PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS DE SANÇÃO: OS LIMITES DA RETRIBUIÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Exibindo página 1 de 2
20/12/2022 às 00:28
Leia nesta página:

1 INTRODUÇÃO

O cumprimento da pena pressupõe, obviamente, uma sanção penal imposta, in concreto. E a sua aplicação pressupõe, certamente, um processo penal, através do qual, assim que apurada a existência do fato delituoso e a sua autoria, aplicar-se-á a pena cominada in abstrato para o crime perpetrado pelo seu agente. Com isso, espera-se que todos os envolvidos neste episódio recebam sua parte: a sociedade, o exemplo; o condenado, a pena; a vítima, o ressarcimento.

Logo, a sociedade é virtualmente vingada. A ordem, restabelecida. A clama e o esquecimento assumem o lugar da inquietude, da irritação e do desejo de vingança causados nos cidadãos honestos quando do cometimento do crime. A repressão é, portanto, virtualmente perfeita com o pronunciamento da pena. Depois da condenação, o silêncio sucede ao rumor dos salões judiciários e o esquecimento à atenção geral. A população se desinteressa pela sorte dos condenados. A prisão é uma tumba onde se enterram os vivos, e nenhum epitáfio recorda aos passantes o nome daqueles que estão por detrás das grandes muralhas de pedra[1].

Nesse passo, à execução penal não se tem dado a devida importância. Em nível legislativo, esquecemo-nos de vigiar o legislador no momento da elaboração de uma medida executiva, que se esquece, no mais das vezes, de anos de conquistas em caminhos de uma execução mais humana de pena. Já em nível doutrinário, os juristas parecem sucumbir diante do sensacionalismo, envergonhando-se de defender posições favoráveis a uma execução penal com fulcro na dignidade humana.

A pena de prisão, indubitavelmente o alicerce da maioria dos sistemas penais conhecidos, a principal sanção, não de hoje, demonstra seus reconhecidos males insanáveis, que se agregam àqueles devidos à rotina da execução desse tipo de sanção. A prisão, para quem a conhece, não é apta a reformar o homem, podendo apenas servir como meio de segregá-lo[2].

Entretanto, deve fazê-lo com a devida atenção aos princípios penais constitucionais, que pautam a atividade punitiva estatal, limitando e dirigindo a aplicação da pena no Estado democrático de Direito, que há de ser, impreterivelmente pessoal, individualizada e humanamente aplicada em face do delito cometido pelo agente. Dito de outro modo, com o mero cumprimento da Constituição Federal e da Lei de Execução Penal, uma vez que, a inadequação da aplicação da pena vulnera toda a efetividade do sistema de persecução penal.

Assim, realizar-se-á uma análise crítica dos princípios penais constitucionais de sanção à luz do Estado democrático de Direito, desde a superação da pena capital - com a abertura humanitária proporcionada pelo Direito Canônico às penas - até os dias atuais em que, pressionados pela opinião pública e pela escassez de recursos, o Estado-execução penal se mostra incapaz de efetivamente cumprir o seu papel.

Empregar-se-á, para tanto, os métodos lógico-dedutivo e indutivo-argumentativo, através de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografia nacional, estrangeira e periódicos.

2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS LIMITES À INTERVENÇÃO PENAL

Tendo em vista a incansável busca por um Estado ideal, promotor de significativas alterações no seio social, poder-se-ia falar, então, em três momentos evolutivos de Estado de Direito, os quais correspondem, igualmente, a três dimensões de direitos fundamentais[3]. Assim, no Estado liberal de Direito, são principalmente garantidas as liberdades individuais (direitos fundamentais de primeira dimensão), alcançados com o intuito de libertar os indivíduos do absolutismo estatal[4]. Nesse passo, exige-se do ente dominante uma prestação negativa, uma abstenção estatal em respeito ao surgimento dos direitos civis e políticos dos cidadãos.

O anseio pela liberdade face ao intervencionismo do Estado monarca restou demonstrado já em 1215, quando da conquista da Magna Carta, pelos ingleses junto ao Rei João Sem Terra, momento em que desejavam que lhes fosse permitido construir livremente suas vidas, legalizando e limitando o totalitarismo do Leviatã[5].

Já em, em 1789, com a Revolução Francesa e a consequente criação do Estado moderno, alimenta-se, com as ideias iluministas, os ideais de liberdade, cunhados inicialmente nos aspectos econômicos - consagrados na expressão laissez-faire, laissez-passer - irradiam seus efeitos para outras dimensões da vida humana[6], quando se passa a renunciar o absolutismo romano em favor da liberdade,

Após a construção liberal, novas necessidades brotaram no seio social, dando ensejo à busca por uma igualdade, não à meramente formal, mas a substancial, capaz de mitigar as discrepâncias resultantes do liberalismo do Estado de distância, nascendo então a concepção de Estado social de Direitos, onde objetiva-se resguardar, também, os direitos sociais, culturais e econômicos, uma vez que a desigualdade social que resultou do movimento libertador passou a desconfortar a harmonia e a paz social[7], e o homem seria tido como lobo dos seus pares, como o grande vilão perante os demais membros da sociedade, também em decorrência da competitividade que ascendeu com a nova concepção de mercado[8].

Emerge então, um modelo de Estado intervencionista, o Estado providência, prestacionista, que atende aos anseios sociais e reduz as desigualdades com mecanismos compensatórios, positivos, com um facere. A adjetivação pelo social pretende a correção do individualismo liberal por intermédio de garantias coletivas. Corrige-se o liberalismo clássico pela reunião do capitalismo com a busca do bem-estar social, fórmula geradora do welfare state no pós-Segunda Guerra Mundial, projetando-se um modelo onde o bem-estar e o desenvolvimento social pautam as ações do ente público[9].

