FERRAZ JR. explica que a condição de validade da norma costumeira, isto é, o título que as faz normas integrantes do sistema, repousa, porém, em um elemento diferente daquele concebido para as normas legais.

 

“Não se trata de procedimentos regulados por normas de competência, mas da própria opinio necessitatis, o processo de institucionalização que as consagra como normas obrigatórias. Nesse sentido, toda norma costumeira é, no fundo, uma norma-origem, pois sua validade deriva diretamente da imperatividade do sistema que acolhe o costume por meio de suas regras estruturais (por exemplo, a regra doutrinária que diz ser o uso reiterado com convicção de obrigatoriedade uma fonte normativa).” (FERRAZ JR., 2015, p. 199)

 

Interessante consignar que a prova do costume incumbe a quem o alega, não sendo aplicável, no caso, o princípio iura novit curia (ao juiz é vedado desconhecer a lei). No entanto, diante de eventual notoriedade do costume jurídico, pode o juiz, quando admitido, aplicá-lo de ofício, exatamente o que acontece com toda e qualquer norma jurídica, não obstante possa o magistrado, quando desconhecido o costume, “exigir, de quem o alega, que o prove e de qualquer modo; à parte interessada é permitido, sem aguardar a exigência do juiz ou a contestação do adversário, produzir essa prova, por todos os meios admitidos em direito” (DINIZ, 2001, p. 120).

 

4.4. Vigência

 

A norma costumeira, assim como a norma escrita, vige, do que decorre a importância de se fixar o termo inicial do prazo de sua vigência. Afinal, uma vez que a norma consuetudinária não é promulgada nem publicada, pode ser que surja dúvida quanto ao exato momento em que começa a vigorar.

FERRAZ JR. (2015, p. 199) informa que os sistemas jurídicos modernos, objetivando resolver tal problema, estabelecem uma espécie de substituto para o instituto da promulgação (próprio da norma produzida pelo Estado). Exige-se, pois, que o costume seja provado por quem o alega, recaindo tal prova sobre o seu teor. De qualquer forma, quanto à vigência do costume, a doutrina alude às seguintes condições: continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obrigatoriedade.

 

4.5. Costume Jurídico e Princípio da Legalidade Penal

 

Segundo o princípio da legalidade penal, “não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia cominação legal”. É o que preceituam o art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e o art. 1º do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40). Destarte, somente uma lei ordinária (espécie normativa primária elaborada de acordo com o rito constitucional e regimentalmente previsto) pode criar infrações penais (crimes e contravenções penais) no Brasil, cuja competência legislativa é privativa da União, a ser concretizada pelo Congresso Nacional, nos termos do art. 22, inciso I, do Texto Magno, com incidência sobre toda a Federação brasileira. A nosso ver, o atual quadro constitucional brasileiro, em nenhuma hipótese, permite que determinado comportamento seja incriminado apenas em alguns Estados-membros do Brasil. Nem mesmo o disposto no art. 22, parágrafo único, da Lei Magna, poderia autorizar certas incriminações somente no âmbito de alguns entes federados, vez que tal situação, a toda evidência, não se enquadra na expressão “questões específicas”, um dos requisitos exigidos pelo referido dispositivo constitucional.

Como garantia política em face do poder punitivo do Estado, o princípio da legalidade penal foi inserido, ao longo do tempo, no rol dos direitos e das garantias fundamentais. Com efeito, a configuração da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito, cuja atuação encontra-se absolutamente atrelada aos ditames legais, impõe e justifica a adoção de tal princípio como um limite intransponível ao exercício do jus puniendi. Afinal, conforme afirma ROXIN (2006, p. 138), um Estado de Direito deve proteger o indivíduo não apenas através do Direito Penal, mas também do Direito Penal (“ein Rechtsstaat den Einzelnen nicht nur durch das Strafrecht, sondern auch vor dem Strafrecht shutzen soll”). Diante de tal quadro, o princípio da legalidade penal assume importante função: garantir que o direito de punir estatal somente seja exercido de acordo com o que estiver legalmente estabelecido no ordenamento jurídico.

No que se refere ao aspecto histórico, a doutrina, de modo amplamente majoritário (MIRABETE e FABBRINI, 2011, p. 39; NUCCI, 2010, p. 52), assevera que o art. 39 da Magna Charta Libertatum, de JOÃO SEM TERRA, datada de 1215, seria a origem mais remota do princípio em comento. Além desse emblemático documento, houve, no decorrer histórico, outras demonstrações de apreço à legalidade penal, sendo oportuno citar, sem qualquer pretensão exaustiva, a Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), cujo art. 8º preconiza que “ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada”. No plano das Nações Unidas, o art. XI, 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, estabelece que:

 

“Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional.

Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.”

 

Segundo STRATENWERTH (2005, p. 71), coube a ANSELM VON FEUERBACH vincular o princípio da legalidade diretamente ao Direito Penal, para quem somente a pena cominada antes do fato tem o poder de intimidar. Também a FEUERBACH é conferida a autoria do consagrado brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege. Ademais, no âmbito do ordenamento jurídico-penal pátrio, nas fases imperial e republicana, todas as Constituições brasileiras consolidaram tal conquista. Assim, da adoção do princípio da legalidade penal decorrem algumas implicações, tais como:

a) A lei penal deve ser precisa e certa: em obediência ao princípio da legalidade penal, e para que o comportamento incriminado pelo Estado possa ser devidamente identificado e conhecido, a lei penal vale-se de uma técnica descritiva. Para tanto, opera através de modelos incriminadores (o denominado tipo penal). A construção dos tipos penais, obra levada a efeito pelo legislador, deve abarcar os atributos da precisão e da certeza. Significa dizer que a norma penal incriminadora deve indicar com exatidão as balizas da conduta delituosa, permitindo que o seu destinatário tenha a possibilidade de conhecer a ilicitude do fato. Conforme assevera NUCCI (2010, p. 54), o preceito incriminador genérico fere o princípio da legalidade penal. Também atento ao problema, BATISTA observa que:

 

“A função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligível por todos os cidadãos.” (BATISTA, 1990, p. 78)

 

Mesmo diante de tal exigência de absoluta clareza, não raro o Poder Legislativo elabora leis penais completamente divorciadas do princípio da legalidade penal. De fato, há diplomas legais cujo conteúdo, extremamente impreciso e incerto, acaba por contrariar o dogma previsto no art. 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, prejudicando sobremaneira a compreensão da proibição penal (SANTOS, 2006, p. 23). Portanto, a lei penal redigida de modo impreciso e incerto configura um dos grandes problemas ainda enfrentados pelo Direito Penal moderno, sendo responsável por gerar insegurança jurídica, tendo em vista que a inexatidão da moldura legal possibilita especulações acerca do alcance e do sentido da norma penal incriminadora. A título de exemplo, cabe recordar que até o advento da Lei n° 11.106/05, a antiga redação do art. 215 (antigo crime de posse sexual mediante fraude, atual delito de violação sexual mediante fraude) do Código Penal fazia referência à expressão “mulher honesta”. O tipo penal em questão, antes da alteração promovida pela citada lei, estava assim redigido: “ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Com o devido respeito ao sexo feminino, e sem qualquer trocadilho, questiona-se: qual o significado a ser atribuído à aludida expressão? Em resposta, NORONHA (1995, p.137) afirmava: “mulher honesta é a honrada, de decoro, decência e compostura. E, com a devida vênia, o que se entende por “mulher honrada, de decoro, decência e compostura”? Nota-se, pois, a grande imprecisão do conceito formulado por NORONHA, um dos maiores penalistas que o Brasil já conheceu. Ainda hoje, se fizermos a mesma pergunta a 100 pessoas, talvez tenhamos cem respostas diferentes.

Mas há ainda outro óbice a ser registrado. O defeito da imprecisão típica acaba por desaguar na função judicante, ocasionando outro grave problema, também de índole constitucional. Na tentativa de “desvendar” o conteúdo da norma penal defeituosa, imprecisa e incerta, o magistrado imiscui-se, em última análise, em uma função que não lhe compete. Sem alternativa, o julgador extrapola a tarefa interpretativa que lhe é inerente e passa a agir como se legislador fosse. Neste caso, dada a incerteza a respeito dos caracteres do tipo penal, a existência ou não de crime passa a depender da interpretação a ser realizada pelo próprio juiz. Acerca de tão delicada questão, MOURULLO, citado por FRANCO, adverte que:

 

“‘O princípio da legalidade implica que o fato constitutivo de delito apareça descrito na própria lei de um modo exaustivo. [...]. Do contrário, o legislador nada mais faria do que transferir sua missão ao juiz, sobrecarregando-o com tarefas próprias do poder legislativo’.”

(FRANCO et al, 2007, p. 56)

 

Em suma, o entendimento do juiz passa a ser a fonte primária, básica e imediata do Direito Penal, procedimento que, sem sombra de dúvida, fere o princípio da legalidade penal, bem como o da separação das funções (art. 2º da Constituição Federal).

b) Não cabimento de infrações penais criadas por costume jurídico: outra implicação decorrente da incidência do princípio em tela é a impossibilidade de se adotar o costume jurídico como fonte criadora de infrações penais. Como dito alhures, a fonte formal imediata do Direito Penal brasileiro é a lei em sentido estrito, donde se extrai a vedação do costume jurídico como fonte principal. É o que se depreende do art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e do art. 1º do Código Penal. Neste sentido, leciona PRADO (2000, p. 75) que “da afirmação de que só a lei pode criar crimes e penas resulta, como corolário, a proibição da invocação do direito consuetudinário para a fundamentação ou agravação da pena, como ocorreu no direito romano e medieval”.

 

4.6. A Importância do Costume Jurídico no Direito Internacional

 

Afirma-se, com frequência, que o costume jurídico, enquanto indiscutível fonte secundária do Direito brasileiro, adquire maior relevância no âmbito do Direito Internacional Público, mormente diante da regra insculpida no art. 38, 1, b, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, o que denota a importância do costume em relação ao denominado Direito das Gentes:

 

“Artigo 38

1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:

a. as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;
b. o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito;

c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas;

d. sob ressalva da disposição do artigo 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito.

2. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes com isto concordarem.”

 

Sintetizando a posição de destaque ocupada pelo costume na seara do Direito Internacional Público, MAZZUOLI (2012) assinala que o costume internacional é a mais antiga fonte do Direito Internacional Público, cuja importância advém, entre outros aspectos, “do fato de não existir, no campo do Direito Internacional, um centro integrado de produção de normas jurídicas, não obstante a atual tendência de codificação das normas internacionais de origem consuetudinária”.

 

5. Conclusão

 

O Direito brasileiro, por razões históricas, é predominantemente escrito, figurando a lei como a principal fonte do sistema normativo. Não obstante, a presente constatação não afasta a possibilidade de haver normas costumeiras, cujo processo de criação, diferentemente das normas escritas, não se opera de modo institucionalizado, mas através da interferência da própria sociedade. Assim, o costume jurídico, uma das mais antigas fontes do Direito, tendo mesmo precedido a própria lei escrita, atua contemporaneamente como uma autêntica fonte subsidiária (secundária, mediata ou indireta) do Direito brasileiro, mormente diante do preconiza o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

 

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[1] Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Site: https://reisfriede.wordpress.com/ . E-mail: [email protected] .

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

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