Evoluindo, o Estado social segue em busca da constitucionalização, atendendo aos preceitos kelsenianos no sentido de se adotar como núcleo axiológico-legal de todo o Direito[10]. Fala-se, então, em nível normativo, em um Estado constitucional de Direito, em que se manifestam os direitos fundamentais de terceira dimensão, tais como a qualidade de vida, o meio ambiente, a liberdade de informática, a biotecnologia, a paz, a assistência e a organização familiar, entre outros metaindividuais[11].

Almeja-se, outrossim, contrabalancear os excessos de permissividade do liberalismo face ao totalitarismo interventivo do Estado Social, dando ensejo aos direitos de solidariedade, de fraternidade, resultando-se, desta forma, no Estado constitucional de Direito, ou ainda, mais precisamente, Estado social e democrático de Direito, que representa uma concepção sintética fruto da união dos princípios próprios do Estado liberal e do Estado social, pressupondo uma superação dos componentes básicos de ambos, enquanto isoladamente considerados, o que permite acrescentar a terceira característica da forma constitucional: a democracia[12].

O Estado democrático de Direito é, pois, um Estado constitucionalmente conformado e por isso, pressupõe a existência de uma Constituição e a afirmação inequívoca do princípio da constitucionalidade. E é na Constituição ordenação normativa fundamental e suprema que o primado do Direito do Estado democrático de Direito encontra sua primeira e decisiva expressão[13]. Constituição essa que garante a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais do homem, na sua complexa qualidade de pessoa, cidadão e trabalhador. Nesse sentido, o Estado de Direito é um Estado de distância, pois os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos; de outra banda, o Estado de Direito é um Estado antropologicamente amigo, ao respeitar a dignidade da pessoa humana e ao empenhar-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade[14].

E o Direito Penal, como subsistema do controle social formal de um Estado democrático e social de Direito, não pode ser desenfreado, arbitrário e sem limites. É evidente que esse controle deve estar submetido, no plano formal, ao princípio da legalidade[15] leia-se: à subordinação as leis gerais e abstratas que disciplinem as formas de seu exercício - e, deve servir, no plano material, à garantia dos direitos fundamentais do cidadão[16].

Nesta senda, o art. 1.º da Constituição Federal brasileira de 1988, constituiu juridicamente, na República Federativa do Brasil, um Estado democrático de Direito. Importa ressaltar que, apesar da ausência de menção do Estado social na denominação do modelo de Estado brasileiro, o legislador não deixou de adotá-lo[17], vez que o Estado democrático é a conjugação dos modelos liberal e social, que surge na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como mera aposição de conceitos, mas como conteúdo próprio, onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo, constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo, da realidade, de modo que o seu conteúdo transcende o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de reconstrução de um projeto de sociedade, buscando solucionar o problema das condições materiais de existência[18].

Ademais dessa otimização do grau de participação cívica na vida e nas decisões societárias, o Estado democrático de Direito também tem uma dimensão antropocêntrica, na medida em que se arrima, fundamentalmente, na dignidade da pessoa humana, ou seja, centra-se num ser com dignidade, um fim e não um meio, um sujeito e não um objeto[19].

A explicitação das principais características do modelo jurídico pátrio mostra-se de suma relevância para a análise, compreensão e fixação dos limites do sistema global de controle social formal, de modo que cada subsistema, em especial o Direito Penal, deverá plasmar-se nos valores e princípios estruturantes da ordem jurídica, sendo a dignidade da pessoa humana o centro e o traço de ligação entre a ordem social e da ordem jurídica[20], dignidade esta que vincula-se ao direitos e garantias fundamentais, responsáveis por reconhecer e formalizar os valores essenciais para um vida digna[21].

3 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS

O direito de punir do Estado democrático de Direito não é, e nem poderia ser, uma faculdade estatal desenfreada e arbitrária. Ao contrário, tanto a própria estrutura do modelo jurídico optado pelo Poder Constituinte leia-se: Estado democrático (e social) de Direito -, como o fundamento funcional do Direito Penal leia-se: a indispensável e amarga necessidade de pena para a tutela de bens jurídicos mediante a proteção dos valores ético-sociais mais elementares[22] - contêm limitações expressas ou implícitas (art. 5.º, §2.º, CF).

Assim como os demais ramos do Direito, o Direito Penal fundamenta-se em determinados princípios - essenciais e diretores derivados dos valores ético-culturais e jurídicos vigentes em uma determinada comunidade social e numa certa época, os quais foram se impondo num processo histórico-político contínuo como sendo basilares à sociedade democrática[23].

Nesse contexto, as Constituições promulgadas nos últimos decênios, sob um modelo de Estado incorporados dos valores liberais (Rechtsstaats) e sociais (Sozialstaats), as normas concernentes ao Direito Penal se traduzem em postulados que, de um lado, em defesa das garantias individuais, condicionais restritivamente a intervenção penal do Estado; e de outro, preceituam um alargamento da atuação do Direito Penal, ampliando a área de bens objeto de sua proteção, mesmo diante do vigor libertário daquelas. Dito de outra forma, apesar de as Constituições contemporâneas fixarem os limites do ius puniendi estatal, resguardando as prerrogativas individuais, elas também inserem normas propulsoras do Direito Penal para novas matérias, tornando-o um instrumento de tutela de bens metaindividuais, cujo resguardo se mostra indispensável para a consecução dos fins sociais do Estado[24].

A presença de matéria penal nas Constituições contemporâneas se dá através de princípios especificamente penais, denominados princípios de natureza penal constitucional, bem como, de princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal. Enquanto aqueles são princípios penais constitucionais, estes são constitucionais penais. Tanto em um sentido como em outro, operam como fundamento e limite do exercício da atividade punitiva estatal[25]. Primeiramente, tratar-se-á dos princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal e, em seguida, dos princípios de natureza penal constitucional.

São princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal, cujo conteúdo não é única ou especificamente penal, mas de caráter geral e heterogêneo[26]. Por não serem propriamente criminais, impõem-se tanto ao legislador penal, quanto ao civil, tributário, agrário etc, referindo-se, prevalentemente, ao aspecto de conteúdo das incriminações no sentido de fazer com que o Direito Penal se constitua em um poderoso instrumento de tutela de bens de relevância social[27].

Traduzem, em linhas gerais, orientações ao legislado ordinário, determinando que elabore normas incriminadoras destinadas a proteção de valores transindividuais. São exemplos destes postulados as determinações contidas na Constituição Federal no sentido de proteção ao meio ambiente (art. 225, § 3.º, CF)[28], ao trabalho (art. 6.º, CF) aos direitos do consumidor (arts. 5.º XXXII e 170, CF), à cultura (arts 215 e ss, CF) etc. Para a concreção dessas indicações constitucionais o legislador ordinário deverá editar normas de caráter civil prevendo indenizações, de caráter tributário prevendo tributos especiais e multas, dentre outras[29] e, também, se efetivamente necessário, normas incriminadoras penais[30].

Tais princípios, em quase sua totalidade, traduzam exigências de criminalização para a proteção de bens coletivos. Assim, via de regra, caracterizam-se por ampliarem a área de abrangência da resposta penal, alargando o campo de bens penalmente tutelados, neles incluindo os de natureza transindividual, promovendo, através dessa função propulsora[31], uma modernização[32], ou expansão[33], do Direito Penal.

Nota-se, pois, que os princípios constitucionais penais são informados pelas exigências do Estado social (Sozialstaats), e tem intuito de fazer do Direito Penal, não o único e exclusivo, mas apenas mais um instrumento integrante da gama estatal de controle social, necessário à correção das distorções causadas por um individualismo exacerbado, que favorece a homogenização social, com vistas a realização da igualdade concreta e possível entre os cidadãos, ou seja, com a finalidade de contribuir para que se realize uma sociedade dotada de justiça material[34].

São princípios de natureza penal constitucional aqueles, exclusiva e tipicamente penais, que se referem aos dados embasadores da ordem jurídico-penal, imprimindo-lhe determinada fisionomia[35]. Integram o Direito positivo em razão do próprio conteúdo, possuindo características materialmente constitucionais. Também descrevem os limites do ius puniendi, situando a posição da pessoa humana no âmago do sistema penal e estabelecendo os termos essenciais da relação entre indivíduo e Estado na seara penal[36]. Em sua maioria, se não em sua totalidade, os princípios penais constitucionais são garantidores das liberdades positivas e negativas[37], limitando o poder estatal em face do indivíduo, assinalando normativas de conteúdo característico do Estado liberal de Direito (Rechtsstaats).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito suas categorias teoréticas -, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese, servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal[38].

Nota-se que, tais postulados embasam a ordem jurídico-penal e o direito de punir do Estado (fundamento), indicando, não apenas seus fins e seu alcance, mas também as fontes e as exigências de seus enunciados e, principalmente, fixando suas infranqueáveis barreiras (limites)[39]. Os princípios penais constitucionais podem ser explícitos e implícitos. Os explícitos estão enunciados de forma expressa e inequívoca no texto da Constituição (v. g. princípios o da legalidade dos delitos e das penas - art. 5.º, XXXIX, CF -, o da personalidade da pena - art. 5.º XLV, CF-, o da individualização da sanção penal - art. 5.º, XLVI, CF- e o da humanidade das penas - art. 5.º, XLI, XLVII e XLIX, CF), ao passo que os implícitos se deduzem das normas constitucionais por nelas estarem contidos (v.g. princípios da culpabilidade, da intervenção mínima e da fragmentariedade)[40].

4 OS PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS DE SANÇÃO: HUMANIDADE, PESSOALIDADE E INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

4.1 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE DAS PENAS

Historicamente, é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos e possuídos de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade[41]. Difunde-se, a partir do desenvolvimento da teologia cristã, a convicção segundo a qual o homem era o único ser vivo sobre a terra feito à imagem e semelhança de Deus: cada alma humana é obra mestra de Deus. E a expressão pessoa é definida por Boécio, no século V, como sendo uma substância individual de natureza racional, definição essa, reelaborada no século XIII por Santo Tomás de Aquino em sua Suma Teológica (I, q. 29, art. 1)[42], constituindo a matriz teológica cristã da ideia de dignidade da pessoa humana. Pessoa esta que deve ocupar uma posição absoluta, central, concreta e operativa[43].

No século XVII, como ideário do Direito natural racional, em especial na obra de Samuel von Pufendorf, aflora a noção de humanitas como princípio jurídico, dispondo que a natureza exige que o homem seja sempre considerado como semelhante, ainda que nada de bom se possa esperar dele, sendo essa a razão suficiente para que o gênero humano construa uma comunidade pacífica[44].

Recorde-se, outrossim, das célebres palavras de Cesare Beccaria (século XVIII), para quem não existe liberdade onde as leis permitem que, em determinadas circunstâncias, o homem deixe de ser pessoa e se converta em coisa[45].

Nesse passo, em um modelo de Estado cujo centro ético, político e jurídico é a pessoa leia-se, em um Estado democrático de Direito - são expressamente vedadas a criação, a execução ou qualquer outra medida, a título de resposta penal, que atente contra a dignidade humana. E é justamente na dignidade humana que reside o fundamento material do princípio da humanidade enquanto limite da atividade punitiva estatal[46].

Não há que se confundir a dignidade humana com o princípio da humanidade[47]. Repita-se, aquele é fundamento material desse, que surge em decorrência da contribuição do denominado período humanitário ou iluminismo penal, graças, sobretudo, ao jusnaturalismo e ao Direito Canônico [48] quando se abrem as portas para a benignidade das penas[49].

E no ideário da ilustração, que dominou os séculos XVII e XVIII, consagra-se o princípio da humanidade no Direito Penal moderno, promovendo-se a superação dos postulados do Ancièn Régime[50]. Os arautos do século das luzes propugnavam a transformação do Estado a partir de duas ideias fundamentais: a afirmação dos direitos inerentes a condição humana[51] e a elaboração jurídica do Estado como se tivesse origem em um contrato[52], no qual, ao constituir-se o Estado, os direitos humanos seriam respeitados e assegurados. Daí um Direito Penal vinculado a leis prévias e certas, limitadas ao mínimo estritamente necessário, e sem penas degradantes. Assim, os direitos humanos passaram a integrar o instrumento jurídico do pacto social, qual seja, a Constituição[53].

O princípio da humanidade das penas permite detectar, sob a ótica da dimensão histórica, uma gradativa propensão na humanização das penas que foram tornando-se, num perpassar evolutivo, menos severas em seu tempo de duração e em sua carga aflitiva[54]. Das penas de morte e corporais, passa-se progressivamente, às penas privativas de liberdade, e destas, às penas alternativas a prisão (v.g. multas, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana)[55]. Transformou-se então, paulatinamente, os duros e degradantes regimes carcerários, desapareceram os grilhões e as correntes, bem como os castigos corporais. A integridade corporal do preso de hoje deve ser preservada; já não se impõe aos reclusos raspar a cabeça; nem os designam mais por números; não se usam mais os infames trajes listrados e nem se aplicam mais os trabalhos degradantes e improdutivos[56].

Nos atuais modelos jurídicos de Estado de contextura democrática, o princípio da humanidade encontra ampla ressonância constitucional. E a Constituição brasileira de 1988, que estabelece como fundamento do Estado democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1.º III, CF), encontrou formas de expressão em normas proibitivas tendentes a obstar a formação de um ordenamento penal de terror, bem como em normas garantidoras de direitos de pessoas privadas de liberdade, objetivando tornar as compatíveis com a condição humana. Assim, de um lado, o princípio da humanidade da pena encontra eco na proibição de tortura e do tratamento cruel ou degradante (art. 5.º, III, CF) e na proibição da pena de morte, da pena de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis (art. 5.º XLVII, CF); de outro, decorre do processo individualizador da pena, na sua fase executória (art. 5.º, XLVI, CF), no asseguramento aos presos do respeito à integridade física ou moral (art. 5.º XLIX, CF), no direito de cumprir a pena em estabelecimentos distintos (art. 5.º, XLVIII, CF) e na salvaguarda às presidiárias das condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (art. 5.º, L, CF)[57]. Tal princípio implica, portanto, não apenas numa proposta negativa caracterizadora de proibições, mas também, e principalmente, na proposta positiva, de respeito à dignidade da pessoa humana, embora presa ou condenada[58].

Nota-se que, para além da proibição de penas desumanas, tem-se no Estado democrático de Direito a busca por uma paulatina redução do conteúdo aflitivo das sanções, e um propósito de compatibiliza-las, na medida do possível, com o máximo desfrute dos direitos do recluso, cuja restrição não seja mais imprescindível para o fim das sanções[59]. Examinando-se assim, o princípio da humanidade também como valor positivo, como norma reitora de todo o processo de execução da pena, sem esquecer-se que a pena possui, por si, natureza aflitiva, através da qual a sociedade responde às agressões que sofre com o cometimento de um delito[60].

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

O princípio humanitário restringe o trabalho do legislador na elaboração das leis penais, sendo a pena, a resposta jurídica à conduta delituosa[61]. Castigo como restrição ao comportamento. Restauração, no sentido de repor a ordem ofendida. Retribuição, porque castigo e restauração[62]. Dito de outro modo, a pena é retribuição jurídica e utilidade pública que não pode consistir em tratamento contrário ao senso de humanidade e deve atender à reeducação do condenado[63].

Nesse diapasão, o art. 59, do Código Penal, assinala que a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime[64], de modo que a pena aplicada reprova o delinquente e, na execução será utilizada para impedir o retorno à criminalidade. Assim, a finalidade da pena não é ressocializar, como sinônimo de pensar e agir como a sociedade (pelo menos como padrão médio)[65]. Busca, isso sim, retribuir juridicamente o dano social causado pelo crime[66].

E consagrando expressamente o princípio da humanidade das penas, a Constituição Federal de 1988 dispõe que não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis (art. 5.º, XLVII, CF); é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5.º, XLIX, CF)[67]. Proibindo-se em rol exaustivo, no texto maior, as penas que afrontam o necessário caráter humanitário. Vejamos cada uma delas:

a) Pena de morte

No Brasil, a pena de morte estava prevista no Código Criminal do Império de 1830, mas foi revogada em 1851, quando, depois de cumprida a sentença, executando-se o fazendeiro fluminense Mota Coqueiro, se descobriu que ele não havia sido o autor do delito a ele atribuído. Assim, o Imperador Dom Pedro II passou sistematicamente a comutar as penas de morte em galés perpétuas[68].

Desde a primeira Constituição Republicana (1891), somente a Constituição de 1937[69] e a Emenda Constitucional n.º I (1969)[70] não proibiram a pena de morte. Da mesma forma, proibia-se também as penas de caráter perpétuo e de banimento em quase todos os textos constitucionais republicanos, só não o fazendo a Carta polaca e o AI-5[71].

A pena capital traduz a verdadeira exacerbação do jus puniendi, produto da vingança privada, de um período em que o ofendido podia, a seu bel-prazer, castigar o ofensor. Contudo, ainda consta de várias legislações[72], embora haja evidente demonstração de redução cada vez maior tendente a ser suprimida.

No Brasil, a Constituição adotou, como regra, a proibição da pena de morte, dando-lhe status de cláusula pétrea. Entretanto, excepcionou o mandamento geral permitindo a pena capital nos casos de guerra declarada, com a cautela de resposta à agressão estrangeira, autorizada pelo Congresso Nacional ou por ele referendada, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas (art. 5.º, XLVII, c/c art. 84, XIX, ambos da Constituição Federal). Na seara penal, conforme já mencionado, confirmaram-se princípios de garantia, dentre os quais merecem destaque o da humanidade das penas e do interesse público da pena. A pena de morte contrasta com ambos, uma vez que ao Estado incumbe realizar o bem comum, em cuja definição não se agasalham métodos de eliminação do próprio homem[73].

b) Penas de caráter perpétuo

A vedação das penas de caráter perpétuo, no Brasil já é tradição constitucional, uma vez que, a primeira das nossas Constituições proibi-las foi a de 1934[74]. Semelhantemente, a Constituição de 10 de novembro de 1937, também vedou, em seu art. 122, XIII, as penas perpétuas e corporais. A Constituição de 1946, no § 31 do art. 141, repete, por sua vez, a Constituição de 1934. A Constituição de 1967 também vedou. Já o AI-5, de 1969, proibiu a pena de prisão perpétua. Todavia, excepcionalmente admitiu-a nos casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Atualmente, é dispositivo constitucional, previsto no art. 5.º, XLVII, b, que não haverá pena de caráter perpétuo[75].

Tem-se como perpétua, a pena que impossibilita o condenado de reinserir-se na sociedade após o seu cumprimento. Assim, incumbe ao Estado acenar-lhe com a esperança do retorno à família, aos amigos, ao trabalho enfim, fazer com que efetivamente, permitindo-lhe alcançar melhores dias além do cárcere. Por outro lado, quando o Estado interrompe as perspectivas de vida humana em decorrência do tempo e das condições da prisão, estas situações concretas aproximam-se da pena de morte[76].

A pena prisão perpétua é uma pena de segurança, pela qual a sociedade defende-se, afastando definitivamente do seu seio o homem que gravemente delinquiu. Entretanto, é pena cruel e injusta, que priva o condenado não só da liberdade, mas da esperança da liberdade, que poderia encorajá-lo e tornar-lhe suportável a servidão penal[77]. Ela impossibilita qualquer graduação segundo a natureza e circunstâncias do crime e as condições do criminoso, impedindo a individualização da pena e frustrando qualquer possibilidade de reajustamento social do condenado[78]. É, em geral, excessiva e não atende à necessária determinação no tempo, por que não findará em uma data fixada na sentença, mas durará enquanto o homem exista[79].

As penas de caráter perpétuo constituem, indubitavelmente, um excesso ao exercício do direito de punir do Estado, violador dos princípios do interesse público e da humanidade das penas. É desprovido de sentido, em nossos dias, se privar alguém de exercer a liberdade para o resto da vida. Além de contrariar o anseio de todo homem, não se extrai nenhuma utilidade social, mas ao contrário, apenas propaga os efeitos deletérios do cárcere, a manutenção da ociosidade e a transformação do ser humano em pária[80].

Importa salientar, outrossim, que a sua inserção no título dos direitos e garantias individuais, com status além de princípio (v. g. humanidade das penas) - de verdadeira regra constitucional, regra esta que também se embasa num princípio. Nesse passo, o caput do art. 5º, da Constituinte, também consagra, dentre os mesmos direitos individuais e coletivos, a inviolabilidade do direito à liberdade. E por isso, a sua privação e restrição também há de ter caráter excepcional. A tutela dos bens jurídico-penais (v. g. vida, patrimônio etc) impõe, quando gravemente ofendidos, e as outras sanções que se revelem insuficientes, o sacrifício da liberdade. Porém, a possibilidade de supressão total de liberdade (leia-se: a prisão perpétua) implica na negação de sua inviolabilidade. Não é concebível a inviolabilidade da liberdade sem que se impeça a possibilidade de sua integral eliminação. Proibir, pois, as penas perpétuas, como o faz expressamente a nossa Constituição, é um consectário necessário do princípio, também constitucional, da inviolabilidade da liberdade[81].

Os códigos penais modernos[82] revelam tendência de diminuir as sanções muito elevadas. E essa orientação, não é pieguismo, nem enfraquece a eficácia da legislação. Ao contrário, integra o movimento científico de revisão das leis penais de descriminalização e despenalização, voltado para ajustar as normas ao interesse social e para as condenações serem úteis à coletividade. Em verdade, a pena excessivamente elevada gera desestímulo e revolta ao condenado, que perde a vontade, o alento para um dia, ainda útil, recomeçar a vida em liberdade[83].

Ressalte-se, ademais disso, que as penas excessivamente altas adquirem caráter perpétuo. Uma vez que a lei não pode cominar pena, cujo máximo a transforme em sanção que impeça o condenado de recuperar o exercício do direito de liberdade. Assim, considerando que a imputabilidade penal inicia-se, cronologicamente, a partir dos 18 anos de idade, o limite de pena deve projetar-se a partir daí, e ser fixado de modo que não impeça o retorno ao convívio social do condenado. Ou seja, a conjugação desses dois fatores (início da imputabilidade penal e limite de pena) projeta limite razoável para que alguém possa cumprir sanção elevada e, mesmo assim, ter oportunidade de retornar à sociedade[84].

c) Trabalhos forçados

Durante o período colonial, importa mencionar a previsão dos trabalhos forçados nas Ordenações Filipinas (1603), em que os indivíduos que blasfemassem mais de uma vez contra os santos ou contra Deus pagariam a soma de quatro mil-réis em dinheiro e seriam degredados às galés durante um ano. A Inquisição determinava que diversos delitos poderiam levar o indivíduo a ser condenado às galés, onde realizavam trabalhos forçados[85]. Era um ambiente sujo, sem ventilação, com um calor insuportável. Neste lugar, os homens conviviam com alimentos estragados e corriam o risco constante de contrair doenças[86].

O art. 46, do Código Criminal do Império preceituava que a pena de prisão com trabalho obrigará os réus a ocuparem-se diariamente no trabalho, que lhes for destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das sentenças, e dos regulamentos policiais das mesmas prisões[87].

No Brasil, o processo de abolição da escravidão deu-se de modo gradual, iniciando-se nos idos de 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, seguida pela Lei do Ventre Livre de 1871, dos Sexagenários de 1885 e concluída pela Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888[88]. Extinta a escravatura o labor gratuito e/ou forçado, ainda que imposto pelo Estado, e mesmo na execução penal, perdeu o sentido, assentando-se definitivamente o trabalho remunerado[89].

Nesse sentido, o Código Penal[90] dispõe que o trabalho do preso será sempre remunerado e a Lei de Execução Penal[91] assegura o piso de remuneração em três quartos do salário mínimo[92], mas não está sujeita ao regime da Consolidação das Leis Trabalhistas, conforme preceitua o art. 28, § 2.º, da LEP (Lei 7.210/1984). Entretanto, se o trabalho do detendo é prestado ao Estado, merecerá tratamento diversos, pois formulam-se duas relações jurídicas, interdependentes, entretanto, distintas. Numa, há o resgate da sanção penal, noutra, a prestação de serviços a outrem, podendo o labor der prestado dentro ou fora do estabelecimento prisional[93].

Hodiernamente o preso não perde sua individualidade, pois deixou de ser objeto, passando a figurar como sujeito da relação jurídica. Assim, apesar da condenação, conservam-se todos os direitos, exceto aqueles afetados pelas restrições inerentes à execução da pena. Dessa forma, deverá ser declarada inconstitucional qualquer pena ou consequência do delito que restrinja para além da previsão legal, ou daquilo que é essencial ao estrito cumprimento da pena[94].

O trabalho como castigo não deve ser confundido com a laborterapia, que é perfeitamente legal e até recomendada em razão de seu sentido pedagógico. A atividade ocupacional da pessoa privada de liberdade tem fim educativo e produtivo. Também importa diferenciar os trabalhos forçados da prestação de serviços à comunidade, enunciada no art. 46, do Código Penal[95]. Apesar da gratuidade, a prestação de serviços à comunidade é ônus inerente ao cumprimento da pena. A causa da relação jurídica é a sanção concretizada na sentença condenatória, representando a restrição do direito do condenado. Já o trabalho é diferente, pois a causa da relação jurídica é o acordo de vontades, através do qual uma pessoa se obriga à prestação pessoal de atividade dirigida, não eventual, a outrem, mediante pagamento, tendo a remuneração como essencial[96].

d) Banimento

O art. 50, do Código Criminal do Império, incluiu a pena de banimento no rol de sanções, como sendo a privação para sempre dos direitos de cidadão brasileiro, inibindo os condenados perpetuamente de habitar o território nacional[97].

Importa distinguir o banimento das penas de degredo e de desterro. O degredo obrigava os réus a residir em lugar apontado pela sentença condenatória, devendo nele permanecer durante o tempo indicado na decisão (art. 51, Código Criminal do Império). O desterro, por sua vez, determinava que o réu saísse do local do delito, de sua principal residência e da principal residência do ofendido, não podendo neles adentrar durante um período determinado da sentença penal condenatória (art. 52, Código Criminal do Império). Verifica-se que o banimento, o degredo e o desterro possuem um ponto m comum: a obrigatoriedade de deslocamento do condenado do lugar em que habita. O banimento em sentido amplo, compreende o degredo e o desterro[98].

A Constituição republicana de 1891, aboliu a pena de galés e a de banimento judicial (art. 72, § 20)[99], e o fez conjuntamente em razão da aplicação simultânea das penas, pois os condenados banidos, no mais das vezes, eram também levados às galés[100]. Trata-se de espécie de pena que não poderá ser instituída no País. Generalizada no passado, hoje encontra repulsa em todos os Estados democráticos, pois hoje, não se tolera a violência de impedir que alguém more no local de sua escolha ou se lhe imponha onde ficar[101]. Ademais disso, nos termos do art. 12, § 4.º, da Constituição Federal, somente se declarará perdida a nacionalidade do brasileiro que, tiver cancelada a sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional, ou por adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária.

e) Penas cruéis

A Declaração dos Direitos do Homem (1948) estabelece que todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoa (art. III), e ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (art. V). O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) dispõe que ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes[102]. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas (art. 7.º); e a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) define e pune a tortura (arts. 1.º e 4.º)[103].

A Constituição Federal de 1988 também veda, expressamente, em seu art. 5.º, XLVII, e, as penas cruéis, traduzindo-se na ideia de se infligir a pessoa privada de liberdade desnecessário padecimento físico ou moral. Crueldade essa, que afronta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1.º, III, CF), bem como o ideal democrático, que tem na pessoa o seu núcleo axiológico[104].

Nesse diapasão, o legislador ordinário valeu-se da interpretação analógica para delimitar o tratamento cruel empregado pelo sujeito ativo do delito, descrevendo, ora como circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime, o emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ora ainda, qualificando o homicídio, quando perpetrado com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel[105]. De tal sorte, não pode o mesmo Estado que repele a crueldade perpetrada como meio na execução de determinados delitos - punindo o seu agente mais severamente por isso infligir padecimentos físicos ou morais aos condenados, sendo vedado até cominar penas que, em si, conduzam a essa situação[106], pois denotam sempre o extremo afastamento da piedade, manifestadas com o fim de causar um sofrimento desnecessário à pessoa[107].

Logo não se admite que a pena em si mesma e na sua execução, ofenda a dignidade do homem. É o que ocorre quando o condenado é físico-moralmente submetido a tratamento degradante[108]. Historicamente, as Ordenações Filipinas previam como pena, em seu Livro V, a obrigação do delinquente sair à rua vestindo capela de chifres, do preso permanecer com os pés amarrados com barras de ferro a fim de impedir-lhe os movimentos, de provocar marcas no corpo do condenado e tantos outros exemplos que ficaram na história, mas que hodiernamente, devem ser banidos de modo absoluto[109].

Importa salientar que, as penas cruéis, preocupação do constituinte, não devem ser confundidas com o padecimento físico ou mesmo moral suportado pelo condenado, próprios das penas supressivas da liberdade ou restritivas de direitos. Pois é fato inerente ao cumprimento da pena[110]. O problema é que a dramática visão que oferecem os centros penitenciários e a originária contradição que suscita o binômio pena de prisão-ressocialização[111], induzem-nos concluir que o atual sistema de persecução penal fomenta a estigmatização e a dessocialização do condenado[112].

4.2 PRINCÍPIOS DA PESSOALIDADE E INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

a) Princípio da Pessoalidade

O também denominado princípio da pessoalidade ou ainda, da intranscendência, preleciona que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, impedindo a punição do fato alheio, de modo que, somente o autor da infração penal poderá ser apenado. Nota-se, portanto, que a responsabilidade penal é sempre pessoal, não se admitindo, no Direito Penal, responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva[113]. A pena é a sanção do Direito que atinge o infrator da lei em sua pessoa. Assim, sendo, somente a ele poderá ser dirigida, não se admitindo ultrapassar, transcender a pessoa do condenado[114].

Historicamente, num período em que vigorava a vingança privada, além de a reação do ofendido restar ao seu arbítrio, não se reconhecia qualquer limitação. E tal quadro somente modificou-se com o talião e a composição. A vindita era coletiva, grupal. Tanto por parte do grupo a que pertencia a vítima, como dirigida ao grupo do ofensor. A tribo e o clã sofriam a represália. Entendia-se, portanto, que a agressão de alguém traduzia a animosidade de sua grei contra a do ofendido. Sob a égide da vingança pública, a reação ao agressor se torna politicamente organizada, sendo que a resposta ilimitada e individualmente definida cede passo à centralização do ius puniendi estatal, manifestando-se, gradativamente, a tendência de afastar-se a generalização em relação às pessoas, centralizando-se o castigo somente no agressor[115].

O Direito Penal, hoje, vive época científica, criminológica, diferente do período da vingança privada. E justamente por isso, não se pode esquecer que somente o agente do crime deverá sofrer a sanção, ao passo que terceiros, ainda que da mesma família, precisam ser preservados. Caso contrário, a reação, ao invés de restringir-se ao malfeitor, alcançará inocentes. Por isso que o princípio da responsabilidade pessoal surge com intuito de buscar a superação desse estágio, característico, sem dúvida, de uma forma incivilizada de solucionar conflitos[116].

Hodiernamente, a pessoalidade da pena é princípio pacífico do Direito Penal das nações civilizadas que a pena pode atingir a penas o sentenciado. Nesse diapasão, a Constituição de 1988 prevê que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (art. 5.º, XLV, CF). Assim, ao contrário do ocorrido no Direito pré-beccariano, a pena não pode se estender a pessoas estranhas ao delito, ainda que vinculadas ao condenado por laços de parentesco[117].

A primeira parte do dispositivo constitucional, que assevera que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, é tradicional em nossas Constituições, e esteve presente na Constituição do Império de 1824, art. 179, § 20[118], na Constituição da República, de 1891, art. 72, § 19[119], na Constituição de 1934, art. 113, § 28[120], sendo que a Constituição polaca de 1937 foi silente sobre a personalidade da pena, também constou da Constituição de 1946, art. 141, § 30[121], e na Constituição de 1967, art. 150, § 13[122]. No que tange a segunda parte do dispositivo constitucional, somente a partir da Constituição de 1988 é que reuniram-se em um só dispositivo constitucional a garantia penal e civil[123].

A personalidade da pena justifica-se pela fundamentação da aplicação de uma pena a um indivíduo, vinculando-se estreitamente aos postulados da imputação subjetiva e da culpabilidade, que decorre do mesmo fundamento constitucional. Assim, reitera-se, a responsabilidade penal é sempre pessoal e subjetiva própria do ser humano -, e decorrente apenas de sua ação ou omissão, não sendo admitida nenhuma outra forma ou espécie (v. g. por fato alheio, por representação, pelo resultado etc.). Daí se depreende que a sanção criminal pena ou medida de segurança não é transmissível a terceiros, determinando-se a título de autor, instigador ou cúmplice, segundo o comportamento da pessoa processada e em razão de sua própria culpa. É, pois, matéria que versa sobre autoria e participação, com os seus elementos objetivos e subjetivos[124].

É fundamental que se compreenda que são espécies de pena [125], as privativas de liberdade, as restritivas de direitos e a de multa[126], e portanto, restringem-se à pessoa do condenado. Por sua vez, são efeitos da condenação (desde a reforma de 1984, com a Lei n.º 7.209, não se fala mais em penas acessórias): tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos e/ou produtos do crime; a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, quando a pena aplicada for superior a quatro anos; a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado; a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. E acrescenta o parágrafo único que tais efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença[127].

Importante que se diga que, acerca da natureza jurídica dos efeitos da condenação, outrora denominados penas acessórias, é de consequências jurídicas não-penais decorrentes da sentença penal condenatória. Logo, embora figurem no Código Penal, não perdem a característica de sanções civis e administrativas. Ingressam no Código Penal por motivo de sistematização e nada mais[128]. É por tais razões que a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens podem ser estendidas aos sucessores do condenado, até o limite do valor do patrimônio transferido (art. 5.º, XLV, in fine, CF)[129].

b) Princípio da individualização da pena

Corolário dos princípios da personalidade e da culpabilidade, o postulado da individualização da pena se consubstancia, na previsão legal, na aplicação da pena e na execução da sanção penal, levando-se em conta, a necessidade de retribuir o mal crime com o mal pena, na exata medida e sem perder de vista a culpabilidade, a personalidade e os antecedentes da pessoa privada de liberdade[130].

Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, XLVI preleciona que a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

O processo de individualização da pena atinge os três poderes da República, realizando-se em três momentos distintos e complementares: o legislativo, o judicial e o executório[131].

Na primeira etapa, a legislativa, a individualização far-se-á através da lei, que fixa de forma geral e abstrata, em cada tipo penal, penas proporcionais a importância do bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa. Prevê-se ainda, em alguns casos, penas alternativas ou substitutivas, ou ainda, aplicação cumulada de penas. Entretanto, a lei penal não se limita as previsões normativas mencionadas, mas também, fixa regras que vão permitir as ulteriores individualizações, estipulando regras que o magistrado deve atender para chegar, em cada caso, à fixação da pena definitiva e concreta. Verifica-se, portanto, que a infração penal não fica adstrita ao arbítrio do legislador. Está ele, vinculado a ela, pois o art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal disse que a lei regulará. Nota-se que a Constituição se restringe a registrar o princípio, remetendo à lei a respectiva disciplina. À lei ordinária restou a incumbência de estabelecer os critérios da individualização (vide art. 59 e ss, do CP) sem, entretanto, restringir a extensão do princípio[132].

Já a segunda fase é a da individualização judiciária, em que o juiz, considerando as circunstâncias judiciais e legais, definirá a pena em concreto[133]. Assim sendo, considerando as peculiaridades do caso concreto e uma variedade de fatores que são especificamente previstos pela lei penal, incumbirá ao julgador fixar qual das penas será aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução. Apesar da previsão legal das circunstâncias judiciais, atua o magistrado com indiscutível discricionariedade, uma vez que incumbe-lhe realizar um ajustamento da resposta penal em função não só de circunstâncias objetivas, mas principalmente da pessoa do denunciado e do comportamento da vítima[134].

Sobre o autor
Gerson Faustino Rosa

Doutor em Direito. Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo-SP. Mestre em Ciências Jurídicas. Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Ciências Penais. Universidade Estadual de Maringá-PR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado em Direito. Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente-SP. Professor de Direito Penal e Coordenador dos cursos da área jurídico-penal da Uniasselvi. Professor de Direito Penal nos cursos de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá, da Escola Superior da Advocacia, da Escola Superior da Polícia Civil e da Escola Superior em Direitos Humanos do Estado do Paraná, da Unoeste, do Cesumar, da Univel-FGV, da Fadisp, da Unipar, do Integrado e da Faculdade Maringá. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação da Universidade Estadual de Maringá-PR (2014-2019). Professor de Direito Penal e coordenador da pós-graduação em Ciências Penais da Universidade do Oeste Paulista (2016-2019). Professor de Direito Penal na Uniesp de Presidente Prudente-SP (2013-2016). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Penal e Segurança Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Direito Penal Constitucional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos